A Longa Noite
Se, estas, as palavras vêm com a chancela da intelligentzia oficial, então, nada mais no mundo se poderá opor à força avassaladora dos chavões que, num estalar de dedos, respondem a todas as perguntas, dirimem todas as dúvidas e instalam, com soberana tranquilidade, o império do consenso universal.
Refiro-me especialmente a expressões como “desigualdade social”, “diversidade”, “fundamentalismo”, “direitos”, “extremismo”, “intolerância”, “medieval”, “racismo”, “ditadura”, “crença religiosa”, “populismo”, "homofobia", "transfobia" e similares. O leitor pode, se quiser, completar o repertório mediante breve consulta da chamada “ imprensa mainstream” ou dos telejornais.
Existirá algo, entre os céus e a terra, que esses termos não
possam exprimir com perfeição, não expliquem nos seus mínimos detalhes, não
transmutem em conclusões inabaláveis que só um louco ousaria contestar? À sua
volta gira a mente do cidadão moderno, incapaz de conceber o que quer que
esteja para além do que este exíguo vocabulário pode abranger.
Que essas certezas sejam ostentadas por pessoas que ao mesmo tempo se dizem relativistas e até mesmo neguem peremptoriamente a existência de verdades objectivas, eis uma prova suplementar daquilo que acabei de dizer: quanto menos se entende, menos se entende que não se entende.
Ao inverso da economia, onde vigora o princípio da escassez, na esfera da inteligência rege o princípio da abundância: quanto mais falta, mais dá a impressão de que sobra. A estupidez completa, corresponderia assim à plena auto-satisfação.
Ora, deveriam ser
sobretudo os intelectuais a ter a obrigação primeira de analisar a linguagem comum,
libertando-a do poder hipnótico dos referidos chavões e restaurando o trânsito normal
entre a linguagem, a percepção e a realidade.
É verdade que os chavões, não são completamente, inúteis. Embora para os demagogos e charlatães, sirvam para despertar na audiência, por força do mero automatismo semântico decorrente do uso repetitivo, as emoções e as reacções desejadas, para o estudioso são a pedra de toque para distinguir entre um discurso demagógico e um discurso de conhecimento.
Sem essa distinção, qualquer análise científica da sociedade e da
política é impossível.
A linguagem dos chavões caracteriza-se por três
traços inconfundíveis:
1) A aposta no efeito emocional imediato das
palavras, evitando o exame dos objectos e das experiências correspondentes.
2) Dar a impressão de que as palavras são
um translado directo da realidade, escamoteando o modo como os seus
significados presentes se formaram pelo uso repetido, expressão de preferências
e escolhas humanas. Confundindo propositadamente as palavras e as coisas, o agente
político dissimula a sua própria acção e induz a audiência a crer que decide
livremente com base numa visão directa da realidade.
3) Confere a autoridade de verdades absolutas a
afirmações que, na melhor das hipóteses, têm uma validade relativa.
Um exemplo é o uso que os nazis faziam do termo
“raça”. Trata-se de um conceito complexo e ambíguo, onde se misturam elementos
de anatomia, de antropologia física, de genética, de etnologia, de geografia
humana, de política e até de religião. A eficácia do termo na propaganda
dependia precisamente de que esses elementos permanecessem mesclados e
indistintos, formando uma síntese confusa capaz de evocar um sentimento de
identidade de grupo. Eis por que a Gestapo mandou apreender o livro de Eric
Voegelin, História da ideia de raça (1933),
um estudo científico sem qualquer apelo político. Para funcionar como símbolo
motivador da união nacional, o termo tinha de aparecer como a tradução imediata
de uma realidade visível, não como aquilo que realmente era - o produto
histórico de uma longa acumulação de pressupostos altamente questionáveis.
