Sanity, her Son and the Credulous, Jordan Henderson, 2020


                                          


«A ruptura do pensamento moderno com o transcendente encontra as suas primeiras grandes expressões, no domínio político, em Maquiavel e Hobbes,  para já não falar no seu percursor medieval, Marsílio de Pádua.

 Com Hobbes, nomeadamente, aparece uma sistematização rigorosa da concepção naturalista do universo, reduzindo-o a um mero mecanismo corpóreo ou físico, sendo o Estado, segundo este ponto de vista,  regido por normas provenientes de leis físicas, com total subordinação do homem ao corpo político, o Leviatã.

Mas, isto, não quer dizer que, na sua significação mais profunda, o pensamento político moderno tenha ficado destituído de qualquer vinculação religiosa.

 Donoso Cortés – que, com quase um século de antecedência, previu genialmente a propagação do socialismo – fez ver que, entre as concepções revolucionárias e os erros contemporâneos, não há nenhum que não se resuma a uma heresia cristã - mormente à heresia gnóstica dos primeiros séculos cristãos.

Note-se que a expressão Gnose é uma palavra grega que significa conhecimento, mas que tem sido usada para designar, não o processo discursivo racional, mas uma revelação da verdade divina alcançada por via intuitiva trazendo ao “iniciado” a alegria e a certeza da salvação.

Se, para a ortodoxia católica, a Fé e a Razão não são mutuamente exclusivas e muitas das verdades divinas podem ser apreendidas pelo intelecto humano, mediante a observação da Criação - tanto mais que o intelecto humano foi criado à imagem e semelhança do  intelecto divino o qual, por sua vez, criou o universo - segundo a Gnose tais conhecimentos só são acessíveis a uns quantos iniciados - hoje, diríamos, "especialistas" - através da submissão a ritos iniciáticos susceptíveis de despertar a mente humana para as verdades superiores.

O movimento gnóstico remonta a Simão Mago, cuja história nos foi transmitida pelos Actos dos Apóstolos. Desenvolveu-se no século II, mas, longe de desaparecer perante a refutação dos seus erros por Ireneu, Tertuliano, Clemente de Alexandria e outros, transformou-se numa vegetação religiosa parasitária ao longo da história da Igreja, corroendo a doutrina cristã e suscitando outras tantas heresias.

Na Idade Média esta heresia reapareceu nalguns pensadores, entre os quais há a destacar Joaquim de Flora, cuja interpretação da história em três idades, era já uma antecipação da idolatria do progresso mais tarde tornada evidente em Turgot, Condorcet, Comte, Hegel, Marx e nos pensadores liberais modernos.

A Gnose apresenta várias formas. Na sua modalidade mais intelectual, procura penetrar especulativamente o mistério da criação e da existência. Já a gnose volitiva, voltada para a acção e para o primado da praxis, pretende redimir a condição humana através duma alteração radical do homem e da sociedade que conduza ao advento de um paraíso terrestre. Os seu representantes máximos são activistas revolucionários como Comte, Marx Lenin e Hitler. 

Esta última vertente gnóstica, extraordinariamente reavivada no século XX, continua a sobreviver no fundo da heresia modernista, do liberalismo e do chamado “progressismo”.

A especulação gnóstica, ínsita nas ideologias materialistas modernas, pretende ter vencido as incertezas da fé e da transcendência, conferindo à actividade mundana o significado duma realização escatológica, ao transformar a actividade civilizadora num trabalho místico de auto-salvação, pois desvia a força espiritual da alma - que no cristianismo se devotava à santificação da vida - para a criação de um almejado paraíso terrestre, tarefa bem mais atraente e fácil.

A "verdade"do gnosticismo fica, pois, viciada ab initio por esta imanentização falaciosa da escatologia cristã, ou seja, pela substituição do objectivo cristão da salvação eterna da alma pessoal pela pretensão de “salvação” terrestre da humanidade como um todo.

Com base nessa falácia, os pensadores, líderes e seus seguidores gnósticos, interpretam uma dada sociedade concreta e a sua ordem como estando a caminho dos “amanhãs que cantam”; e, na medida em que aplicam esta sua construção falaciosa aos problemas sociais concretos, acabam por ter uma representação errónea da estrutura da realidade. 

