O REINO DA QUANTIDADE

É notável que, em todo o conjunto daquilo que constitui propriamente a civilização moderna, qualquer que seja o ponto de vista em que nos coloquemos, temos sempre de constatar que tudo parece cada vez mais artificial, desnaturado e falsificado; no entanto, muitos dos que fazem hoje a crítica desta civilização são, também influenciados por ela.

Parece-nos, pois, que basta um pouco de lógica para se poder dizer que, se tudo se tornou assim tão artificial, a própria mentalidade a que corresponde este estado de coisas não poderá  ser certamente menos artificial do que tudo o resto no mundo moderno e que portanto deve também ela ter sido «fabricada» e não espontânea; e assim que tivermos feito esta simples reflexão, não poderemos deixar de ver que os indícios que a corroboram se multiplicam por todos os lados e quase infinitamente.

Temos pois de aceitar que infelizmente é muito difícil escapar completamente às «sugestões» que deram origem ao mundo moderno e o têm feito perdurar, porque até aqueles que se declaram resolutamente «anti-modernos» e tradicionais não vêem nada do que está realmente em causa, e é por isso, aliás, que os seus esforços são muitas vezes inúteis e quase desprovidos de alcance real.

A acção anti-tradicional deve pois necessariamente ter tido desde o início como finalidade mudar a mentalidade geral e, assim, destruir todas as instituições tradicionais no Ocidente.

Aliás, assim que se conseguiu transformar a mentalidade dos homens, as instituições, que, a partir desse momento já não lhe correspondiam, foram facilmente destruídas. Portanto, é o trabalho de desvio da mentalidade que aparece como verdadeiramente fundamental, e como é daí que depende tudo o resto, é neste aspecto que temos de insistir mais em particular.

 É evidente que este trabalho não podia ser feito de uma só vez, embora o mais espantoso seja a rapidez com que os Ocidentais foram levados a esquecer tudo aquilo que estava ligado à existência da civilização tradicional cristã; se pensarmos na incompreensão total com que os séculos XVII e XVIII trataram a Idade Média, sob todos os aspectos, deve ser fácil compreender que uma mudança tão completa não podia ter-se feito de maneira natural e espontânea.

Seja como for, era preciso primeiro reduzir o indivíduo a si próprio, e essa tarefa, como já dissemos, foi obra do racionalismo, que nega ao ser a posse e o uso de qualquer faculdade de ordem transcendente; não é preciso dizer, aliás, que o racionalismo começou a agir mesmo antes de receber esse nome, tal como vimos a propósito do Protestantismo; e, de resto, o «humanismo» da Renascença não foi mais do que o precursor directo do racionalismo propriamente dito, pois quem diz «humanismo» diz pretensão de reduzir todas as coisas a elementos puramente humanos, logo, exclusão de tudo o que é de ordem supra-individual.

 Era preciso a seguir voltar inteiramente a atenção do indivíduo para coisas exteriores e sensíveis, para o fechar, por assim dizer, não só no domínio humano, mas também, por uma limitação muito mais estreita ainda, no mundo corporal; é este o ponto de partida de toda a ciência moderna, que, dirigida constantemente nesse sentido, deveria tornar essa limitação cada vez mais efectiva.

A constituição das teorias científicas, ou filosófico-científicas se quisermos, teve também de proceder gradualmente; e o mecanicismo preparou directamente a via ao materialismo, que devia marcar, de certo modo irremediavelmente, a redução do horizonte mental ao domínio corporal, considerado, a partir de então, como a única «realidade», ele próprio desprovido, aliás, de tudo o que não pudesse ser olhado como simplesmente «material»; naturalmente, a elaboração da própria noção de «matéria» pelos físicos teve aqui um papel importante.

Entrou-se, assim,  propriamente no «reino da quantidade»: a ciência profana, sempre mecanicista desde Descartes, e tornada mais propriamente materialista a partir da segunda metade do século XVIII, devia, com teorias sucessivas, tornar-se cada vez mais quantitativa, ao mesmo tempo que o materialismo, insinuando-se na mentalidade geral, conseguia determinar nela uma atitude materialista, independente de qualquer afirmação teórica, mas muito difundida e transformada finalmente numa espécie de «instinto», que denominamos de «materialismo prático».

 E esta mesma atitude devia ainda ser reforçada pelas aplicações industriais da ciência quantitativa, que tinham como efeito o ligar cada vez mais os homens apenas a realizações «materiais». O homem «mecanizava» todas as coisas, e acabava finalmente por «mecanizar-se», caindo pouco a pouco no estado da falsa «unidade» numérica, perdida no caldo entrópico da uniformidade e na indistinção da «massa», isto é, na multiplicidade; e, é esse, seguramente, o mais completo triunfo da quantidade sobre a qualidade.

Depois de ter fechado o mundo corporal o mais completamente possível, impedindo-o de restabelecer qualquer comunicação com os domínios superiores, era preciso reabri-lo por baixo, para deixar penetrar as forças dissolventes e destrutivas do domínio subtil inferior ou “infernal” e completar assim o desvio do mundo moderno levando-o efectivamente até à dissolução final.

