Vamos Brincar à Caridadezinha ?

 

“Tudo é relativo” defendem os modernos, querendo significar, com isso, não existirem verdades absolutas, que “cada um tem a sua verdade própria, não a podendo, portanto, impor aos outros”. 

Não se apercebem, no entanto,  que esta é uma afirmação profundamente imbecil.

Se a afirmação da inexistência de verdades absolutas fosse verdadeira…era falsa – contraditar-se-ia a si própria no acto de ser proferida pois, para poder ter alguma validade, tal afirmação teria, ela própria, de se erigir em verdade absoluta e, sendo assim, afinal, sempre existiria, pelo menos, essa verdade. Se, pelo contrário, tal afirmação for falsa, é despicienda.

Não existindo verdades objectivas, o pensamento e o raciocínio lógico tornam-se operações inúteis uma vez que o seu fim último é, precisamente, permitir ao intelecto humano, perante uma dada situação, conseguir aprender a realidade, chegando a  uma conclusão válida e verdadeira.

Se cada um pudesse criar a sua própria verdade, pelo mero facto de a pensar, com a sua mente – mente e mentira têm a mesma raiz etimológica – mens –, cada um poderia criar a sua realidade pessoal - deixando de existir, assim, uma Realidade objectiva. E, não existindo uma realidade objectiva independente do nosso pensamento, também não poderiam existir valores morais objectivos.

 Acontece que só é possível avaliar a validade de qualquer afirmação – até da a afirmação da inexistência de valores morais objectivos - recorrendo a conceitos morais objectivos; se uma afirmação não for verdadeira, honesta, honrada, etc., não terá qualquer validade.  

Quem consideraria honesto e válido o testemunho de alguém que defendesse a não existência da honestidade?

Quem defende “a inexistência de verdades objectivas” está-se a confessar incapaz de dizer a verdade - uma vez que não pode dizer algo que não existe; e, quem defende “não existirem valores morais objectivos”, está a afirmar-se amoral.

No estranho mundo destas pessoas, a razão é inútil pois já não serve para chegar a qualquer conclusão válida, nem para dirimir da veracidade ou da falsidade, da bondade ou maldade,  do que quer que seja - “quem sou eu para julgar?” perguntou recentemente um conhecido personagem fazendo eco da dúvida milenar formulada por Pilatos; elas renunciaram, já, à condição de seres humanos, uma vez que a capacidade de proceder a tais operações é precisamente o traço distintivo de toda a humanidade.

No entanto, apesar da sua irracionalidade, tais posições sempre foram muito populares, não porque as pessoas sejam facilmente enganáveis, mas porque são, na verdade, posições muitíssimo cómodas – evitam o desconforto terrível de se ter de apreender a realidade e, sobretudo, de se ter de avaliar, com verdade e sinceridade, os próprios actos e intenções.

Quando alguém se julga no direito de criar a sua própria verdade ou a sua própria moral - ou, no fundo, a sua própria realidade -, encontra-se, de repente, na situação mais confortável do mundo: a de tudo poder avaliar segundo a sua conveniência, as suas inclinações, os seus apetites e, em última análise, segundo a sua fisiologia  – aplica-se-lhe, como a ninguém a famigerada expressão “dono da verdade”.

Em termos teológicos, este é, no entanto, aquele pecado que não tem perdão – o Pecado Contra o Espírito Santo; consiste em não se aceitar a realidade, tal como foi criada por Deus, e em não aceitar a natureza das coisas tal como elas são; em querer alterar a estrutura da realidade adaptando-a às suas ideias, ao invés de procurar conformar as suas ideias à Realidade. Consiste, no fundo, em ficar-se fechado no seu próprio pequeno mundo psicológico, tomando-o pelo universo.

