A CRIAÇÃO DO ESTADO MODERNO


 Uma certa desonestidade aparece, logo, nas bases da metafísica de Hegel, quando ele proclama que o conceito de ser, enquanto indeterminado, equivale ao nada conferindo subrepticiamente validade ontológica absoluta a esse juízo que só tem sentido gnoseológico, isto é, confundindo a ordem do ser com a ordem do conhecer, o que, num homem da sua habilidade lógica, verdadeiramente virtuosíssima, não pode ser um erro involuntário, mas um truque propositado. E, onde há safadeza intelectual há também, inseparavelmente, alguma forma mais grosseira, mais material, de desonestidade: pesquisas recentes demonstraram que Hegel, que se declarava fiel do protestantismo e nunca foi membro de qualquer grupo esotérico ou sociedade secreta, recebia no entanto dinheiro de agremiações maçónicas interessadas em promover a ideia de uma Religião de Estado que substituisse à Igreja cristã (católica ou reformada)[1].

Com requintada habilidade sofística, o autor da Filosofia da História argumentava, de facto, em prol do cristianismo, mas sublinhando que, como o Estado moderno incorpora e realiza nas suas leis a essência perfeita do cristianismo, a Igreja se tornou desnecessária e o Estado vem a ser a suprema autoridade religiosa.

Isso não faz de Hegel um intelectual de aluguer, pois a opinião que ele aí expressa não é só a de quem lhe paga, mas também a sua própria. Mas até que ponto o prémio financeiro não ajudou a cegar o filósofo para inconsistências que de outro modo ele teria percebido?

 Pois se por um lado não há como duvidar da sinceridade com que defende a liberdade de consciência individual, por outro é um facto que, ao fazer do Estado moderno a condição necessária e suficiente dessa liberdade omitindo-se de a defender contra o próprio  Estado , acaba por se colocar, inadvertidamente, ao serviço da causa que mais nitidamente caracteriza a política do Anticristo sobre a Terra: investir o Estado de autoridade espiritual, restaurar o culto de César, banir deste mundo a liberdade interior que é o reino de Cristo.

 Esta intenção é geralmente associada ao comunismo. Mas ela foi adoptada pelas três formas do Estado moderno: a comunista, a nazi/fascista e a liberal. As três procuraram com igual afinco substituir-se à Igreja na condução espiritual dos povos:

A primeira, pela violência física e psicológica, proibindo cultos, fuzilando religiosos, institucionalizando nas escolas o ensino do ateísmo, fechando templos, nomeando cardeais fantoches para ludibriar os poucos fiéis restantes.

 A segunda, de maneira ainda mais ostensiva, pelo culto obrigatório da Nação e do Estado.

 Mas o Estado liberal, que professa nominalmente a liberdade religiosa, é dos três o mais eficiente no combate à religião, como se vê pelo facto de as massas,embora tenham conservado sua fé religiosa sob a opressão nazi/fascista e comunista, facilmente cederam ao apelo das “novas éticas disseminadas pela indústria do espectáculo nas modernas democracias, e abandonaram, com a religião, até mesmo os preceitos mais óbvios do direito natural - exercendo livremente seus direitos humanos sob a protecção do Estado democrático, as mulheres que praticam nos EUA um milhão e meio de abortos por ano em breve terão superado as taxas de genocídio germano-soviéticas.

 Muito mais eficiente do que as tiranias de Hitler e Stalin é o regime liberal que, legalizando e protegendo todas as exigências tirânicas e autolátricas de cada ego humano, produz milhões de pequenos Stalins e Hitlers.

Por outro lado, compensando astuciosamente o desequilíbrio que a libertação desenfreada dos desejos poderia causar, o Estado liberal produz novos códigos repressivos que, descarregando a reacção violenta do superego em alvos moralmente inócuos (o fumo, os beijos roubados, os piropos de rua, o machismo, o vocabulário corrente, as piadas), dão um Ersatz de satisfação ao impulso natural da moralidade humana, impedindo-o de expressar-se numa condenação frontal de um estado de coisas marcado pela impostura obrigatória e universal.

 Uma sociedade, com efeito, que pune um olhar de desejo e dá protecção policial ao assassinato de bebés nos ventres das mães é, de facto, a mais requintada monstruosidade moral que a humanidade já conheceu.

 É claro que o Estado liberal não o faz por meios ditatoriais, mas com o apoio e até por exigência dos eleitores no pleno gozo de seu direito de exigir e legislar. Pairando acima de todos, sem nada impor, ele apenas regula sabiamente os conflitos de interesses, que, excitados até à exasperação pelo estímulo incessante do espírito reivindicativo, só se tornam governáveis mediante o nivelamento por baixo, que termina sempre pela instauração duma moral invertida.