Com efeito, assim que se constituiu um estado de materialismo generalizado, começou a preparação da segunda fase, da qual só agora começamos a ver os primeiros efeitos, já suficientemente visíveis para permitir prever o que vai seguir-se, e para que se possa dizer, sem exagero, que é este segundo aspecto da acção anti-tradicional que, a partir de agora, passa verdadeiramente para primeiro plano nos desígnios daquilo que designámos, em termos teológicos, como «o adversário».

 Assim, quando o desvio chega ao seu termo último, atinge uma «inversão», isto é, um estado que é diametralmente oposto à ordem normal, e é então que se pode falar propriamente em «subversão», no sentido etimológico da palavra. 

Poder-se-ia dizer que a subversão, assim entendida, não é mais do que o último grau e a própria finalização do desvio, ou ainda, o que equivale ao mesmo, que todo o desvio tende para a subversão, o que é realmente verdade.

 No estado presente das coisas, embora ainda não se possa dizer que a subversão esteja completa, já há sinais muito visíveis em tudo o que apresenta a característica de «imitação» ou de «paródia» a que já fizemos muitas vezes alusão. Por agora, limitar-nos-emos a notar, a propósito, que esta característica constitui, por si só, uma marca muito significativa quanto à origem real daquilo que é afectado por ela e, por conseguinte, do próprio desvio moderno, do qual ela põe bem em evidência a natureza verdadeiramente «satânica»; com efeito, esta última palavra aplica-se propriamente a tudo o que é negação e inversão da ordem, e é aí, sem a menor dúvida, que podemos constatar melhor os efeitos à nossa volta; o que é o próprio mundo moderno senão a negação pura e simples de qualquer verdade tradicional?

Mas, ao mesmo tempo, este espírito de negação é também, de certo modo por necessidade, o espírito de mentira; reveste todos os disfarces, muitas vezes os mais inesperados, para não ser reconhecido tal como é, para se fazer passar pelo contrário, e é aí que aparece a imitação.

 É altura de lembrar que se diz que «Satã é o arremedo de Deus», e também que «se transfigura em anjo de luz». No fundo, isto equivale a dizer que ele O imita à sua maneira, alterando e falsificando tudo de modo a utilizar essa imitação para os seus fins: assim, fará de maneira que a desordem tome a aparência de uma falsa ordem, dissimulará a negação de todos os princípios afirmando falsos princípios, e assim por diante.

Naturalmente, tudo isto não poderá ser, na realidade, senão simulacro e mesmo caricatura, mas habilmente apresentada para que a imensa maioria dos homens caia no logro; como poderemos espantar-nos com isto quando vemos quantas imitações, mesmo grosseiras, conseguem facilmente impor-se à multidão, e quanto, pelo contrário, é difícil repor a verdade? «Vulgus vult decipi», diziam já os antigos da época «clássica»; e sempre se encontraram pessoas, embora nunca tão numerosas como nos nossos dias, dispostas a acrescentar: «Ergo decipiatur»!

No entanto, quando se diz imitação, diz-se, por isso mesmo, paródia, porque são termos quase sinónimos, há invariavelmente, em todas as coisas deste género, um elemento grotesco que pode ser mais ou menos aparente, mas que, em todo o caso, não devia escapar a observadores mais ou menos perspicazes, se as «sugestões» que sofrem inconscientemente não abolissem a sua perspicácia natural.  É este o lado pelo qual a mentira, por mais hábil que seja, não pode deixar de se trair; e, claro, também isso é uma «marca» de origem, inseparável da própria imitação, e que deve normalmente permitir reconhecê-la. 

Se quiséssemos citar aqui exemplos tirados das mais diferentes manifestações do espírito moderno, só teríamos o embaraço da escolha, desde os pseudo-ritos «cívicos», e «laicos», que conheceram tamanha expansão por todo o lado nestes últimos anos, e que visam fornecer à «massa» um substituto puramente humano dos verdadeiros ritos religiosos, até às extravagâncias de um denominado «naturismo», que, a despeito do nome, não é menos artificial, para não dizer «anti-natural», do que as inúteis complicações da existência contra as quais tem a pretensão de reagir com uma comédia risível, cujo verdadeiro propósito é, aliás, fazer crer que o «estado natural» se confunde com animalidade; e nem sequer o simples repouso de ser humano deixa de estar ameaçado de desnaturação pela ideia contraditória em si, mas muito conforme com o «igualitarismo» democrático, de uma «ocupação dos tempos livres»!! Só mencionamos aqui, intencionalmente, factos conhecidos de toda a gente, factos que pertencem incontestavelmente àquilo que se chama o «domínio» público, e que cada um pode constatar facilmente; não é incrível que aqueles que sentem, não o perigo, mas o ridículo, sejam tão raros que representem verdadeiras excepções?

«Pseudo-religião», deveria dizer-se a este propósito, «pseudo-natureza», «pseudo-repouso» e assim igualmente para outras tantas coisas; se quiséssemos falar estritamente segundo a verdade dos factos, deveríamos utilizar sempre a palavra «pseudo» junto da designação de todos os produtos específicos do mundo moderno, incluindo a ciência profana, que não é mais do que uma «pseudo-ciência» ou um simulacro de conhecimento, para indicar o que tudo isso é na realidade: falsificações e nada mais, cuja finalidade é demasiado evidente para aqueles que ainda são capazes de reflectir.

René Guenon, Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps

 

 

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