Misericórdia humana; demasiado humana!
“A misericórdia é um efeito imediato da caridade.
Mas para que seja uma verdadeira virtude, ela tem de conseguir submeter- se à regra
da razão evitando cair na, assim na chamada, “paixão de misericórdia”.
Uma vez
compreendido este ponto, será fácil distinguir a misericórdia do mero
sentimentalismo.
É
perfeitamente possível, por exemplo, uma jovem ficar zangadíssima com o juiz que
condenou um assassino possuidor de uns olhos muito gentis; e, que a nossa
simpatia por um “pobre menino incompreendido” que metralhou um polícia durante
um assalto, possa encher-nos os olhos de
lágrimas.
Mas isto não é obra da virtude da misericórdia. Na
verdade esta pseudo misericórdia - no sentido de paixão, - pode até ser
encontrada nos animais.
Como virtude,
a misericórdia tem sempre de desenvolver-se ao longo de directrizes racionais em
direcção à razão.
Julga-se que a misericórdia tem algo de triste porque se baseia na nossa capacidade de sofrer com os outros; mas, pelo contrário, ela é uma virtude bastante alegre e muito gratificante pois até mesmo as suas contrafacções são fontes de prazer.
Por exemplo, o milionário que enriqueceu explorando o trabalho dos
outros e, de repente, vai servir sopas aos pobres na Mitra; o pai que sempre
negligenciou os filhos e, um dia, resolve dedicar-se aos órfãos e abandonados;
o egoísta que gastou a vida a ignorar os que lhe eram próximos e decide ajudar os
refugiados do outro lado do mundo, todos eles, na verdade, estão a obter prazer à custa do seu
papel de dispensadores de misericórdia.
Em certo sentido, está a brincar a Deus; está-se a julgar igual a Deus.
Porque a verdadeira misericórdia é uma virtude divina;
na verdade ela é própria de Deus e um dos principais meios pelos quais Ele
manifesta a sua omnipotência, porque somente um Ser perfeito pode manifestar a Sua perfeição suprindo as necessidades dos
outros.
E, assim sendo, por muito que os homens adorem sentir-se
superiores (omnipotentes) ajudando os outros a suprir as suas necessidades, a misericórdia
meramente humana não é, assim, uma grande virtude, porque … os homens não são
Deus.
O homem não alcança a perfeição acudindo apenas às
necessidades dos outros e fazendo-lhes as vontades, mas submetendo-se à vontade de Deus.
A justiça, a
fortaleza e a temperança devem estar, também, sempre presentes no que à misericórdia diz
respeito; porque, a justiça apenas dá ao próximo o que lhe é devido; e, a fortaleza
e a temperança são necessárias para ordenar
a misericórdia evitando que descambe em sentimentalismo ou numa contrafacção.
É verdade
que Deus é misericordioso; mas não no sentido de que o castigo não seja necessário; nem no sentido de que a misericórdia se sobreponha à Lei de Deus; mas antes no sentido de que, só depois
da justiça ter sido satisfeita, a misericórdia pode actuar em modo divino.
Neste sentido, a misericórdia, por si só, não é a maior das virtudes morais.
A Companion
to the Summa, Walter Farrell, Volume III, pág. 54
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