Todas as novas reivindicações, resultam em novas leis, cada nova lei resulta em nova extensão da burocracia governamental, fiscal e judiciária, e, assim, passo a passo, movido pela dialéctica infernal do reivindicacionismo, o Estado, sem deixar de ostentar o prestígio duma aparência democrática, acaba por se imiscuir em todos os sectores da vida humana, por regulamentar, fiscalizar e punir até mesmo olhares, risos e pensamentos.

 E, no instante em que regula a vida interior dos indivíduos, eis que o Estado liberal, enfim, cumpre à risca o programa hegeliano, instaurando-se como suprema autoridade espiritual, moral e religiosa, reinando sobre as almas e as consciências com o novo Decálogo dos direitos humanos e do politicamente correcto.

 

O Estado democrático e igualitário é, no entanto, menos uma realidade que uma aparência. A nova sociedade, como todas as anteriores, tem as mesmas duas castas governantes  a sacerdotal e a aristocrática, a autoridade espiritual e o poder temporal que existirão onde quer que seres humanos se aglomerem numa colectividade que seja maior  que uma família; que existirão ora de maneira explícita, consagrada na constituição política nominal, ora de maneira implícita, invisivelmente entre-tecidas na trama de uma constituição que não reconhece a sua existência mas que não as pode impedir de serem a verdadeira distribuição do poder; que subsistirão como um código secreto no fundo de todas as constituições políticas, sejam democráticas ou oligárquicas, monárquicas ou republicanas, liberais ou socialistas, porque estão imbricadas na constituição ontológica e até mesmo biológica do ser humano, sendo uma constante do espírito humano, que nenhuma constituição, lei ou decreto, ainda que fundado na vontade da maioria, pode revogar.

Foi por isso mesmo que a sociedade democrática, enquanto professava a igualdade na distribuição do poder, teve de se elitizar a um ponto que seria inimaginável para os nossos antepassados. Pois uma coisa é ideologia igualitária, outra coisa é sociedade igualitária. 

Que a ideologia liberal-democrática se tenha transformado no instrumento da mais formidável concentração de poder nas mãos de uns poucos, é menos uma ironia da História do que uma fatalidade inerente à natureza do poder: não podendo eliminar as castas governantes, ocultou-as, aumentando assim o seu poder. E embora elas ressurjam sob novos nomes como burocratas estatais e intelligentzia, ninguém as reconhece, pois todos creem que castas só existem na Índia ou no passado medieval.

Os nossos contemporâneos, imbuídos de ilusão igualitária, creem que o mundo caminha para o nivelamento dos direitos, sem se perguntarem se esse objectivo pode ser realizado por outros meios senão por uma cada vez maior concentração de poder nas mãos de uns poucos.

 Esta ilusão torna-os cegos para as realidades mais patentes, entre as quais a da elitização, sem precedentes, dos meios de poder. O imaginário moderno concebe, por exemplo, o senhor feudal como o epítome do poder pessoal discricionário, e não se dá conta de que o senhor feudal estava limitado por toda sorte de laços e compromissos de lealdade mútua com seus servos, e que além disso não tinha outros meios de violência senão uns quantos cavaleiros armados de espada, lança, arco e flecha; homem entre homens, era visto por todos no campo e na aldeia, caminhava ou cavalgava ao lado de seu servo, às vezes trazendo-o na garupa, de volta da taberna onde ambos se haviam embriagado, e podia portanto, em caso de grave ofensa, ser atingido, inerme, nas campinas imensas onde o grito se perde na distância, por uma lâmina vingadora, pela foice do camponês ou, até, por uma faca de cozinha.

Em comparação com ele, o homem poderoso de hoje está colocado a uma tal distância dos dominados, que sua posição mais se assemelha à de um deus perante os mortais.

Em primeiro lugar, os poderosos estão isolados de nós geograficamente: moram em condomínios fechados, cercados de portões electrónicos, alarmes, guardas armados, matilhas de cães ferozes. Não entramos lá. Em segundo lugar, seu tempo vale dinheiro, mais dinheiro do que nós temos; falar com um deles é uma aventura que exige a travessia de barreiras burocráticas sem fim, meses de espera e a possibilidade de sermos recebidos por um assessor dotado de desculpas infalíveis. Em terceiro, os ocupantes nominais dos altos cargos nem sempre são os verdadeiros detentores do poder: há fortunas ocultas, potestades ocultas, causas ocultas, e os nossos pedidos, as nossas imprecações e mesmo os nossos tiros arriscam acertar num testa de ferro inócuo, deixando a salvo o verdadeiro destinatário que desconhecemos. Perdemo-nos na trama demasiado complicada das hierarquias sociais modernas, e temos razões para invejar o servo-da-gleba, que ao menos tinha o direito de saber quem mandava nele.

