A Escolha Fundamental
Para o cristianismo, cada vida humana
tem um propósito, um sentido, inaparente para os que a rodeiam, de que o
próprio indivíduo só se vai apercebendo aos poucos, e que só se esclarecerá por
completo quando essa vida, uma vez encerrada, puder ser medida na escala da
suprema perfeição, da suprema sabedoria, da suprema santidade. Essa escala é
essencialmente a mesma para todas as épocas e lugares, e é conhecida pelos
exemplos dos santos e profetas, e no cristianismo, o exemplo do próprio Deus
encarnado. O problema humano fundamental é descobrir o meio de cada um se
aproximar desse ideal através da variedade de suas expressões simbólicas e
doutrinais, bem como das contradições e mutações da própria vida.
Para as modernas ideologias revolucionárias, a
vida individual não tem nenhum sentido e só adquire algum na medida da sua
participação na luta por uma melhor sociedade futura. É a prossecução desse objectivo
que servirá de medida para a avaliação dos actos individuais. Atingida a meta,
tudo o que tenha concorrido para a "apressar", mesmo o pecado, a fraude, o
crime e o genocídio, será resgatado na unidade do sentido final e portanto
considerado bom. O que contribua para a “atrasar” será mau. O mal e o bem
resumem-se, em última análise, no “reaccionário” e no “progressista”. No
entanto, como não há prazo predeterminado para o desenlace salvador, o
“apressar” e o “atrasar” têm sentidos ambíguos, que se alternam conforme as
contradições do movimento histórico. Um déspota, um tirano, o supra-sumo do reaccionarismo
para os seus contemporâneos, pode-se tornar retroactivamente um progressista caso
se descubra que contribuiu, malgré lui,
para acelerar um processo que desconhecia por completo. Numa outra fase, o
julgamento pode inverter-se, conforme as novas interpretações de “atraso” e
“aceleração” pertinentes no momento. Luís XIV, Ivan “o Terrível”, Robespierre
ou Stalin já passaram várias vezes do céu para o inferno e vice-versa.
Os modelos
de conduta do homem espiritual formam um panteão estável, um património
civilizacional adquirido, onde cada indivíduo pode buscar a inspiração que o
habilite a agir bem, independentemente das convicções reinantes na sua época e
no seu meio, ao passo que os modelos do revolucionário são entidades móveis que
nada valem sem a aprovação do consenso contemporâneo.
Joana d’Arc e Francisco de Assis puderam ser Santos
contra a autoridade colectiva. Mas ninguém pode fazer a revolução contra o
consenso revolucionário.
Na
perspectiva espiritual, a meta da existência traduz-se em cada um buscar a sua perfeição pessoal na
vida presente, fazendo o bem a pessoas de carne e osso que lhe podem responder
e julgá-lo, dizendo se foi um bem de verdade ou um falso bem que só lhes causou
mal. Na óptica revolucionária, o que importa é “transformar o mundo”, "modernizar"e
beneficiar as gerações futuras, pouco importando o mal que isso custe à geração
actual. O destinatário do bem está portanto ausente e não pode julgar o revolucionário, excepto
através de seus auto-nomeados representantes, que são precisamente aqueles
mesmos auto-nomeados benfeitores.
Na visão tradicional, os exemplos de perfeição
são muitos e a sua conduta está meticulosamente registada nos livros sacros e nos
depoimentos dos crentes. Já a sociedade perfeita nunca existiu e o único modelo
à nossa disposição é uma hipótese futura, cuja descrição idealizada é em geral
muito vaga e alegórica, quando não completamente evasiva.
O estudo das
religiões comparadas mostra a profunda unidade e coerência das grandes
tradições no que diz respeito às virtudes essenciais. Por isto os profetas
judeus são modelos de perfeição para os cristãos, os sábios hindus para os
muçulmanos, e assim por diante. Já na esfera revolucionária, quanto mais um
homem encarne a sua própria ideologia com perfeição, como Lenin e Stalin,
Hitler e Mussolini, tanto mais ele se torna odioso e abominável aos seguidores
de outros partidos. No máximo pode haver entre eles a mútua admiração invejosa
de quem desejaria apropriar-se dos talentos do inimigo para mais facilmente o poder
destruir. Não há virtude fora da fidelidade partidária.
As virtudes
do homem espiritual são explícitas e definidas, têm um conteúdo conceptual
identificável: piedade, generosidade, lealdade, sinceridade etc. As do revolucionário são
ocasionais, utilitárias e instrumentais. Na terminologia de Max Scheler, a
ética do religioso é “material”, visa a condutas e actos específicos; a do
revolucionário é “formal”, reduz-se a uma equação genérica de fins e meios. Por
isso o homem espiritual, conhecendo o conceito da conduta certa, pode guiar-se a
si mesmo, fazendo o bem de acordo com a sua consciência sem ter de seguir a ninguém. Já o revolucionário só pode estar na conduta certa quando age de acordo
com a “linha justa” do movimento revolucionário ou com a “verdade oficial” do momento tal como
ela é formulada, a cada etapa, pela liderança, pelas assembleias, pelo poder. A
possibilidade de conduta independente é aí nula e auto-contraditória.
Não existe, pois, a mais remota possibilidade de acordo entre as éticas das grandes
tradições espirituais e a mentalidade revolucionária moderna.
Um dia cada
homem terá de escolher.
Tradução livre, de um texto de Olavo de Carvalho, por JFM
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