A Longa Noite

 

                                           



 


         




A "LONGA NOITE" DA INTELIGÊNCIA

 Se há uma coisa que, quanto mais se perde, menos se sente a falta, é a inteligência. Uso a palavra, não no sentido vulgar de habilidadezinhas mensuráveis, mas no de percepção da realidade. Quanto menos você percebe, menos percebe que não percebe. Quase que invariavelmente, essa perda vem por isso acompanhada de um sentimento de plenitude, de segurança, de quase de infalibilidade. É claro: quanto mais burro se fica, menos se atina com as contradições e dificuldades, e tudo parece explicável em meia dúzia de palavras.

           Se, estas, as palavras vêm com a chancela da intelligentzia oficial, então, nada mais no mundo se  poderá opor à força avassaladora dos chavões que, num estalar de dedos, respondem a todas as perguntas, dirimem todas as dúvidas e instalam, com soberana tranquilidade, o império do consenso universal. 

Refiro-me especialmente a expressões como “desigualdade social”, “diversidade”, “fundamentalismo”, “direitos”, “extremismo”, “intolerância”, “medieval”, “racismo”, “ditadura”, “crença religiosa”, “populismo”, "homofobia", "transfobia" e similares. O leitor pode, se quiser, completar o repertório mediante breve consulta da chamada “ imprensa mainstream” ou dos telejornais. 

 Existirá algo, entre os céus e a terra, que esses termos não possam exprimir com perfeição, não expliquem nos seus mínimos detalhes, não transmutem em conclusões inabaláveis que só um louco ousaria contestar? À sua volta gira a mente do cidadão moderno, incapaz de conceber o que quer que esteja para além do que este exíguo vocabulário pode abranger.

          Que essas certezas sejam ostentadas por pessoas que ao mesmo tempo se dizem relativistas e até mesmo neguem peremptoriamente a existência de verdades objectivas, eis uma prova suplementar daquilo que acabei de dizer: quanto menos se entende, menos se entende que não se entende. 

Ao inverso da economia, onde vigora o princípio da escassez, na esfera da inteligência rege o princípio da abundância: quanto mais falta, mais dá a impressão de que sobra. A estupidez completa, corresponderia assim à plena auto-satisfação. 

          Ora, deveriam ser sobretudo os intelectuais a ter a obrigação primeira de analisar a linguagem comum, libertando-a do poder hipnótico dos referidos chavões e restaurando o trânsito normal entre a linguagem, a percepção e a realidade.

        É verdade que os chavões, não são completamente, inúteis. Embora para os demagogos e  charlatães, sirvam para despertar na audiência, por força do mero automatismo semântico decorrente do uso repetitivo, as emoções e as reacções desejadas, para o estudioso são a pedra de toque para distinguir entre um discurso demagógico e um discurso de conhecimento. 

Sem essa distinção, qualquer análise científica da sociedade e da política é impossível.

 A linguagem dos chavões caracteriza-se por três traços inconfundíveis:

1) A aposta no efeito emocional imediato das palavras, evitando o exame dos objectos e das experiências correspondentes.

2) Dar a impressão de que as palavras são um translado directo da realidade, escamoteando o modo como os seus significados presentes se formaram pelo uso repetido, expressão de preferências e escolhas humanas. Confundindo propositadamente as palavras e as coisas, o agente político dissimula a sua própria acção e induz a audiência a crer que decide livremente com base numa visão directa da realidade.

3) Confere a autoridade de verdades absolutas a afirmações que, na melhor das hipóteses, têm uma validade relativa.

          Um exemplo é o uso que os nazis faziam do termo “raça”. Trata-se de um conceito complexo e ambíguo, onde se misturam elementos de anatomia, de antropologia física, de genética, de etnologia, de geografia humana, de política e até de religião. A eficácia do termo na propaganda dependia precisamente de que esses elementos permanecessem mesclados e indistintos, formando uma síntese confusa capaz de evocar um sentimento de identidade de grupo. Eis por que a Gestapo mandou apreender o livro de Eric Voegelin, História da ideia de raça (1933), um estudo científico sem qualquer apelo político. Para funcionar como símbolo motivador da união nacional, o termo tinha de aparecer como a tradução imediata de uma realidade visível, não como aquilo que realmente era - o produto histórico de uma longa acumulação de pressupostos altamente questionáveis.