Após dois séculos de democracia, igualitarismo, direitos humanos, Estado assistencial, socialismo e progressismo, eis a parte que nos cabe do latifúndio global: os poderosos pairam acima de nós na nuvem áurea de uma inatingibilidade divina.

O servo-da-gleba também tinha o direito de ir e vir, sem passaportes ou vistos e sem ser revistado na alfândega (o primeiro senhor de terras que resolveu taxar a travessia de suas propriedades desencadeou uma rebelião camponesa e pereceu num banho de sangue; o episódio deu tema a uma novela de Heinrich von Kleist: Michel Kolhaas). Tinha ainda o direito de mudar de território, caso lhe desagradasse o seu senhor, e instalar-se nas terras do senhor vizinho, que era obrigado a recebê-lo em troca de uma promessa de lealdade. E, por fim, se caísse na mais negra miséria, tinha as terras da Igreja, onde todos eram livres para plantar e colher, por um direito milenar; a Revolução apoderou-se dessas terras e leiloou-as a preço vil, enriquecendo formidavelmente os burgueses que podiam comprá-las em grande quantidade, e criando a horda dos sem-terra que foram para as cidades formar o proletariado moderno e trabalhar dezasseis horas por dia, sem outra esperança senão a de uma futura revolução socialista (que os viria a recolocar numa condição similar à dos escravos romanos). E, se através de lutas e esforços sobre-humanos o movimento sindicalista obteve finalmente, para essa horda, a jornada de trabalho de oito horas e a semana de cinco dias, ela ainda está muito abaixo da condição do camponês medieval, que não trabalhava, em média, senão uns seis meses por ano.

 Eis como o progresso dos direitos nominais não se acompanha necessariamente de um aumento das possibilidades reais.

Mas esta distinção escapa aos porta-vozes da ideologia progressista, que confundem palavras com coisas e intenções com actos.

Mas, por complicada que seja a sociedade, a dialéctica do poder no Estado moderno é diabolicamente simples: incentivados a fazer uso de seus direitos, os cidadãos reivindicam mais e mais direitos; os novos direitos, ao serem reconhecidos, transformam-se em leis; as novas leis, para poderem ser aplicadas, requerem a expansão da burocracia fiscal, policial e judiciária; e assim o Estado torna-se tanto mais poderoso e opressivo, quanto mais se multiplicam as liberdades e direitos humanos.

Esse processo não é inconsciente: em todos os países do Primeiro Mundo, o Estado tornou-se o proxeneta assumido de todas as minorias insatisfeitas, de cujas queixas necessita para justificar sua expansão.

 Protestos e reivindicações incessantes são necessários para manter a sociedade num estado de divisão e de mudança psicológica acelerada, que não possa ser administrado senão por uma burocracia omnipresente. São necessários também para debilitar todos os poderes sociais intermediários, de modo que o Estado possa pairar soberanamente sobre um mar de átomos humanos nivelados e desorganizados entropicamente.

Por isso a ideologia neoliberal, tão veraz ao discernir os factores que obstaculizam ou fomentam o desenvolvimento económico, equivoca-se ao sugerir que o remoção das gorduras do Estado - o abandono das actividades que não lhe são próprias - esteja associado de modo automático e óbvio a uma promessa de maior liberdade para os cidadãos. Pois não é só mediante o exercício de actividades impróprias e acidentais que o Estado oprime as pessoas, mas sim também e principalmente daquelas que lhe são mais essenciais e próprias: o fisco, a polícia, a justiça, a educação pública. E estas, em vez de se retrairem no quadro liberal, tendem antes a crescer desmesuradamente.

 E, isto, por duas ordens de razões: primeiro, porque foi precisamente para as poder expandir que o Estado se retirou da economia; segunda, porque à medida que se descarrega do fardo económico o Estado busca para si novos papéis que justifiquem sua existência, e acaba por se imiscuir em todos os sectores da vida humana antes entregues ao arbítrio privado.

Este é um ponto que os pensadores neoliberais devem examinar com cuidado, pois as contradições teóricas no seio de uma ideologia podem ser as sementes de futuros conflitos que ultrapassem o terreno das meras ideias.

Não é coincidência fortuita que, nos países do Primeiro Mundo, a vitória esmagadora das economias capitalistas tenha vindo em conjunto com a crescente intromissão do Estado na moral privada. Isso acontece tanto nas economias neoliberais como nas social-democráticas.

Nos EUA, a autoridade pública regulamenta hoje da maneira mais directa e ostensiva todas as relações humanas, mesmo as mais íntimas e informais, nada deixando para a livre decisão do indivíduo, da família e das pequenas comunidades.

 O poder paternal, por exemplo, deixou de ser um direito natural inerente à condição humana, para se tornar uma concessão do Estado, revogável ao menor sinal de abuso.

