O QUE É UM MILAGRE?
Quando dizemos que, um dado facto, teve uma causa sobrenatural estamos a pressupor que existem factos com causas não sobrenaturais; mas, se Deus, teologicamente falando, é a causa última ou primeira de tudo o que acontece, então, esta é uma afirmação meramente tautológica; dizer que algo aconteceu porque Deus quis que acontecesse é sugerir que alguma coisa pode acontecer sem que Deus queira, o que é contraditório com a definição de Deus como omnipotente e causa primeira. Portanto, não consigo entender como é que as investigações científicas de acontecimentos milagrosos podem ser realizadas sobre fundamentos lógicos tão errados, tanto por quem aceita a sua existência como por quem não o faz.
Ora, por que será que estas dificuldades raramente, ou nunca, perturbam a mente de quem está discutindo o assunto?
Pelo seguinte motivo: quando se pretende investigar se um facto é milagroso ou
não, o que geralmente se faz, logo de início, é catalogar-se esse facto numa classe de factos semelhantes cujas
origens são consideradas não milagrosas.
Considere-se, por exemplo, um homem que foi curado de um cancro. Desde o início este facto é abordado da seguinte forma: “Aqui está o Sr. Zé Ninguém, que dizem ter sido milagrosamente curado de um cancro, mas, no entanto, existem várias pessoas que foram curadas de cancros de forma não milagrosa.”. Ou seja, primeiro encaixa-se esse facto particular na classe geral das chamadas “curas de cancro” e, de seguida, prossegue-se investigando se essa cura em particular teve origens sobrenaturais ou não.
Com isto, o facto
milagroso já está pré definido como não milagroso, pois já foi colocado sob uma
classe de fenómenos semelhantes que podem ser explicados de outra forma. Se,
tendo-o feito , ainda vamos à procura de uma causa milagrosa para o dito
facto, é o mesmo que andarmos à procura de algo que já estabelecemos de antemão
que não existe.
Portanto, além do impedimento metodológico, a
saber, o facto de as ciências naturais praticadas actualmente só poderem operar
dentro de limites definidos por elas próprias e dentro dos quais apenas o que é
mensurável - portanto “material” - pode ser observado, além desta dificuldade
metodológica, como digo , há uma dificuldade lógica intrínseca: o referido
facto está a ser catalogado numa categoria de factos que, por definição, foi
excluída desse tipo de investigação. Isto, está claro, dificultará enormemente
o andamento da mesma investigação.
Segundo este ponto de vista, a única diferença entre um facto milagroso e um não milagroso seria a sua causa, ou seja, a diferença estaria na causa, e não no fenómeno em si.
Mas se um fenómeno pertencer à mesma ordem de outros fenómenos, é quase impossível identificar nele alguma causa diferente daquela que foi indicada para todos os outros fenómenos da mesma espécie.
Por outras palavras, esse tipo de discussão geralmente ocorre numa atmosfera de confusão mental quase psicótica.
Na realidade, o que se deveria fazer, quero dizer, a maneira mais lógica (ou, menos tendenciosa) de investigar o fenómeno - supondo que não recebemos nenhuma revelação directa que o esclarecesse e partindo da premissa de que só o podemos investigar com as nossas luzes naturais, isto é, com a ajuda do Espírito Santo, mas sem nenhuma revelação especial - o que se deveria fazer, digo eu, era em primeiro lugar olhar para o que estamos a investigar; ou seja, temos que tentar delimitar o fenómeno milagroso através das suas características próprias, independentemente das suas causas, pois as causas já seriam uma explicação do fenómeno, e não é possível encontrar uma explicação para algo que nem sabemos o que é?
Todas as investigações do milagroso têm consistido exactamente em investigar as causas de algo que não conhecemos e que de antemão definimos pela presença dessas mesmas causas.
Portanto, se examinarmos, ainda que superficialmente, um fenómeno reconhecido pela Igreja Católica como milagroso, temos que delimitar o território para evitar dificuldades adicionais, não esquecendo que existem, é claro, inúmeros milagres que a Igreja não reconheceu como tal ou de que nem chegou a ter conhecimento.
Se tomarmos, digamos,
apenas aqueles que são reconhecidos pela Igreja como milagrosos, observaremos
neles algumas características que os distinguem de quaisquer outros factos, mesmo
sem ter em conta a hipótese de uma causa sobrenatural.