Do mesmo modo, o termo “fascismo”, que
cientificamente compreendido se aplica a muitos dos governos actuais é usado por eles para denegrir ideias
tão estranhas ao fascismo como a oposição ao aborto ou
o ódio popular à corrupção dos poderosos. A
palavra “fascismo”, na sua boca, não é o signo de uma ideia
ou coisa: é uma palavra-gatilho, fabricada para despertar reacções
automáticas.
Os
termos usados actualmente no debate político e cultural raramente denotam
coisas, objectos do mundo exterior, mas sim um amálgama de conjecturas,
expectativas e preferências humanas e, portanto, nenhum deles tem qualquer
significado além do feixe de contradições e dificuldades que encerra, através
das quais, e só através das quais, chegam a designar algo do mundo real.
Pode-se saber o que é um gato simplesmente olhando
para um gato, mas “democracia”, “liberdade”, “direitos humanos”, “igualdade”,
“reacionário”, “preconceito”, “discriminação”, “extremismo”, "populismo" etc. são entidades
que só existem na confrontação de ideias, valores e actitudes. Quem quer que
use essas palavras dando a impressão de que reflectem realidades imediatas, improblemáticas,
reconhecíveis à primeira vista, não é mais que um demagogo e um charlatão.
Aquele que assim escreve ou fala não quer despertar na audiência a consciência
de como as coisas se passam, mas apenas provocar uma reação emocional favorável
à sua pessoa, ao seu partido, aos seus interesses. É um traficante de
entorpecentes armado em intelectual ou "especialista".
A frequência com que as chavões são usadas no
debate actual como símbolos de premissas que se provam a si mesmas, valores
inquestionáveis e critérios infalíveis do certo e do errado, já chega para
demonstrar que o mero conceito da actividade intelectual responsável
desapareceu do horizonte mental das “classes dominantes”, tendo sido substituído
por uma sua caricatura publicitária e demagógica.
Como chegámos a esse estado de coisas? Investigá-lo é trabalhoso, mas não substancialmente complicado. É só fazer o rastreio do processo de “ocupação de espaços” na comunicação social, no ensino e nas instituições de cultura, que, pelo uso obsessivamente repetitivo de chavões, foi uniformizando a linguagem dos debates públicos e ligando a valores positivos ou negativos, atraentes ou repulsivos, um certo repertório de palavras que, com o tempo, passaram a ser utilizadas como gatilhos de reações automatizadas, uniformes, completamente predizíveis.
O tom de certeza definitiva com que
qualquer burrice politicamente correcta é apresentada, hoje, como o nec plus ultra da inteligência humana
jamais teria sido possível sem um prévio
longo período de entorpecimento e de trevas, sem uma longa noite da inteligência, ao fim da qual
se perdeu a simples capacidade de discernir o normal do aberrante, o sensato do
absurdo, o óbvio ululante do ilogismo impenetrável.
Se se é treinado para se ter sempre as mesmas
reações diante das mesmas palavras, acaba-se por só se apreender as "ideias feitas" que se é capaz de repetir,
e dificilmente se consegue pensar diferentemente daquilo que os donos do vocabulário mandaram
pensar.
Esse foi um dos principais mecanismos pelos quais o “processo democrático” acabou por extinguir, na prática, a possibilidade de qualquer debate substantivo sobre o que quer que seja.
Hoje, todos os “formadores de opinião” - comentadores, académicos, políticos, figuras do show business - pensam por chavões, sem a mínima preocupação, ou capacidade, para distinguir entre a fórmula verbal e os dados da experiência. Impõem os seus estados subjetivos ao leitor ou ouvinte de maneira directa, sem recurso à realidade que possa servir de critério de arbitragem entre o emissor e o receptor da mensagem.
A discussão racional fica assim inviabilizada ad initium, sendo substituída pelo mero confronto entre modos de sentir, por uma demonstração mútua de força psíquica bruta que dá a vitória, quase que necessariamente, ao lado mais barulhento, histriónico, fanático e intolerante.
É um ambiente consumado de alucinação e farsa, no qual só o pior e o mais vil pode prevalecer.