Um amigo meu, exilado, desistiu de morar na Suécia, onde um governo hospitaleiro lhe dera morada gratuita, assistência médica e reforma dourada , por não suportar mais viver num país onde a insolência juvenil é protegida pela polícia e onde ser pai é expor-se a toda sorte de humilhações nas mãos de uma santa aliança entre os pirralhos e os burocratas.

A educação e as comunicações de massa dois sectores entregues ao império de intelectuais activistas que um tanto inconscientemente são os mais dóceis colaboradores do Estado modernizante atacam por todos os meios as velhas relações comunitárias fundadas no costume, na religião ou na natureza das coisas, para acelerar a sua substituição por relações criadas artificialmente pela administração estatal ou pela dinâmica do mercado.

Cultivam, por exemplo, a mentira de que as novas gerações escapam ao controle paterno porque, graças à TV e aos computadores, ficam mais inteligentes a cada dia que passa uma asserção que é desmentida pelo miserável desempenho cultural dos geniozinhos mal lhes damos um livro para ler. Às vezes vão mais longe: advertem as crianças contra os graves perigos que correm ao confiar nos seus pais em vez de se entregarem à protecção do Estado.

 É frequente, os media, fundando-se em estatísticas muito grosseiras, espalharem que a maior parte das violações de menores é praticada pelos próprios pais, alertando os jovens para esse problema social e incitando directamente os leitores juvenis a suspeitarem dos pais, a confiarem de preferência na polícia e nos assistentes sociais o que se funda no pressuposto de que não há violadores na classe dos funcionários públicos. 

A expansão do olhar fiscalizador do Estado (e da intelligentzia) para dentro da esfera privada tem como uma de suas mais graves consequências a redução da diferença entre o moral e o jurídico diferença que, resguardando da intromissão oficial áreas vitais do comportamento humano, sempre foi uma das garantias básicas da liberdade civil.

 Até há umas décadas atrás, o pai de família que tivesse "um caso" com a empregada atrairia sobre si a desaprovação da esposa, dos filhos, dos vizinhos, da paróquia um castigo moral infligido espontaneamente pela comunidade; e este castigo, sendo proporcional à falta cometida, era mais do que suficiente para fazer justiça. Quando ao castigo moral se soma porém a sanção penal e administrativa, o caso passou da esfera ética para a jurídica e o Estado, a pretexto de proteger as ofendidas, na verdade o que faz é usurpar uma das funções básicas da comunidade, que é a de fiscalizar a conduta moral de seus membros.

O Estado torna-se, assim, cada vez mais o mediador de todas as relações humanas, mesmo as espontâneas e informais um galanteio, um olhar, a simples descortesia de acender um cigarro num ambiente fechado. 

Aqueles, por exemplo, que veem algo de bom nas leis contra o fumo são cegos para a monstruosidade que reside no facto de a esfera jurídico-penal invadir o campo das boas-maneiras.

Uma prova de que a intromissão do Estado visa menos a proteger as supostas vítimas de abusos do que a suprimir as velhas formas de associação é que as novas legislações de direitos dão sistemática preferência às reivindicações que separam os homens sobre aquelas que os unem.

 A protecção oficial ao aborto, por exemplo, faz da mulher uma unidade autónoma, que decide ter ou não ter filhos sem a menor necessidade de consulta ao marido. A procriação deixa de ser uma decisão familiar, para se tornar um trato em separado entre a mulher e o Estado: o divide ut regnes invade o quarto nupcial.

O Estado utiliza-se das reivindicações de autonomia dos indivíduos reivindicações particularmente fortes nos jovens, nas mulheres, nos discriminados, nos ressentidos de toda a sorte , como de um isco para os prender na armadilha da pior das tiranias. Libertando os homens de seus vínculos com a família, a paróquia, o bairro, protegendo-os sob a imensa rede de serviços públicos que os livra da necessidade de recorrer à ajuda de parentes e amigos, oferecendo-lhes o engodo de uma garantia jurídica contra os preconceitos, antipatias, sentimentos e até olhares de seus semelhantes uma garantia jurídica contra a vida, em suma , o Estado na verdade divide-os, isola-os e enfraquece-os, cultivando as susceptibilidades neuróticas que os infantilizam, tornando-lhes impossível, por um lado, criar ligações verdadeiras uns com os outros, e, por outro, sobreviver sem o amparo estatal e muita professional help de um exército de assistentes sociais.

 Niveladas todas as diferenças, cada ser humano torna-se uma unidade abstracta e amorfa, o cidadão, nem homem nem mulher, nem criança nem adulto, nem jovem nem velho, cuja soma compõe a massa atomística dos protegidos do Estado tanto mais inermes e impotentes quanto mais carregados de direitos e garantias.