          Do mesmo modo, o termo “fascismo”, que cientificamente compreendido se aplica a muitos dos governos actuais é usado por eles para denegrir ideias tão estranhas ao fascismo como a oposição ao aborto ou o ódio popular à corrupção dos poderosos.  A palavra “fascismo”, na sua boca, não é o signo de uma ideia ou coisa: é uma palavra-gatilho, fabricada para despertar reacções automáticas.

          Os termos usados actualmente no debate político e cultural raramente denotam coisas, objectos do mundo exterior, mas sim um amálgama de conjecturas, expectativas e preferências humanas e, portanto, nenhum deles tem qualquer significado além do feixe de contradições e dificuldades que encerra, através das quais, e só através das quais, chegam a designar algo do mundo real.

            Pode-se saber o que é um gato simplesmente olhando para um gato, mas “democracia”, “liberdade”, “direitos humanos”, “igualdade”, “reacionário”, “preconceito”, “discriminação”, “extremismo”, "populismo" etc. são entidades que só existem na confrontação de ideias, valores e actitudes. Quem quer que use essas palavras dando a impressão de que reflectem realidades imediatas, improblemáticas, reconhecíveis à primeira vista, não é mais que um demagogo e um charlatão. Aquele que assim escreve ou fala não quer despertar na audiência a consciência de como as coisas se passam, mas apenas provocar uma reação emocional favorável à sua pessoa, ao seu partido, aos seus interesses. É um traficante de entorpecentes armado em intelectual ou "especialista".

         A frequência com que as chavões são usadas no debate actual como símbolos de premissas que se provam a si mesmas, valores inquestionáveis e critérios infalíveis do certo e do errado, já chega para demonstrar que o mero conceito da actividade intelectual responsável desapareceu do horizonte mental das “classes dominantes”, tendo sido substituído por uma sua caricatura publicitária e demagógica.

          Como chegámos a esse estado de coisas? Investigá-lo é trabalhoso, mas não substancialmente complicado. É só fazer o rastreio do processo de “ocupação de espaços” na comunicação social, no ensino e nas instituições de cultura, que, pelo uso obsessivamente repetitivo de chavões, foi uniformizando a linguagem dos debates públicos e ligando a valores positivos ou negativos, atraentes ou repulsivos, um certo repertório de palavras que, com o tempo, passaram a ser utilizadas como gatilhos de reações automatizadas, uniformes, completamente predizíveis.

            O tom de certeza definitiva com que qualquer burrice politicamente correcta é apresentada, hoje, como o nec plus ultra da inteligência humana jamais teria  sido possível sem um prévio longo período de entorpecimento e de trevas, sem uma  longa noite da inteligência, ao fim da qual se perdeu a simples capacidade de discernir o normal do aberrante, o sensato do absurdo, o óbvio ululante do ilogismo impenetrável.

            Se se é treinado para se ter sempre as mesmas reações diante das mesmas palavras, acaba-se  por só se apreender as "ideias feitas" que se é capaz de repetir, e dificilmente se consegue pensar diferentemente  daquilo que os donos do vocabulário mandaram pensar.

            Esse foi um dos principais mecanismos pelos quais o “processo democrático” acabou por extinguir, na prática, a possibilidade de qualquer debate substantivo sobre o que quer que seja. 

           Hoje, todos os “formadores de opinião” - comentadores, académicos, políticos, figuras do show business - pensam por chavões, sem a mínima preocupação, ou capacidade, para distinguir entre a fórmula verbal e os dados da experiência. Impõem  os seus estados subjetivos ao leitor ou ouvinte de maneira directa, sem recurso à realidade que possa servir de critério de arbitragem entre o emissor e o receptor da mensagem. 

         A discussão racional fica assim inviabilizada ad initium, sendo substituída pelo mero confronto entre modos de sentir, por uma demonstração mútua de força psíquica bruta que dá a vitória, quase que necessariamente, ao lado mais barulhento, histriónico, fanático e intolerante.