Mas, o cúmulo da devassidão mental é atingido
quando as leis penais passam a ser redigidas dessa maneira. Se a definição de
uma conduta delictuosa é vaga e imprecisa, a tipificação do crime
correspondente torna-se pura matéria de preferência subjectiva do juiz ou de
pressão política por parte de grupos interessados.
Assim, por exemplo, o agitador que pregue abertamente a inferioridade da raça negra e o engraçadinho que faça uma piada ocasional sobre negros, podem igualmente ser condenados por delito de “racismo”. Duas condutas qualitativamente incomparáveis são niveladas por baixo: deixa de existir diferença entre delito e aparência de delito. É a mulher de César virada do avesso: não é preciso ser criminoso, basta parecê-lo. Basta caber numa definição ilimitadamente elástica que inclui desde o uso impensado de certas palavras até a doutrinação genocida explícita e feroz.
“Racismo” é uma figura de linguagem, não um conceito rigoroso correspondente a condutas determinadas. Uma lei que criminalize o "racismo", a "homofobia", a transfobia" ou o "discurso do ódio" é um jogo de azar no qual a justiça e a injustiça são distribuídas a esmo. É uma comédia.
Quem se der o trabalho de distinguir analiticamente os vários sentidos com que as palavras “racismo”, "homo-fobia", "trans-fobia", "violência doméstica" etc. são usadas em diversos contextos verificará que correspondem a conductas muito diferentes entre si, das quais algumas poderão ser criminosas. Só, estas é que têm de ser objecto de lei. E, aliás, já antes eram.
Quem cria e redige essas leis são obviamente pessoas sem o mínimo senso de responsabilidade pelos seus actos: são adolescentes embriagados de um delírio de poder; são mentes disformes e antissociais, são sociopatas perigosos.
Só eleitores totalmente ludibriados podem ter elevado
esses indivíduos à condição de legisladores.
E não pensem que ao dizer isso esteja, eu mesmo, apelando a uma figura de linguagem, hiperbolizando os factos para chamar a atenção sobre eles. A incapacidade de distinguir entre sentido literal e figurado, a perda da função denominativa da linguagem e a reducção da fala a um jogo de intimidação e sedução que não tem de prestar satisfações à realidade, são sintomas psiquiátricos característicos.
As figuras de linguagem são instrumentos indispensáveis não só na comunicação como na aquisição de conhecimento. Quando não sabemos declarar exactamente o que é uma coisa, dizemos a impressão que ela nos causa. Todo conhecimento começa assim. Benedetto Croce definia a poesia como “expressão de impressões”. Toda incursão da mente humana num domínio novo e inexplorado é, nesse sentido, “poética”. Começamos por dizer o que sentimos e imaginamos. É do confronto de muitas fantasias diversas, incongruentes e opostas que a realidade da coisa, do objecto, um dia chega a desenhar-se diante dos nossos olhos, clara e distinta, como que aprisionada numa malha de fios imaginários - como a tridimensionalidade do espaço que emerge das linhas traçadas numa superfície plana.
Suprimir as metáforas e metonímias, as analogias e as hipérboles, impor universalmente uma linguagem inteiramente exacta, definida, “científica”, como chegaram a ambicionar os filósofos da escola analítica, seria sufocar a capacidade humana de investigar e conjecturar. Seria matar a própria inventividade científica sob a desculpa de dar à ciência plenos poderes sobre as modalidades “pré-científicas” de conhecimento.
Mas, inversamente, encarcerar a mente humana numa
trama indeslindável de figuras de linguagem rebeldes a toda análise, impor o
jogo de impressões emotivas como substituto da discussão racional e fazer de
simbolismos nebulosos a base de decisões práticas que afectarão milhões de
pessoas é um crime ainda mais grave contra a inteligência humana; é escravizar
toda a sociedade à confusão interior de um grupo de psicopatas megalómanos.
A partir de textos de Olavo de Carvalho
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