 Daí o fenómeno alarmante da adolescência prolongada hordas de cidadãos, biológica e legalmente adultos, devidamente empregados e no gozo de seus direitos, mas incapazes de assumir qualquer responsabilidade pessoal nas ligações mais íntimas; perpetuamente à espera de que alguém faça algo por eles; cheios de autopiedade e indiferentes aos sofrimentos alheios; sempre trocando de namoradas, de amigos, de terapeutas, de planos e objectivos de vida, com a leviana desenvoltura de quem troca de camisa.

 Se a bête noire visada por todas as campanhas de protecção dos direitos é sempre o macho adulto heterossexual, isto não ocorre por casualidade nem por mera birra feminista, mas por uma exigência intrínseca da dialéctica do poder: numa sociedade onde todo cidadão pertencente a esse grupo é estigmatizado como um virtual espancador de mulheres, sedutor de incautas e violador de crianças, não espanta que ninguém queira amadurecer para ingressar nele; que todos prefiram permanecer adolescentes e, no mínimo, sexualmente indecisos o que é uma condição sine qua non para a dissolução dos caracteres na sopa entrópica da cidadania.

 Evoluímos, assim, para uma sociedade onde não haverá mais a diferença entre adultos e crianças, pois todos serão menores de idade; onde já não haverá pais e filhos somente a multidão inumerável dos órfãos de todas as idades, reunidos num imenso colégio interno sob a tutela do Estado protector, cada um com um luzente crachá de cidadão”[3].

 E a situação assim criada terá o dom da auto-multiplicação: após ter infantilizado os cidadãos, o Estado alegará a deficiência de seu juízo moral para se meter cada vez mais em suas decisões privadas.

A intromissão directa nas relações familiares hoje praticada pelo media, exemplifica uma entre dezenas de maneiras pelas quais a aliança do Estado modernizador com a intelectualidade activista e com as forças do mercado utiliza as crianças e jovens como agentes de transformação social, um termo elegante que significa, em português claro, instrumentos de agitprop. O uso de menores de idade como veículos de propaganda, embora seja claramente um abuso da inocência alheia, tornou-se de há umas décadas para cá um costume tão generalizado que, dessensibilizados pela repetição, já não reparamos no que ele tem de imoral e criminoso. 

Começou, na Revolução Francesa. Foi depois assimilado pelos anarquistas e comunistas: usando garotos fanatizados para atirar bombas na aristocracia, esses movimentos tinham não somente um exército de recrutas facilmente governáveis, mas levavam ainda a indiscutível vantagem publicitária dos martírios infantis.

 Em contrapartida, a indústria capitalista descobriu o emprego publicitário da candura infantil para a venda de toda sorte de produtos. O uso foi duplo: por um lado, as crianças posando em anúncios funcionavam como emblemas, fortemente atractivos para a sentimentalidade popular, das qualidades excelsas que se desejava associar a determinados produtos. Por outro, caso o produto se dirigisse ao próprio público infantil brinquedos ou doces , podia-se contar com o tremendo apoio representado pela pressão que as hordas de consumidores juvenis exerceriam sobre seus pais. 

Na década de 60, as seitas pseudomísticas, investindo de preferência sobre o público juvenil, puderam contar não somente com reservas de credulidade quase inesgotáveis, mas também com a acção de solapamento com que a tagarelice adolescente ia minando os alicerces da confiança familiar, até fazer com que pais e mães, desesperados pela inocuidade de seus argumentos, acabassem por se render e assimilar ainda que parcialmente toda sorte de novas crenças e manias, por bárbaras e imbecis que fossem, ao menos para salvar o que restasse da comunicação doméstica.

 Porém o melhor de tudo veio a partir da década de 80, quando praticamente todas as organizações empenhadas em qualquer tipo de objetivos soi disant humanísticos, libertários, educacionais etc., adoptaram maciça e universalmente o uso do marketing infanto-juvenil, tornado assim, pela repetição universal, um costume legítimo e aceitável que já não nos inspira o que em épocas menos abjectas seria uma natural repugnância.

 Hoje em dia já não são partidos radicais nem tubarões capitalistas que exploram o narcisismo infantil e a vaidade juvenil como instrumentos de pressão para nos levar a fazer o que não queremos, a comprar o que não precisamos, a renegar nossas crenças e valores e a adaptarmo-nos a toda sorte de caprichos idiotas para não sermos reprovados socialmente e não nos tornarmos párias. Não: quem faz isso já não são organizações subversivas, comerciantes inescrupulosos e seitas de excêntricos: são fundações educacionais, são ONGs dirigidas por intelectuais de prestígio, são governos, são organizações internacionais como a ONU, a Unesco são, enfim, aquelas entidades que professam exactamente defender os mais altos valores humanos, entre os quais... o respeito à criança e ao adolescente.

