DO HORROR AO SOFRIMENTO 

Ao meu amigo Gil Cardoso Dias 


 «Cristo ressuscitado exibe até ao fim dos tempos as suas chagas como troféus, diz-nos S. Tomás de Aquino (Suma Teológica, Terceira Parte, Questão 54, Artigo 4º). Elas, são como as cicatrizes ganhas por um guerreiro que jamais pensará apagá-las, para não apagar a memória viva de seus feitos heroicos. Do mesmo modo, a lição da Ressurreição é a de que todas as nossas dores - o nosso coração desfeito, a perda de qualquer esperança neste mundo, o horror da perda de um ente querido, a decadência do corpo e a agonia da morte – todas essas memórias, para os cristãos, serão, na eternidade, as suas Chagas de Cristo

Edward Feser

Este é o maior e mais terrível impedimento para a nossa santificação. A imensa  maioria das almas  que vão caindo pelo caminho, deixam de chegar ao cume por não ter conseguido dominar o horror ao sofrimento que a sua carne fraca experimenta; somente quem decide  enfrentar o sofrimento com energia inquebrantável e, se for preciso, a morte prematura, logrará chegar às supremas alturas da santidade. Há que se tomar aquela determinada determinação, de que fala Santa Teresa, como condição absolutamente indispensável para atingir a perfeição (Caminho da Perfeição, c.21, n.2). Quem não tem ânimo para isso, pode desistir da santidade; jamais a alcançará.

É, pois, da maior importância examinar esse ponto com a amplitude que o caso requer. São João da Cruz concede ao amor ao sofrimento uma importância excepcional no processo da própria santificação.

 

1. A NECESSIDADE DO SOFRIMENTO

Em primeiro lugar, é preciso ter ideias claras sobre a absoluta necessidade de sofrimento, tanto para reparar o pecado como, sobretudo, para a santificação da alma. Examinemos estes dois aspectos em separado.

a) PARA REPARAR O PECADO. O argumento para o demonstrar é muito simples. A balança da divina justiça, desequilibrada pelo pecado original e restabelecida pelo sangue de Cristo, cujos méritos nos foram aplicados pelo baptismo, tornou-se novamente desequilibrada pelo pecado posterior. Esse pecado coloca o peso do prazer  num dos pratos da balança, pois todo o pecado  carrega consigo algum prazer ou satisfação, que é justamente aquilo que o pecador busca quando peca. Impõe-se, pois, pela própria natureza das coisas, que o equilíbrio seja restabelecido pelo peso duma dor depositada no outro prato da balança. É certo que a principal reparação já Jesus Cristo a realizou com a sua paixão e morte dolorosíssima, cujo valor infinito nos é aplicado pelos sacramentos. Porém, também é certo que o cristão, como membro de Cristo, não se pode separar da sua divina Cabeça. Falta algo à paixão de Cristo – atreveu-se a dizer S. Paulo (Cl 1,24) – que deve ser suprido pelos membros de Cristo colaborando na sua própria redenção. De facto,  a absolvição sacramental não livra de toda a punição pelo pecado, salvo se houver uma contrição intensíssima, que raras vezes ocorre, e é preciso pagá-la até ao último centavo, nesta ou na outra vida (Mt 5,26).

b) PARA SANTIFICAÇÃO DA ALMA. A santificação da alma consiste num processo cada vez mais intenso de incorporação em Cristo. Trata-se duma verdadeira cristificação, à qual deve chegar todo o cristão sob pena de não atingir a santidade. O santo é, afinal, uma fiel reprodução de Cristo, outro Cristo, com todas as suas consequências.

Ora, o caminho para nos unirmos e nos transformarmos em Cristo, Ele mesmo nos deixou traçado com caracteres inequívocos: « Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me» (Mt 16,24). Não há outro caminho possível: é preciso abraçar-se à dor, carregar a própria cruz e seguir a Cristo até ao cume do Calvário; não para contemplarmos como O crucificaram, mas para nos deixarmos crucificar a Seu lado. Um santo engenhoso estabeleceu a seguinte lógica, que julgamos exacta: santificação é igual a cristificação e, cristificação é igual a sacrifício. A comodidade moderna e o amor próprio, humilhado perante a sua própria cobardia, poderão lançar novas fórmulas e inventar sistemas se santificação cómodos e fáceis, mas todos eles estão inexoravelmente condenados ao fracasso. Não há outra santificação possível que a crucificação com Cristo. De facto, todos os santos estão ensanguentados. São João da Cruz estava tão convencido disso, que chegou a escrever estas peremptórias palavras:

«Se em algum tempo, meu filho, alguém te quiser persuadir – seja ele prelado ou não – a seguir alguma doutrina de liberdades e facilidades, não lhe dês crédito nem a abraces, ainda que ele a confirme com milagres. Dá, antes, preferência à penitência e ao amor desapegado de todas as coisas; e não busques a Cristo sem cruz».