Por outras palavras, não precisamos investigar as
causas; ou o fenómeno tem um elemento distintivo em si mesmo, independentemente
de qualquer consideração das suas causas, ou então nem haveria qualquer motivo para
investigar o fenómeno milagroso, pois, sendo assim, não seria distinto de
qualquer outro facto.
Se existe uma razão para investigar factos
milagrosos, é porque há neles algum traço que os distingue dos restantes,
independentemente de sabermos as suas causas ou não.
Tomemos, por exemplo, o milagre mais indiscutível dos últimos tempos, o milagre de Fátima.
A primeira coisa que se nota no milagre de Fátima
é que não é um acontecimento único, isolado, atomístico, algo que acontece num
local num determinado momento. É uma sequência, quase um sistema, de factos que
aparecem de forma tão interconectada e inseparável que, se se descartar um
único de seus elementos, toda a história perde o sentido de vez.
O fenómeno começa quando as três crianças têm uma visão da Virgem Maria, a qual marca com eles uma série de encontros, volta nas datas marcadas e lhes transmite exactamente a mesma mensagem. A mensagem contém algumas profecias, com as datas aproximadas do que vai acontecer e ainda os sinais que permitirão identificar esses factos um pouco antes de acontecerem.
Foi anunciada, entre outros factos, uma guerra
mundial - a Segunda Guerra Mundial - que, disse a Virgem Maria, seria precedida
pelo aparecimento de uma luz estranha no céu, o que de facto veio a acontecer; pouco
antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, ocorreu na Europa continental um
fenómeno - uma aurora boreal - geralmente vista apenas mais ao norte, e logo
de seguida a guerra estourou.
Outro fenómeno foi a Revolução Comunista na
Rússia. Outro e ainda mais recente foi a apostasia geral entre os cristãos, ou
seja, a dispersão dos cristãos, a penetração de um elemento de traição nos
escalões mais altos da Igreja - tudo isso veio a acontecer.
Além disso, na data fixada por Nossa Senhora,
ocorreu um evento astronómico extraordinário que foi chamado a “dança do sol”;
o sol moveu-se no céu diante de milhares de testemunhas, e ao mesmo tempo houve
uma profusão de curas milagrosas entre os enfermos ali presentes e nas
redondezas. Além disso, a dança do sol foi vista não apenas por aqueles que
estavam naquele local, mas também por outros que estavam a muitos
quilómetros de distância e não sabiam que um encontro entre as crianças, a
multidão e Nossa Senhora estava a acorrer naquele momento.
Ora, é a este conjunto de eventos que se denomina milagre de Fátima. Não é só isto ou aquilo.
Qualquer um desses elementos,
isoladamente, poderia ser catalogado sob uma ciência particular e estudado pelos
respectivos métodos, mas o conjunto, como um todo, é inacessível à soma total
das ciências. Porquê? Porque esse conjunto é aquilo a que chamo um facto concreto
- na verdade, é antes uma sucessão concreta de factos. A sucessão é concreta no
sentido de que todos os factos evoluem em conjunto, um facto levando a outro e
vice-versa; um é anunciado de antemão, o outro traz em si a semente do próximo,
que, por sua vez, elucida o primeiro retroactivamente.
Então, eu pergunto: existe alguma ciência capaz de investigar as relações entre um fenómeno astronómico como a dança do sol, as curas milagrosas, as causas da Segunda Guerra Mundial, as causas da Revolução Russa, o fenómeno daquelas luzes que surgiram no céu pouco antes da guerra, e a capacidade (ou a incapacidade) de três crianças de terem uma visão de Nossa Senhora? Existe alguma ciência capaz de estudar tudo isso? Claro que não.
Este fenómeno é inacessível aos métodos de qualquer ciência. E é isso que o torna milagroso. Nem é preciso fazer apelo a alguma explicação de “causa sobrenatural” porque não temos a menor ideia do que causou tudo isso, e não precisamos a ter; o fenómeno é milagroso em si mesmo. Por sua própria estrutura e constituição interna, foge à possibilidade de ser apreendido explicativamente pelos meios humanos de conhecimento. Não somos nem mesmo capazes de conceber uma ciência que conecte de forma explicativa todas essas ordens de fenómenos ao mesmo tempo. Ele simplesmente desafia a inteligência humana.