Ora, quem opta por viver neste universo pessoal, opta pelo irracional; substitui o logos pelo phatos; daí o fenómeno paradoxal de serem, precisamente, as pessoas que rejeitam a existência duma ordem moral objectiva, aquelas que se mostram (embora duma maneira selectiva e desequilibrada) as mais histérica, sentimental e obsessivamente moralistas; são relativistas, não acreditam na realidade da Realidade, não acreditam em valores morais objectivos e, no entanto, são altruístas, amáveis e militantemente preocupadas com a existência de (algumas) injustiças,

Como explicar uma tão óbvia contradição?

A resposta é simples e deduz-se do que atrás ficou dito: orgulho.

O orgulho é, hoje,  muito valorizado sob designações como auto-estima e, até, fomentado através de processos como o  auto-desenvolvimento.

Todo o discurso moderno, as múltiplas “terapias”, a “auto- ajuda” e a “educação” oficial, pretendem, em grande medida, fazer as pessoas “sentirem-se bem consigo próprias” – ou seja, sentirem-se orgulhosas de si.

E, sendo assim, não é de estranhar que elas se achem no direito de poderem pensar coisas contraditórias, pois desenvolveram a convicção de que são superiores à necessidade de se ser racional, lógico e consistente – e, pensam, até, que a assumpção da sua irracionalidade é a prova da sua superioridade de “livres pensadores".

Assim, uma pessoa que se diga relativista e pense que todo comportamento é contingente e fruto duma evolução cega, pode resolver, comportar-se altruisticamente porque... lhe apeteceu e porque isso a faz sentir-se bem consigo própria:

“Vejam todos, eu não acredito em nada, eu podia ser o maior dos egoístas, e no entanto sou tão bonzinho…”

São frequentes as histórias de grandes gatunos que um dia decidem ir ajudar na “sopa dos pobres”; de prostitutas que são generosas com os indigentes, os negligenciados e os fracos; de pais de família que levam uma vida inteira a negligenciar a mulher e os filhos, um dia resolvem “fazer voluntariado” numa IPSS dedicada a auxiliar crianças abandonadas; de filhos que deixam pais e avós para irem acudir a "refugiados" do outro lado do mundo;  de endinheirados que, no fim duma vida dedicada a amontoar dinheiro, explorando o próximo, decidem, com o que sobrou, ajudar os pobres e desvalidos.

Estes comportamentos, quando muito constituem aquilo a que se poderá chamar “virtudes imperfeitas” e que, as mais das vezes, não são virtudes nenhumas;  são apenas inclinações provenientes de disposições naturais próprias, ou de “estados de alma” criados por experiências pessoais de vida ou, até, de modas.

O criminoso, a “mulher da vida”, o pai e marido negligente, o filho ausente e o milionário, fazem estas acções pseudo-virtuosas para se sentirem bem consigo próprios, para se darem importância, para tentarem  criar-se uma boa consciência sem terem de passar pelo constrangimento de se arrependerem e tentar emendar o mal que fizeram; e, porque no fundo, fazer tais coisas, lhes dá prazer.

Não o fazem porque a razão o imponha ou por esses actos serem próprios de um ser humano que quer estar à altura da sua humanidade. E, a prova disso é que em todas as outras situações muito mais decisivas das suas vidas - e,  em relação a pessoas que lhes eram mais próximas e pelas quais, por tal facto, tinham muito maiores obrigações -  não actuaram segundo a regra da razão (o que é o mesmo que dizer, segundo as regras da moral) mas segundo os seu apetites, demonstrando um total desprezo pelas  virtudes que agora pretendem alardear.

O homem moderno julga-se o herói Nietzschiano da vontade própria;  vê-se como o criador do seu próprio sistema de significados, valores e fins, através do simples jogo das suas funções mentais.

“Eu fi-lo porque qui-lo!”, diz o herói da telenovela brasileira.

“I did it my way!”, diz uma canção preferida do mundo moderno.

Cada qual em auto-adoração - constantemente maravilhado com a  sua capacidade para desafiar a lógica e a sua ilusão de poder moldar o mundo à sua vontade  - paira sobre o abismo do seu niilismo sustentado pelo seu próprio orgulho.

 João Faria de Morais

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