         É um ambiente consumado de alucinação e farsa, no qual só o pior e o mais vil pode prevalecer.

         Mas, o cúmulo da devassidão mental é atingido quando as leis penais passam a ser redigidas dessa maneira. Se a definição de uma conduta delictuosa é vaga e imprecisa, a tipificação do crime correspondente torna-se pura matéria de preferência subjectiva do juiz ou de pressão política por parte de grupos interessados.

         Assim, por exemplo, o agitador que pregue abertamente a inferioridade da raça negra e o engraçadinho que faça uma piada ocasional sobre negros, podem igualmente ser condenados por delito de “racismo”. Duas condutas qualitativamente incomparáveis são niveladas por baixo: deixa de existir diferença entre delito e aparência de delito. É a mulher de César virada do avesso: não é preciso ser criminoso, basta parecê-lo. Basta caber numa definição ilimitadamente elástica que inclui desde o uso impensado de certas palavras até a doutrinação genocida explícita e feroz.

 “Racismo” é uma figura de linguagem, não um conceito rigoroso correspondente a condutas determinadas. Uma lei que criminalize o "racismo", a "homofobia", a transfobia" ou o "discurso do ódio" é um jogo de azar no qual a justiça e a injustiça são distribuídas a esmo.  É uma comédia. 

Quem se der o trabalho de distinguir analiticamente os vários sentidos com que as palavras “racismo”,  "homo-fobia", "trans-fobia", "violência doméstica" etc. são usadas em diversos contextos verificará que correspondem a conductas muito diferentes entre si, das quais algumas poderão ser criminosas. Só, estas é que têm de ser objecto de lei. E, aliás, já antes eram.

                 Quem cria e redige essas leis são obviamente pessoas sem o mínimo senso de responsabilidade pelos seus actos: são adolescentes embriagados de um delírio de poder; são mentes disformes e antissociais, são sociopatas perigosos. 

Só eleitores totalmente ludibriados podem ter elevado esses indivíduos à condição de legisladores.

            E não pensem que ao dizer isso esteja, eu mesmo, apelando a uma figura de linguagem, hiperbolizando os factos para chamar a atenção sobre eles. A incapacidade de distinguir entre sentido literal e figurado, a perda da função denominativa da linguagem e a reducção da fala a um jogo de intimidação e sedução que não tem de prestar satisfações à realidade, são sintomas psiquiátricos característicos.

                     As figuras de linguagem são  instrumentos indispensáveis não só na comunicação como na aquisição de conhecimento. Quando não sabemos declarar exactamente o que é uma coisa, dizemos a impressão que ela nos causa. Todo conhecimento começa assim. Benedetto Croce definia a poesia como “expressão de impressões”. Toda incursão da mente humana num domínio novo e inexplorado é, nesse sentido, “poética”. Começamos por dizer o que sentimos e imaginamos. É do confronto de muitas fantasias diversas, incongruentes e opostas que a realidade da coisa, do objecto, um dia chega a desenhar-se diante dos nossos olhos, clara e distinta, como que aprisionada numa malha de fios imaginários - como a tridimensionalidade do espaço que emerge das linhas traçadas numa superfície plana. 

Suprimir as metáforas e metonímias, as analogias e as hipérboles, impor universalmente uma linguagem inteiramente exacta, definida, “científica”, como chegaram a ambicionar os filósofos da escola analítica, seria sufocar a capacidade humana de investigar e conjecturar. Seria matar a própria inventividade científica sob a desculpa de dar à ciência plenos poderes sobre as modalidades “pré-científicas” de conhecimento.

             Mas, inversamente, encarcerar a mente humana numa trama indeslindável de figuras de linguagem rebeldes a toda análise, impor o jogo de impressões emotivas como substituto da discussão racional e fazer de simbolismos nebulosos a base de decisões práticas que afectarão milhões de pessoas é um crime ainda mais grave contra a inteligência humana; é escravizar toda a sociedade à confusão interior de um grupo de psicopatas megalómanos.

 

A partir de textos de Olavo de Carvalho


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