Por outras palavras, a interpretação escatológica da História resulta numa falsa imagem da realidade; e os erros relativos à estrutura da realidade acabam inevitavelmente por ter efeitos práticos quando se faz dessa falsa concepção a base da acção política.

Mais, especificamente a falácia gnóstica, com a sua noção de progresso infinito, destrói a mais antiga sabedoria da humanidade no que respeita ao ritmo de crescimento e declínio que constitui o destino de todas as coisas de baixo do sol.

 O que nasce, um dia terminará; e o mistério desse fluxo do ser é impenetrável. Estes são os dois grandes princípios que regem a existência.

A especulação gnóstica sobre o significado da história, não se limita a ignorar esses princípios, mas perverte-os, transformando-os nos seus opostos, pois a ideia de um Reino Final para onde todas as sociedades tendem, presume uma sociedade que existirá para sempre - enquanto o mistério do devir é resolvido através da construção mental especulativa desse mesmo reino.

Assim, o gnosticismo - ou seja, na prática, todas as ideologias modernas -, acaba por produzir aquilo a que se poderia chamar de contraprincípios, em oposição aos reais princípios da existência; e, na medida em que esses contraprincípios determinam uma dada imagem da realidade, aos que neles crêem, geram um mundo de fantasia que nos nossos dias, é a grande força social motivadora das actitudes e acções das massas gnósticas e dos seus representantes.

Tudo isto, determina nas sociedades predominantemente gnósticas, um novo padrão de comportamento que se traduz numa inclinação para não levar em conta a estrutura da realidade, para se deixar envolver pela "doçura da existência”, pelo declínio da moralidade cívica, pela cegueira perante os mais óbvios perigos  e pela relutância em os enfrentar com seriedade. 

No gnosticismo, o não reconhecimento da realidade, torna-se uma questão de princípio. 

A actitude perante a "realidade" até pode permanecer enérgica e activa mas torna-se impossível agir de acordo com o real, cuja imagem foi toldada pelo sonho gnóstico. O resultado é um estado mental muito complexo, que, já no século XVI, HooKer tentou esboçar ao fazer o retracto do puritano típico.

No século XVI, no entanto, o mundo de fantasia e o mundo real ainda eram mantidos terminologicamente separados através do simbolismo cristão da separação entre a Cidade do Homem e a Cidade de Deus.

Mas, com a imanentização radical do mundo moderno, o mundo do sonho misturou-se terminologicamente com o mundo real pois a obsessão de substituir o mundo da realidade pelo mundo transfigurado da fantasia, fez surgir a obsessão de, mantendo o vocabulário da realidade, alterar o seu significado, como se o sonho fosse realidade.

Uma ilustração mostrará a natureza desta dificuldade. Nas éticas clássica e cristã, a primeira das virtudes morais era a sophia ou prudência , porque, entendia-se que sem uma compreensão adequada da estrutura da realidade, incluindo da conditio humana, se tornava impossível a acção moral e a respectiva coordenação racional entre os meios e os fins.

No mundo de sonho gnóstico, pelo contrário, o não reconhecimento da realidade, como vimos, constitui o primeiro princípio. Por conseguinte os tipos de acções que seriam considerados moralmente insanos no mundo real, devido aos efeitos reais que deles resultam, serão considerados morais no mundo de fantasia, porque visam efeitos inteiramente diversos.

O inevitável hiato, entre o efeito pretendido e o efeito real obtido, será imputado, não à imoralidade gnóstica de agir ignorando a estrutura da realidade, mas à “imoralidade” de alguma outra pessoa ou sociedade que não se comporta de acordo com a concepção gnóstica fantasiosa da relação causa efeito. 

A interpretação da insanidade moral como moralidade e da sophia ou prudência como imoralidade, leva a uma confusão difícil de desfazer. E, a tarefa é ainda dificultada pela afoiteza dos sonhadores gnósticos em estigmatizarem, como imoral, qualquer tentativa de obter um esclarecimento crítico.

 Na verdade, praticamente todos os pensadores políticos que reconheceram a estrutura da realidade foram caracterizados como imorais pelos intelectuais gnósticos, chegando-se ao extremo ridículo de alguns liberais apelidarem Platão e Aristóteles de fascistas.