 

2. EXCELÊNCIA DO SOFRIMENTO

Basta considerar as grandes vantagens que o sofrimento proporciona à alma para se ver claramente a sua excelência. Os santos têm perfeita consciência disso, e daí é que se origina a sede de padecer que devora as suas almas. Se bem reflectidas as coisas, a dor deveria ter mais atractivos para o cristão que o prazer para o pagão. O sofrer é passageiro, mas ter sofrido bem, não passará jamais: deixará a sua marca na eternidade.

Eis aqui os principais benefícios que o sofrimento cristão nos proporciona.

1º- EXPIA OS NOSSOS PECADOS. Já o vimos acima. A pena temporal que resta cumprir, como triste recordação do que a presença do pecado já perdoado deixa na alma, deve ser paga inteiramente a preço de dor, nesta ou na outra vida. É uma extraordinária graça de Deus poder pagar nesta vida, com sofrimentos menores e meritórios, o que pagaríamos no purgatório com sofrimentos incomparavelmente maiores e sem mérito algum para a vida eterna. De uma forma ou de outra, a bem ou a mal, nesta ou na outra vida, há que saldar todo o débito que contraímos diante de Deus. Portanto, vale a pena abraçarmo-nos com paixão ao sofrimento nesta vida, em que sofremos muito menos que no purgatório e aumentaremos, por outro lado, o nosso mérito sobrenatural e o nosso grau de glória no céu, por toda a eternidade.

2º- SUBMETE A CARNE AO ESPÍRITO. São Paulo sabia-o por experiência própria, pois escreveu aos coríntios: «Trato duramente o meu corpo e subjugo-o» (1Cor 9,27). A carne, com efeito, tende a dominar o espírito; só à força de chicote e de privações  acaba por se submeter à ordem, ocupando o papel de escrava e deixando em liberdade a alma. É um facto mil vezes comprovado na prática que, quanto mais comodidades se oferece ao corpo, mais exigente ele se torna. Santa Teresa adverte as suas monjas sobre isso com muita ênfase, persuadida da grande importância que tem na vida espiritual. Ao contrário, quando nos submetemos a um plano de sofrimentos e severas restrições, as exigências do corpo reduzem-se a um mínimo. Para alcançar tão felizes resultados, vale muito a pena impormo-nos privações e sofrimentos voluntários.

3º- DESPRENDE-NOS DAS COISAS DA TERRA. Nada há que nos faça ver com tanta evidência que a terra é um desterro como as dores do sofrimento. Através do cristal das lágrimas  a atmosfera da terra tem uma aparência mais turva e asfixiante. A alma levanta os seus olhos para o céu, suspira pela pátria eterna e aprende a desprezar as coisas deste mundo, que não somente são incapazes de preencher  as suas aspirações infinitas de perfeita felicidade, mas sempre estão envoltas em espinhos afiados e asperezas.

4º- PURIFICA-NOS E EMBELEZA-NOS. Como o ouro se purifica no crisol, também a alma se embeleza e brilha com a áspera lima do sofrimento. Todo o pecado, por insignificante que pareça, é uma desordem e, portanto, uma deformidade, uma verdadeira fealdade da alma, haja em vista que a beleza, como se sabe, não é outra coisa que «o esplendor da ordem». Por conseguinte, tudo aquilo que por sua própria natureza tende a destruir o pecado ou a apagar as suas marcas, forçosamente embeleza e purifica a alma; é o caso do sofrimento e da dor.

5º- TUDO ALCANÇA DE DEUS. Deus nunca ignora os gemidos de alguém afligido pela dor. Sendo como é, omnipotente e infinitamente feliz, não se deixa vencer excepto pela debilidade daquele que sofre. Ele próprio diz nas Sagradas Escrituras que não sabe negar aos que a Ele acodem com os olhos cheios de lágrimas (2Cr 34,27). E Nosso Senhor operou, por três vezes, o estupendo milagre da ressurreição de um morto comovido pelas lágrimas: de uma viúva que chorava a morte de seu filho único (Lc 7,11-17); de um pai diante do cadáver de sua filha (Mt 9,18-26);  e de duas irmãs diante desoladas diante do sepulcro do seu irmão (Jo 11,1-44). Ademais, proclamou bem-aventurados os que choram, porque serão consolados (Mt 5,5).

