AINDA OS FILÓSOFOS

  

Expressar a experiência real em palavras é um desafio temível até para grandes escritores. Tão séria é essa dificuldade que para a vencer foi preciso inventar toda uma gama de géneros literários, dos quais cada um suprime partes da experiência para realçar as partes restantes. Se, por exemplo, se fôr um Balzac ou um Dostoiévski, encadeia-se os factos numa ordem narrativa, mas, para que a narrativa seja legível, tem de se abdicar dos recursos poéticos que permitiriam expressar toda a riqueza e confusão dos sentimentos envolvidos. Se, em contrapartida, se fôr um Arthur Rimbaud ou um Giuseppe Ungaretti, pode-se comprimir essa riqueza nuns poucos versos, mas eles não terão a inteligibilidade imediata da narrativa.

Essas observações bastam para mostrar que as idéias e crenças surgidas nas discussões públicas e privadas raramente se formam da experiência, pelo menos da experiência pessoal directa. Elas vêm de esquemas verbais prontos, recebidos do ambiente cultural, e formam por cima da experiência pessoal, um condensado de chavões e frases feitas bastante desligado da vida.

Se se ler com atenção os diálogos socráticos, vê-se que a principal ocupação do fundador da tradição filosófica ocidental era dissolver esses compactados verbais, forçando seus interlocutores a raciocinar a partir da experiência real, isto é, a falar daquilo que conheciam em vez de repetir o que tinham ouvido dizer.

 O problema é que, quando alguém repete uma ou duas vezes aquilo que ouviu dizer nos media, não apenas o passa a considerar como ideia sua, mas identifica-se e se apega-se a esse fetiche verbal como se fosse um tesouro, uma tábua de salvação ou o símbolo sacrossanto de uma verdade divina.

Para piorar as coisas, essas frases feitas vêm muito bem urdidas, em linguagem culta e prestigiada, ao passo que a experiência pessoal, pelas dificuldades acima apontadas, mal se consegue expressar num titubear grosseiro e pueril.

 Há pois um motivo dos mais sérios para que as pessoas prefiram falar elegantemente daquilo que ignoram, do que expor-se ao vexame de dizer com palavras ingénuas aquilo que sabem.

Um dos resultados dessa hipocrisia quase obrigatória é que, de tanto se alimentar de símbolos verbais sem substância ou correspondência na vida real, a inteligência acaba por descrer de si mesma e, até, por proclamar abertamente a impossibilidade de se conhecer a verdade.

Como assumpção dessa impossibilidade, por sua vez, é também um símbolo de prestígio nos dias que correm, ela serve de último e invencível pretexto para justificar a fuga à única actividade mental frutífera: a procura da verdade na experiência real.

Mas, a própria palavra “experiência” já costuma vir carregada de uma nuance enganosa, pois se refere em geral a “factos científicos” recortados a partir de métodos convencionados, que encobrem e acabam por substituir a experiência pessoal directa.

Por tudo isto, toda a discussão pública se tornou, hoje em dia, uma troca de estereótipos, sem qualquer contacto com a realidade e nos quais, no fundo, nenhum dos participantes acredita.

É esse o sentido da expressão popular “conversa fiada”: o orador compra fiado a atenção dos outros – ou a sua própria – e não paga com palavras substantivas o tempo despendido.

De Sócrates até hoje, a filosofia desenvolveu uma infinidade de técnicas para furar o balão da conversa estereotipada e trazer as pessoas de volta à realidade. Zu den Sachen selbst – “ir às coisas mesmas” –, a divisa do grande Edmund Husserl, permanece a mensagem mais urgente da filosofia depois de vinte e quatro séculos. Ninguém mais que o próprio Husserl esteve consciente dos obstáculos lingüísticos e psicológicos que se opunham à realização do seu apelo. Todo o vocabulário técnico da filosofia – e o de Husserl é dos mais pesados – não se destina senão a abrir um caminho de volta desde as ilusões da classe letrada até à experiência efectiva. A conquista desse vocabulário pode ser ela própria uma dificuldade temível, mas decerto não tão temível quanto os riscos de ficar discutindo palavras vazias enquanto o mundo desaba à nossa volta.

Ao incorporar-se na cultura ambiente, como actividade academicamente respeitável, a própria filosofia tende a perder sua força originária de actividade esclarecedora e a tornar-se mais uma pedra no muro de artificialismos que se ergue entre o pensamento e realidade.

 

Olavo de Carvalho

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