Uma super ciência? Algo que misturasse astronomia, astrologia, história,
patologia, fisiologia - tudo isso em conjunto? Para explicar o milagre de Fátima
necessitaríamos de uma ciência capaz, não de penetrar nos factos que pertencem
a cada uma das ciências (factos seleccionados abstractamente de acordo com as
suas características essenciais), mas antes de penetrar no facto concreto
composto de múltiplos eventos.
Acontece que não é possível existir uma ciência
dos factos concretos - não pode haver. Nem mesmo apenas de um só facto
concreto.
O fenómeno milagroso é sempre um facto concreto, e o facto concreto compõe-se precisamente de uma infinidade de acidentes que, como tais, não têm nenhuma conexão lógica entre si. Eles têm uma conexão factual, acidental, por assim dizer, mas não existe uma ciência que abarque todas as conexões acidentais entre as suas milhares de linhas causais independentes.
Mas, o fenómeno milagroso distingue-se ainda de todos os outros fenómenos porque, nele, essa confluência de várias linhas causais, é, por assim dizer, evidente no próprio facto central do conjunto milagroso.
Por outras palavras, as conexões entre as várias linhas presentes da acidentalidade e da causalidade, que normalmente nos são inacessíveis, já estão esclarecidas, postas à vista, patentes, no próprio fenómeno milagroso.
O fenómeno milagroso, de alguma forma, tem uma
transparência que os fenómenos comuns não possuem. É como se algo da própria
estrutura da realidade se exibisse nele de forma espontânea - algo que não pode
aparecer nos fenómenos da vida quotidiana, muito menos nos fenómenos investigados
pelas chamadas ciências.
Um facto em cuja própria estrutura não podemos
identificar a clareza dessa conexão - sem levar em conta as suas causas - esse
facto, como se depreende do que acabo de dizer - deve ser excluído da ordem milagrosa. . . .
O que fazem, por sua vez, as ciências? Tendo observado
certos factos como ponto de partida, procuram encontrar-lhes uma explicação,
descrição ou articulação racional.
O que é, então, estudar cientificamente um facto observado? É enquadrar um facto real dentro da ordem, ou estrutura, da possibilidade, sendo que, a existência da estrutura da possibilidade é um pressuposto da própria actividade científica.
No entanto, a estrutura de
possibilidade é independente da
existência de qualquer facto real. As leis da lógica elementar, bem como as
leis da aritmética elementar, são independentes até mesmo da existência do
cosmos. O facto de um mais um ser dois, é independente da existência de todo o
universo; em qualquer universo possível, um mais um teria de ser
necessariamente dois. A estrutura da lógica e da aritmética elementar são a
estrutura da possibilidade universal. E, a possibilidade universal é exactamente o
que, do ponto de vista teológico, é a omnipotência divina.
Sabemos que, na realidade, no cosmos realmente existente, nem toda possibilidade, nem tudo o que é possível, é actualizado. Sabemos, também, que tudo o que acontece, tudo o que é actualizado, é possível.
Então, o que faz a ciência? Vai dar uma explicação lógica para um facto, o que é o mesmo que enquadrar esse facto dentro da ordem da possibilidade, dentro da estrutura da possibilidade.
Os factos, ou seja, o mundo da experiência pura, o mundo
empírico é, em si mesmo, opaco. Só se torna racionalmente inteligível quando
enquadrado na estrutura possibilidade. Quando conectamos duas coisas dizendo que uma foi
causa da outra, conectamos a ordem factual com a ordem causal. E qual é a
ordem causal? É a estrutura da possibilidade.
Agora, a estrutura da possibilidade universal é
independente e anterior a qualquer evento que seja. É, por assim dizer, eterna.
Isso significa que, se a estrutura da possibilidade não existisse, nenhum
estudo científico de qualquer coisa seria possível. Seríamos mais ou menos como
animais capazes de receber factos, mas não de compreender suas conexões
lógicas. Os animais podem compreender conexões lógicas atomísticas, mas, ao
contrário de nós, eles não podem ter um sistema, uma estrutura de explicação
racional. Essa estrutura nada mais é do que a própria ordem de possibilidade,
considerada não na sua totalidade - o que para nós é impossível - mas sim
dentro de certos limites que nos são acessíveis.
Então, quando será que vamos encontrar uma explicação científica da causa do fenómeno milagroso? Nunca, nunca, nunca, nunca, nunca. Não por causa de alguma limitação de nosso conhecimento, mas por causa da própria estrutura do facto milagroso e por causa da estrutura do que chamamos ciência. . . .