6º- FAZ-NOS VERDADEIROS APÓSTOLOS. Uma das mais estupendas maravilhas da economia da graça divina é a íntima solidariedade entre todos os homens através, sobretudo,  do Corpo místico de Cristo. Deus aceita a dor que uma alma em graça oferece pela salvação de outra determinada ou pelos pecadores em geral. E, banhando essa dor no sangue redentor de Cristo – Divina Cabeça desse membro que sofre – derrama-o na balança de sua divina justiça, desequilibrada pelo pecado desses infelizes. Então, se tais almas não se obstinarem na sua cegueira, a graça do arrependimento e do perdão restabelece o equilíbrio e a paz. É incalculável a força redentora da dor oferecida com fé viva e ardente à divina justiça através das chagas de Cristo. Quando tudo mais tiver fracassado, ainda resta o recurso da dor para obter a salvação de uma pobre alma extraviada.

A um pároco que se lamentava, na presença do Santo Cura d`Ars, da frieza dos seus fiéis e da esterilidade do seu zelo, respondeu o santo: « Tem pregado? Orado? … Tem jejuado? … Tem se disciplinado? … Tem dormido sobre leito duro? … Enquanto não o tiver feito, não tem direito a se queixar». A eficácia da dor é soberana para ressuscitar uma alma morta pelo pecado. As lágrimas de Santa Mónica obtiveram a conversão de seu filho Agostinho. Os exemplos poderiam ser multiplicados em profusão.

7º- ASSEMELHA-NOS A JESUS E A MARIA. Esta é a maior e suprema excelência do sofrimento cristão. As almas que Deus iluminou para compreender profundamente o mistério da nossa incorporação em Cristo, sempre sentiram verdadeira paixão pela dor. São Paulo considerava uma graça muito especial poder sofrer por Cristo (Fl 1,29) para se configurar com Ele nos seus sofrimentos e na sua morte (Fl 3,10). Ele próprio declara que vive crucificado com Cristo (Gl 2,19) e somente se quer gloriar na cruz de Cristo, pela qual estava crucificado para o mundo (Gl 6,14). E, ao pensar que a maioria dos homens não compreende este sublime mistério da dor e buscam fugir do menor sofrimento, não pode evitar que os seus olhos se encham de lágrimas por tanta cegueira (Fl 3,18).

E, ao lado de Jesus, o Redentor, está Maria, a Corredentora da humanidade. As almas enamoradas de Maria sentem particular inclinação a acompanhá-la e imitá-la nas suas dores inefáveis. Diante da Rainha dos Mártires sentem o rubor e a vergonha  de andarem sempre buscando comodidades e prazeres. Sabem que, se quiserem ser parecidos com Maria, devem abraçar-se á cruz com verdadeira paixão.

Note-se a singular eficácia santificadora da dor sob este último ponto de vista. O sofrimento configura-nos a Cristo de maneira perfeitíssima; e, a santidade consiste justamente nessa configuração com Cristo. Não há, nem pode haver, um caminho de santificação que prescinda ou dê menos importância à auto-crucificação; para isso era necessário que Nosso Senhor deixasse de ser o Deus ensanguentado do Calvário. Com razão São João da Cruz aconselha a rechaçar-se qualquer doutrina de liberdades e facilidades «mesmo que confirmada por milagres». Esta é uma maneira de repetir o que São Paulo já dizia aos Gálatas: «Pois bem, ainda que nós ou um anjo vindo do Céu vos pregasse um evangelho diferente daquele que vos pregamos, que ele seja anátema! (Gl 1,8).

Por isso são tão escassos os santos. A maioria das almas que buscam santificar-se não querem entrar pelo caminho do sofrimento. Gostariam ser santos, mas com uma santidade cómoda e fácil, que não lhes exija a total renúncia de si mesmo, até a própria crucificação. E quando Deus os prova com alguma enfermidade penosa, desolação espiritual, perseguições e calúnias, ou qualquer outra cruz que, bem suportada, os impulsionaria para o cume, retrocedem e acobardados abandonam o caminho da perfeição. Não há outra razão que explique o fracasso  ruidoso de tantas almas que pareciam querer santificar-se. Talvez cheguem a pedir em algum momento que o senhor lhes envie alguma cruz. Porém, depois, percebe-se claramente que no fundo queriam uma cruz a seu gosto, e ao não a encontrarem, sentem-se enganados e abandonam o caminho da perfeição.

Portanto, é necessário decidir-se de uma vez a abraçar o sofrimento tal como Deus o queira enviar: enfermidades, perseguições, fortes humilhações, fracassos, incompreensões, morte prematura, etc. - o que Ele quiser e da forma que quiser. A actitude da alma deve consistir num perpétuo fiat, num abandono total e sem reservas à amorosa providência de Deus, para que faça dela o que quiser no tempo e na eternidade.


António Royo Marin O.P., Teologia da Perfeição Cristã, Editora Magnificat 2020, pag. 317 a 322

 


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