Por conseguinte, a dificuldade teórica é agravada por problemas a nível pessoal. E, não há dúvida que o ininterrupto bombardeio de vitupérios gnósticos contra qualquer tipo de pretensão crítica tem afectado seriamente a qualidade do debate público acerca dos problemas contemporâneos.

Esta identificação do sonho com a realidade, como questão de princípio, produz efeitos práticos que podem parecer estranhos, mas que são sempre expectáveis; porque abandonando-se o estudo crítico da relação causa efeito na História, torna-se impossível conseguir uma coordenação racional dos meios e dos fins na política.

As sociedades gnósticas e os seus líderes até são capazes de reconhecer os perigos que ameaçam a sua existência quando surgem, mas tais perigos não são enfrentados por meio de acções apropriadas, no mundo da realidade. São, isso sim, enfrentados mediante o recurso a operações mágicas no mundo da fantasia, tais como, propaganda, manifestações de desaprovação, condenações morais, declarações de intenção, resoluções, apelos à opinião das maiorias e da humanidade em geral, a demonização dos adversários e a sua caracterizações como agressores, “reaccionários”, etc., manifestações de pacifismo e apelos à paz mundial, anseios por um governo mundial, etc., etc.. 

A corrupção moral e intelectual que se expressa no somatório dessas operações mágicas pode impregnar toda uma sociedade da atmosfera estranha e fantasmagórica de um verdadeiro manicómio, tal como a que experimentamos na crise do ocidente dos nossos dias.

A política gnóstica é, por isso mesmo autodestrutiva, no sentido em que as suas medidas que visam manter a paz e a ordem – as operações mágicas acima descritas – aumentam as perturbações e conduzem sempre a mais conflitos e mesmo à guerra, pois que, se uma perturbação incipiente do equilíbrio não for contrabalançada por uma acção política adequada, no mundo da realidade, e se, pelo contrário, for enfrentada por meio de feitiços, tende a atingir tais proporções que o recurso ao conflito, à opressão e à guerra se torna inevitável.

Como, ex definitione, é impossível transfigurar a natureza humana e estabelecer o paraíso terrestre, os gnósticos, na persecução de tais objectivos, mergulham numa dinâmica de revolução permanente e quando alcançam o poder,  tendem a criar um Estado omnipotente que elimine implacavelmente todas as forças de resistência - e, principalmente, os próprios gnósticos que se tornaram incómodos – e cale todo o debate crítico acerca da “verdade” gnóstica de que se declaram os únicos representantes.

Vista por este prisma, a revolução nacional-socialista, não foi mais que uma manifestação da modernidade por excelência, em todo o esplendor do seu seu materialismo económico, da sua psicologia corrupta, do seu cientificismo tacanho, da sua biologia racista e da sua crueldade tecnológica.

Nos nossos dias, tudo tende a confirmar que a modernidade não é mais que um tumor que se expandiu dentro da sociedade ocidental, por oposição à tradição clássica e cristã fazendo nascer o receio de que o sonho gnóstico tenha corroído tão profundamente a sociedade ocidental a ponto de tornar impossível qualquer política racional, estabelecendo um estado de conflito permanente, que torna necessário o recurso a uma crescente opressão estatal e à guerra, como os únicos instrumentos capazes de ajustar as perturbações no equilíbrio das forças existenciais.

 Um fenómeno desta magnitude, não pode ser explicado pela simples ignorância ou falta de inteligência, mas por questões de princípio, com base em premissas gnósticas fantasiosas acerca da natureza do Homem e da referida misteriosa evolução da humanidade rumo à paz, à igualdade e ao bem-estar  universais.

Assim, a política gnóstica é autodestrutiva na medida em que a sua negligência para com a estrutura da realidade leva ao conflito contínuo que só pode terminar de duas maneiras. Ou resultará em destruições horríveis e nas concomitantes modificações revolucionárias da ordem social; ou a mudança natural das gerações conduzirá ao fim do sonho gnóstico antes que aconteça o pior - embora tal se revele sumamente difícil enquanto continuarem a ser estigmatizados como reaccionários, o reconhecimento da estrutura da realidade, o cultivo das virtudes da sophia e da prudência, a disciplina do intelecto e o desenvolvimento da cultura teórica e da vida do espírito »

 

Eric Voegelin, The New Science of Politics


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