Se não é possível existir uma ciência do facto concreto e se o
facto milagroso só se distinguir de todos os outros factos precisamente pelo
sua estrutura de facto concreto, então o facto milagroso está eternamente
fora do domínio da ciência.
Mas, embora o facto milagroso nos seja inacessível por meio de uma explicação, ele, pela sua mera presença, traz explícito em si, e imediatamente perceptível, aquelas conexões entre ordens de causas que normalmente não o são nos outros factos.
De certa forma, o facto milagroso tem uma inteligibilidade própria, que os factos não milagrosos não têm.
No milagre de Fátima, por exemplo, a visão que as
crianças tiveram - as curas milagrosas, as luzes que surgiram no céu, a dança
do sol, a Revolução Russa, a Segunda Guerra Mundial - tudo isto nos é mostrado como
tendo ligações internas, que normalmente não conseguiríamos ver. Isso significa
que o evento milagroso não pode ser explicado a não ser em si mesmo, por si só
e pela sua própria estrutura material que expõe as conexões causais que
geralmente não conseguimos ver.
Assim, de certa forma, o acontecimento milagroso inexplicável tem uma força dir-se-ia, não explicativa, mas iluminativa - que nos permite ver conexões que antes não víamos.
Nesse sentido, o facto milagroso tem a estrutura do que noutros
domínios é chamado símbolo.
O símbolo foi definido pela filósofa Susanne K.
Langer - uma das melhores estudiosas nesse campo - como a matriz de toda
intelecção. Ou seja, um símbolo não é algo que se entende em si mesmo, mas algo
que ajuda a entender uma série de outras coisas.
Considere-se, por exemplo, as narrativas bíblicas.
Muitas vezes não se entende o que está acontecendo, mas depois, à medida que cada
um começa a encontrar factos da vida real análogos aos factos das narrativas,
os factos observados tornam-se inteligíveis, graças ao poder unificador dos
símbolos; vários factos são reunidos sob uma espécie que é condensada no
símbolo.
Isso é exactamente o que o facto milagroso faz;
não o entendemos, mas ilumina as inúmeras conexões causais que geralmente não nos
são visíveis. Essa característica é própria do fenómeno milagroso.
Qualquer fenómeno, é claro, se considerado de uma certa maneira, pode ser simbólico, mas o facto milagroso já possui uma estrutura simbólica em si, e é inseparável dessa estrutura simbólica. É essa inseparabilidade do seu carácter simbólico que constitui a característica distintiva do fenómeno milagroso.
Por outras palavras, não é o milagre que deve ser
compreendido. Em vez disso, é tudo o resto que deve ser entendido à luz do
milagre. Todo e qualquer facto pode ser considerado simbolicamente, mas o
milagre tem de ser considerado simbolicamente. Não admite ser olhado de outra
forma. Porquê? Porque é da natureza do milagre mostrar fisicamente aquelas
conexões entre várias ordens causais que geralmente não aparecem à vista, sendo
exactamente isso que os símbolos fazem.
Visto desta maneira, o facto milagroso não precisa
ser explicado, porque o facto milagroso é a fonte de toda explicação; é o facto
milagroso que lança luz sobre tudo o resto. E é precisamente daí que vem o seu
nome - miraculum: algo digno de ser olhado, digno de ser contemplado.
Portanto, o
que Aristóteles disse sobre os ritos e os mistérios em geral também se aplica
aos milagres: eles não nos ensinam nada, mas deixam uma profunda impressão (e, estas
não são as palavras de Aristóteles, mas as minhas) que age como uma vitamina, por
assim dizer, sobre a nossa inteligência. “O Filósofo” (como, o designava S.
Tomás), portanto, antecipou, em três mil anos, a definição de
símbolo, cunhada por Susanne K. Langer, como sendo a matriz de toda intelecção.
Um milagre
não deve ser explicado em si mesmo, mas sim contemplado (separado,
suficientemente, de outros fenómenos, é claro) e usado posteriormente como uma
matriz para a compreensão de muitas coisas que estão a acontecer e que estão
para acontecer.
O fenómeno milagroso tem, pois, características
que nenhum outro fenómeno possui. Uma dessas características é que não pode ser
compreendido em si mesmo, isto é, não pode ser explicativamente compreendido em
si mesmo, mas lança luz sobre outros factos.
E, este deve ser o verdadeiro critério para o
estudo dos factos miraculosos.
Olavo de carvalho (traduzido do inglês por JFM,)
https://voegelinview.com/what-is-a-miracle/
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