Mas, se já é um desrespeito intolerável usá-los como instrumentos de campanhas de vasta envergadura, cuja origem desconhecem, cujas implicações políticas mal imaginam,  mais cruel ainda é que esse uso seja fundado, sempre e sistematicamente, na lisonja mais descarada à vaidade pretensiosa do público juvenil, de modo a dar a entender a essas hordas de mini-imbecis que nada está acima de sua compreensão, por mais imaturos e inexperientes que sejam; que não há assunto, por mais subtil, por mais obscuro, no qual suas opiniões e desejos não devam, em última análise, prevalecer, pois, afinal, Morgen zu uns gehört[4]  e, por conta do brilhante futuro a que são convocados, já devem ir exercendo no dia de hoje sua pesada quota de poder. 

Devem, por exemplo, ouvir a mensagem da casta intelectual, retransmitida por professorazinhas semiletradas, e levá-la aos seus lares, onde imporão mensageiros da modernidade os novos valores e critérios a seus atónitos progenitores. Devem ler com atenção devota o Estatuto da Criança e do Adolescente e, ao chegar a casa, reivindicar de seus pais o cumprimento dos quesitos ali formulados, segundo a interpretação que lhes deem o notório saber jurídico de suas mestras e a peculiar acuidade jurisprudencial de meninos de oito anos. Devem receber os ensinamentos morais transmitidos por espevitadas actrizes de TV as mais altas autoridades em questões de consciência, como se sabe e em seguida repeti-los em família, até que pai e mãe, temerosos de serem ultrapassados para, acabem adoptando toda sorte de puerilismos da moda como se fossem as novas Tábuas da Lei.

O uso de crianças como agentes de transformação social tem consequências temíveis, não só para elas mesmas,  mas para a sociedade em geral. Em primeiro lugar, leva-as a um sentimento hipertrofiado de sua própria importância, tornando-as virtualmente inadaptadas às limitações da vida adulta: o menino que, na adolescência, se sentiu um líder, um agente criador do destino colectivo, terá, ao ingressar no mundo da economia e do trabalho, a decepção de ver que agora se tornou um número anónimo, um joão-ninguém e não haverá outro meio de escapar da depressão daí decorrente senão agarrando-se a sonhos e ilusões juvenis, isto é, adquirindo os traços e sintomas da adolescência prolongada.[5] Em segundo lugar, é óbvio que a lisonja às pretensões mais descabidas da juventude é uma das causas principais da criminalidade juvenil, que cresce assustadoramente em todo o mundo.

 A intelligentzia, que é a maior culpada pela utilização dos menores como instrumentos para o marketing dos novos valores, isenta-se então de sua responsabilidade, procurando atribuir a criminalidade juvenil ao atraso económico e à miséria.

Do mesmo modo, a classe que propagou a moda do sexo livre e o culto erótico das ninfetas (festejando por exemplo Nabokov, Lewis Carroll e as fotos de David Hamilton) enche-se de brios hipócritas ao denunciar abusos sexuais contra menores de idade, dando a entender que são efeitos da pura desigualdade económica, para os quais a cultura não contribuiu em absolutamente nada, como se as acções humanas resultassem directamente do saldo bancário e não dos desejos alimentados pela imaginação.

Quanto à família, a ideia de sua aliança natural com o Estado é um mito. O Estado só foi protector da família enquanto teve de atender à pressão de poderes sociais mais antigos, como a Igreja e os remanescentes da aristocracia. Mal se livrou desses aliados incómodos, revelou ser menos o protector da família que o protector do divórcio, do aborto e do sexo livre.

E, isto, porque a família e todas as comunidades tradicionais religião, círculos de amizade, lideranças e lealdades territoriais são por natureza os mais fortes oponentes da autoridade estatal, que elas procuram diluir numa hierarquia de poderes sociais diferenciados e numa complexa rede de associações informais. A sociedade moderna caminha decisivamente para a destruição desses poderes intermediários e das associações humanas que os sustentam, de modo que o indivíduo fique sem conexões orgânicas em seu redor, impotente e solitário no oceano do mercado livre, e ligado directamente só ao Estado.[6]

O número assombroso de indivíduos que, na Europa e nos EUA, vivem sem família, sem amigos, sem outra relação humana excepto com os funcionários da previdência social, é a mais triste demonstração desse facto. Esse exército de solitários é o resíduo inevitável de uma equivocada luta pelos direitos humanos.

Os movimentos de direitos, chefiados como geralmente são por pseudo-intelectuais de miolo mole, nunca se dão conta de que suas conquistas são obtidas à custa da inflação do poder estatal, do definhamento das relações humanas, da extinção de todas as virtudes morais básicas que tornam a vida digna de ser vivida.

A prova mais contundente é a proliferação de novas esquadras de polícia e tribunais especializados, que se segue a cada nova proclamação de direitos:  da mulher,  do menor, da terceira idade; dos gays; em seguida virão as dos deficientes físicos, dos loucos, dos gordos, e talvez até dos esquisitões, incumbida de proteger pessoas como o autor destas linhas contra aqueles que nos chamarem de esquisitos.

