Tudo Está(va) no Seu Lugar, Graças a Deus, …!

 

Lembro-me de Portugal há uns cinquenta anos atrás. Já, então, começava a ser atacado e deturpado pela chamada civilização moderna, mas continuava a ser uma bela terra de homens humanos e livres. Havia cidades e regiões completamente intactas, onde se respirava, num cenário quase medieval, a paz beatífica dum país ainda cristão. Portugal era pobre, mas os portugueses possuíam riquezas que Banco algum pode proporcionar: o amor, a cordialidade, a gentileza e a boa disposição. Portugal, em alguns aspectos, era sujo, mas duma sujidade antiga e saudável, natural e campestre, que não ofendia a formosura da natureza e não tirava ao ar a sua pureza; era incómodo, um tanto primitivo e desprovido dos confortos modernos, mas compensava o visitante com a quietude das suas ruas, o desafogo das suas praças, a paz das suas pequenas cidades e aldeias, com a tranquilidade da sua vida humilde e operosa, com a querida simplicidade dos seus costumes, a bonacheira simplicidade dos seus aldeões e homens de boa vontade.

Havia nesse tempo bandidos e, também, como agora, burlões, mendigos e prostitutas. Mas em medida modesta e tolerável, sob formas características e reconhecíveis. Os bandidos de outrora tinham algo de romântico e de gentil-homem, enquanto hoje os ladrões e gatunos são indivíduos brutais e crassos que transformaram os seus crimes numa grande e organizada indústria sem poesia, ocupando lugares de destaque e dirigindo empresas, bancos e até países. Os mendigos eram parte legítima da cristandade e como que pitorescos guardas das igrejas e dos palácios; hoje, vivem do “rendimento social de inserção” à custa de quem trabalha, detestando-o por ser mais inteligente e activo do que eles. Os burlões formavam uma classe à parte, simpáticos artistas da fraude contentando-se com pequenos lucros. Hoje, a burla é omnipresente, sendo consubstancial ao sistema. Às meretrizes, era preciso procurá-las nos lupanares; hoje, até universitárias e senhoras maduras conheceram os frutos da prostituição, tornada uma actividade corrente, facilitadora de “carreiras de sucesso”.

Adeus velho e querido Portugal: adeus gaiatos maltrapilhos, irrequietos e  descalços de Lisboa. Adeus, campinos e forcados ribatejanos. Adeus fadistas cantando à desgarrada no sossego dos bairros populares e guitarras tocando no silêncio das noites de verão. Adeus garridas varinas e vendedoras de flores com os seus pregões cristalinos. Adeus pescadores da Nazaré e pastores de rebanhos atravancando os caminhos. Adeus popular, alegre e engenhoso Portugal das romarias e procissões.

Nos anos desta infernal revolução, até o suave paraíso português se tornou num inferno de inquieto desassossego. A civilização moderna, a civilização do dinheiro e da tecnologia, invadiu o velho e adorável reino de Portugal para “civilizá-lo” à sua imagem e semelhança.

As ruas antigas, quase todas estreitas, feitas para um povo de peões e cavaleiros, estão, agora, atulhadas e de automóveis ruidosos e fedorentos. Nos pontos onde se ouviam as musicais lengas-lengas dos pregões, as canções das raparigas, os assobios dos rapazes e as gargalhadas alegres das comadres à porta de casa, só se ouve, agora, o zumbido contínuo dos carros, o estridor das rodas, o zunido das buzinas e sirenes e os coros cacafónicos e ensurdecedores das aparelhagens sonoras e altifalantes, por entre o vozear de linguagens estranhas de multidões de turistas e migrantes.

 Já não é possível parar-se numa praça para admirar descansadamente uma fachada ou uma estátua que, por milagre, tenha escapado à fúria de tudo “requalificar” segundo o horrível gosto da arquitectura moderna; o cérebro é atordoado e entorpecido por barulhos constantes, o corpo está sob a ameaça iminente de ser colhido e esmagado, os olhos são ofuscados por anúncios luminosos e edifícios disformes, duma fealdade agressiva e presunçosa.

 As máquinas e a tecnologia mudaram para pior a índole das pessoas. Todas estão com pressa, todas têm vozes duras, rostos tristes e cheios de desprezo; todas mostram os mesmos olhos cansados e ofuscados, ainda, pelos ecrãs a que vivem agarradas.

Os maus cheiros multiplicam-se no mesmo ritmo dos ruídos; e não apenas nas cidades. Até à beira mar, até em aldeias perdidas por entre colinas floridas, até em longínquos caminhos campestres, os perfumes trazidos pela brisa são cobertos e absorvidos pelo cheiro a gasolina, a óleo queimado e a lixo acumulado.

Nisto foi transformado o divino Portugal da minha infância. Parece agora mais rico, mais activo, mais “moderno”. Na realidade é mais pobre e mais feio.

As novas casas são uma espécie de enormes quarteis de cimento e vidro, anónimos e ignóbeis, que nos fazem sentir uma saudade enorme das humildes casas à antiga portuguesa, entre hortas e latadas, desprovidas talvez dos últimos confortos, mas consoladas pela verdura e afagadas pelo sol. Tudo que se construiu de novo em Portugal, nos últimos decénios, é mais pretensioso e indizivelmente mais feio. Por todo o lado se destroem casa bonitas, feitas à escala humana, para se erguer novos bunkers, colmeias odientas de pequenos idiotas abastados e cheios de si.

Nas estradas, nas cidades e nos campos a vista é vedada e ofendida por cartazes publicitários, com cores agressivas e néones estridentes, exaltando as virtudes duma inutilidade qualquer. Em toda a parte se cortam árvores e florestas autóctones para erguer monoculturas industrializadas ou os horrendos artefactos das novas “energias sustentáveis”.

Em Portugal - na esteira de todo o ocidente - este “modernismo”, com todas as suas conquistas escravizantes e desumanas, é senhor incontestado e triunfante sem que ninguém sinta se quer o dever de salvar, para alegria de todos, as suas antigas feições e belezas, a sua antiga paz; pelo contrário, está a tornar-se de dia para dia, um país mais barulhento, malcheiroso, vulgar, artificial e muitíssimo mais feio; cada vez menos admirável e agradável para se viver.

Dentro de poucos anos, se continuar neste caminho, os encantos e as glórias deste “jardim à beira-mar plantado” serão dominados, degradados e encobertos pelos ominosos produtos desta civilização barbárica, fruto infernal deste século enlouquecido.

 

 


Aroeira, ao nono dia do mês de Julho - dia de Santa Verónica Juliana - do ano da Graça  de N.S.J.C. de 2020

 

Por João Faria de Morais - a partir de um texto de Giovanni Papini – na data em que meu pai, se fosse vivo, completaria 96 anos e em memória do Portugal que ele tanto amou e que eu ainda conheci na minha infância. 

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