 Nenhuma avaliação séria da relação custo-benefício deixará de mostrar que, em cada um desses casos, a protecção que essas entidades recém- criadas darão aos novos direitos é apenas uma possibilidade teórica, ao passo que a ampliação do poder estatal é o resultado imediato, líquido e certo de sua mera existência.

 Esta existência aliás terá de ser financiada por todos aqueles que, jamais tendo abusado de uma donzela, de um menor de idade ou de quem quer que seja, pagarão para ver sua autoridade familiar contestada por funcionariozinhos semiletrados e arrogantes, imbuídos da missão de proteger, em princípio, todas as crianças contra todos os pais e todas as mulheres contra todos os homens.

 E quando se verificar enfim que todo esse crescimento canceroso da burocracia não diminuiu em nada as violências que lhe servem de pretexto, isto só será um novo pretexto para verberar a irresponsabilidade moral dos cidadãos e justificar a criação de mais e mais órgãos policiais, judiciais, assistenciais e assim por diante.

 O Estado tende a alimentar a irresponsabilidade moral para se poder alimentar dela.

Muitas pessoas acreditam que a proliferação das ONGs prova uma tendência contrária uma tendência a limitar os poderes do Estado e enfatizar as iniciativas espontâneas dos cidadãos. As ONGs podem ter surgido com essa intenção, mas, submetidas à lógica do mercado, elas não sobrevivem se não crescem; e não crescem senão quando se reúnem em imensos conglomerados mundiais, que acabam por se associar a interesses estatais e empresariais e vão perdendo toda ligação com sua origem comunitária.

No Brasil, o esquematismo do debate entre privatizantes e estatizantes tem tornado essas contradições da ideologia neoliberal invisíveis tanto para seus adeptos como para seus opositores ambos iludidos pelo pressuposto de que, quando o Estado interfere na economia, interfere em tudo, e de que quando sai dela deixa as pessoas livres em tudo o mais.

 A superioridade das propostas liberais sobre as socialistas no que diz respeito à economia não nos deve levar ao engano de ver no neoliberalismo algo mais do que ele é: uma ideologia, com todas as limitações do pensamento ideológico, inclusive a de subrepor as expectativas aos factos e, de olho nos fins políticos ambicionados, não enxergar o que se passa diante de todos os narizes humanos, na actualidade deprimente da vida cotidiana.

Pois, se do ponto de vista económico o Estado e o mercado são poderes antagónicos e concorrentes, o mesmo não se dá quanto à administração da vida psicossocial, onde esses dois gigantes anónimos e impessoais frequentemente se aliam contra todos os liames comunitários e familiares que constituem a última protecção da intimidade humana.

Embora uma economia de mercado seja claramente menos opressiva para os cidadãos do que uma economia socialista, a liberdade para o mercado não garante automaticamente liberdade para as consciências. Na medida em que der por implícita e automática uma conexão que, ao contrário, só pode ser criada mediante um esforço consciente, o neoliberalismo omitir-se-á de cumprir o papel que se propõe, de abrir o caminho para uma sociedade mais livre por meio da economia livre: se uma opção económica se torna o critério predominante se não único a determinar os rumos da vida colectiva, o resultado fatal é que os meios se tornam fins.

E o mercado tem um potencial escravizador tão grande e perigoso quanto o do Estado.

O que há de mais irónico no confronto socialismo-neoliberalismo é que hoje em dia os derrotados socialistas, inconformados com a frustração de seus planos na nova ordem, acabam por descarregar todos os seus velhos ímpetos estatizantes no apoio descarado às intromissões do Estado neoliberal na vida privada, e assim tornando-se os aliados dos seus antigos inimigos num esforço comum para levar o neoliberalismo pelo caminho do pior.

resto  inclusive a moral privada e a intimidade das consciências. E os neoliberais, por julgarem que é mais vital preservar a liberdade de mercado do que qualquer outra, e por desejo talvez de apaziguar o ressentimento dos derrotados, vão cedendo, cedendo, até que o novo Estado acabe por construir, sobre o arcabouço da economia capitalista, uma espécie de administração socialista da alma o socialismo da vida interior.

Mais sábio seria que os adeptos de ambos os partidos, conservando cada facção a pureza de seus pontos-de-vista, concordassem em submeter a disputa ao critério de valores superiores, aqueles que conferem sentido e legitimidade moral a qualquer opção económica que seja.

 

A concepção iluminista do Estado leigo, com todas as doces promessas que trouxe à humanidade, carregava dentro de si o germe do monopólio estatal do sentido da vida: acima das religiões, acima das consciências individuais, é ao Estado casta dirigente ou aristocrática que cabe, sob as bênçãos da intelectualidade casta sacerdotal dirigir o processo de modernização, portanto determinar o sentido da vida colectiva, os valores e critérios morais, o certo e o errado, o verdadeiro e o falso.

Seja na social-democracia, seja no neoliberalismo, Ex Status nemo salvatur: fora do Estado não há salvação.

Esta é a única questão que importa para o destino do mundo: estaremos, por um caminho ou pelo outro, condenados a viver sob a religião de César?

 César tomou conta do que é de Cristo?

 Caso a resposta seja afirmativa e não vejo como escapar da resposta afirmativa, a não ser por uma hipotética rebelião das religiões contra o monopólio estatal do sentido da vida , surge então uma pergunta derivada: a submissão do mundo à religião de César não é a mesma coisa que a submissão do mundo a César?

  Olavo de Carvalho,  texto composto de vários trexos do livro Jardim das Aflições



[1] V., a propósito, o trabalho notável de Jacques DHondt, Hegel Secret. Recherches sur les Sources Cachées de la Pensée de Hegel, Paris, P.U.F., 1968.

 

[2] Embora não seja pai de família, um premiadíssimo escritor gay, no Jornal do Brasil de 1996, defendia como justa e saudável a prática da pedofilia, de vez que as criancinhas, aos três anos, já têm um tremendo sex appeal e jogos de sedução de fazer inveja a Sharon Stone. Ninguém saltou à goela do declarante, nem o expulsou a pontapés, nem muito menos se lembrou de processá-lo por apologia do crime. São todos pessoas educadas, cultas, de alma delicada e sentimentos estéticos incompatíveis com os instintos violentos. Somente a mim parece ter ocorrido a ideia de que seria difícil resistir ao impulso de abater a tiros, como a um cachorro louco, quem se aproximasse de meus filhos imbuído de semelhante doutrina.

[3] Citoyen: palavra terrível, cuja aura de prestígio vem do esquecimento: o principal direito que a Assembléia francesa concedeu ao citoyen foi o de servir obrigatoriamente ao Exército, sob pena de ir para a guilhotina. Com isto a Revolução atirou para os ares uma das mais belas conquistas da civilização — a liberdade pessoal de não guerrear, respeitada desde o Império romano — e inaugurou a era do envolvimento sistemático das populações civis no morticínio generalizado. Citoyen significa: súbdito da burocracia militarista.

[4] O futuro pertence - nos” — título e refrão do hino da Juventude Nazista.

[5] Por que os jovens de hoje têm tanta pressa de se realizar antes dos vinte e cinco anos e entram em depressão quando não o conseguem? Porque a mitologia do nosso tempo associou a ideia de juventude ao sentido da vida, de modo que, passada a juventude, a vida já não tem mais sentido.

[6] Resumindo o livro de Patricia Mongan, Farewell to the Family? (London, Institute of Economic Affairs, 1995), Janet Daley escreve em sua coluna em The Times, 5 jan. 1995: O que estamos produzindo é uma nova classe guerreira de homens separados da influência socializante da família e das responsabilidades domésticas... É apenas uma questão de tempo até que algum demagogo procure

organizar essa delinquência anárquica. Esses homens deslocados são o alimento ideal para o recrutamento fascista. Isso ocorre, segundo Morgan, porque o governo britânico adoptou um programa de desincentivos financeiros ao casamento e à estabilidade familiar, que só os casais mais determinados (e afluentes) podem ficar livres de suas desvantagens. Uma mãe solteira com dois filhos pode trabalhar 20 horas por semana a £4 por hora e terminar com £163.99, deduzido impostos e aluguel. Um homem casado pai de dois filhos, trabalhando por 40 horas com a mesma remuneração, será deixado com apenas £130.95. Trabalhando em período integral, ele ganhará £33 a menos que a mãe solteira trabalhando meio período. Pergunte a si mesmo por que, então, uma garota da classe operária não há-de considerar um marido como algo menos que inútil. E será ainda incentivada nessa convicção por suas irmãs feministas de classe média, cuja ideologia ajudou a criar essa política fiscal. O Estado encara agora cada pessoa como uma unidade autolimitada, atomizada, com estrita igualdade

matemática em termos fiscais. O fato de ser casada não conta para nada... O casamento está deixando de ser reconhecido pelos sistemas legais e fiscais. Sublinhando que toda essa situação foi criada no governo liberal da Sra. Thatcher, a colunista enfatiza que um velho slogan da esquerda — “arranhe a casca de um liberal e encontrará um fascista” — está se tornando verdade, num sentido diferente do que lhe davam os esquerdistas. Não é que o liberal, no fundo, seja fascista: é que a política liberal (ou, mais propriamente, liberacionista) cria hordas de homens isolados e revoltados que serão as massas de militantes fascistas de amanhã.

 

 

 

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