Platos Cave, Tom Hopkins 1986



                                       EXAME DE CONSCIÊNCIA E REALIDADE       

 

Aquilo a que chamamos senso do real fundamenta-se na distinção entre o efectivo e o possível. Fazemos esta distinção comparando aquilo que pensamos e imaginamos por vontade própria, com os dados que nos são impostos por uma dada situação presente. Neste momento, por exemplo, digito no teclado do computador as palavras que me brotam de dentro. Elas poderiam ser outras, bastando que eu quisesse mudar o foco da minha atenção para outro assunto. Se escrevo estas palavras e não outras, posso assegurar, na língua que o povo gaiato atribuiu ao ex-presidente Jânio Quadros: fi-lo porque qui-lo.

Mas, tantas vezes quantas abra os olhos, enquanto estiver aqui sentado, verei diante de mim o mesmo teclado e a mesma tela, que se impõem à minha visão como dados de um mundo que eu não fiz e que vem pronto ao meu encontro. Não posso fazer com que meus olhos vejam outra coisa senão o que está na frente deles. Não posso girá-los daqui  para Porto Alegre ou Machu-Pichu, como giro num instante a tela do pensamento e troco de palavras. O meu olhar está limitado pelo que o mundo me oferece, ao passo que minha imaginação não conhece outros limites senão os seus próprios. 

Esta diferença é que me dá a medida do real: admito como efectivo, como objectivamente existente, um mundo que me resiste, que não se dobra imediatamente ao meu arbítrio com a plasticidade do imaginário. 

Existir é resistir, dizia Dilthey.

 Se minha percepção está limitada ao lugar do espaço onde me encontro, mais fortemente ainda está presa a um determinado momento do tempo. O espaço ainda pode ser parcialmente vencido pelo deslocamento do corpo, que, noutro lugar, verá outras coisas e já não estas. Mas o tempo é invencível. O que ontem me sensibilizou a retina, vindo de fora, hoje só pode ser produzido de dentro, re-produzido na imaginação, e não sem algum esforço. As cenas deleitosas de outrora, vividas como um dom gratuito da realidade aos nossos sentidos, agora só podem ser re-vividas como obra nossa, por um acto de vontade que resolva sair em busca do tempo perdido com o empenho reconstrutivo de um Proust.

Do mesmo modo, aquilo que se passará amanhã, não pode ser agora percebido como facto, mas somente concebido e projectado de dentro, como conjectura esperançosa ou temerosa. Por mais certo e fatal que se anuncie o futuro, um anúncio não terá nunca a presença maciça do facto consumado; e conforme seja bom ou mau, virá sempre acompanhado do temor ou do desejo — da possibilidade, em suma — de que as coisas se venham a  passar de outro modo.

 O presente, em contrapartida, se podia ser de outro modo há um instante atrás, já não o pode agora: está fixado para sempre; tendo acontecido, já não pode des-acontecer.

 É apreendendo os limites do meu poder — daquilo que Kurt Levin chamava espaço vital— que chego a distinguir o real do irreal, o efectivo do meramente possível.

Por outras palavras, a distinção entre o facto percebido e a possibilidade imaginada faz-se por referência à vontade, que no primeiro caso é súbdita e no segundo é soberana.

 Mas só posso fazer esta comparação se me lembrar claramente de haver pensado ou imaginado tais ou quais coisas por vontade própria, desde dentro, e se assumir a autoria desses actos interiores como assumo a de minhas acções materiais e externas.  Só assim, que posso captar a diferença ente o que brota de mim e o que me vem do mundo. 

O senso da diferença entre o imaginado e o apercebido repousa, portanto, na memória e na responsabilidade.

Tomamos consciência da realidade objectiva, diferenciando-a das nossas projecções subjectivas, exactamente pelos mesmos meios e na mesma medida em que tomamos consciência de nós mesmos como sujeitos livres, activos, criadores tanto dos nossos actos como das nossas intenções.

Por outras palavras, a objectividade do conhecimento é função da liberdade moral.

Acontece que, os nossos actos interiores não têm outra testemunha senão nós mesmos. Só eu conheço por testemunho directo os meus pensamentos e intenções, que os que me rodeiam não podem senão conjecturar por analogia. 

Se decidir mentir sobre o que se passa dentro de mim, ninguém pode impedir-me de o fazer: nem mesmo quem, por sinais exteriores, perceba a falsidade da intenção que alego poderá provar por testemunho directo aquela que oculto.

 O testemunho sincero de si para si é, pois, a primeira e indispensável condição do conhecimento objectivo.

O primeiro passo na apreensão da verdade consiste, pois, em cada um aprender a reconhecer as verdades que só ele mesmo pode saber e que ninguém, sem ser ele, pode confirmar ou negar.

 Por exemplo, só o próprio, pode conhecer as suas intenções, só ele pode conhecer os actos que praticou em segredo, só ele pode conhecer os sentimentos que não confessou. Ele, nesses casos, é a única testemunha, e é aí que ele próprio vai conhecer a diferença radical e intransponível entre a verdade e a falsidade.

 As pessoas que negam a existência de verdades são, precisamente, as que nunca tiveram essa experiência e, portanto, nunca deram senão falso testemunho de si mesmas perante o tribunal da sua consciência, mentindo para si próprias e por isso sentindo que tudo no mundo é mentira.

 Mas o desejo de assumir a autoria de seus actos interiores — ou mesmo exteriores — não é inato no homem. Com inocente desenvoltura, que no adulto seria cinismo, a criança atribui a responsabilidade de seus feitos a um irmãozinho, a um colega ou a seres imaginários, e não toma consciência de que mente senão pelo olhar severo do pai que a faz descer do céu da imaginação para a cravar no chão terrestre onde as causas se atam inapelavelmente às consequências, e as culpas aos castigos. Inicialmente, a criança aceita esta limitação por conta da autoridade do pai, mas depois aprende a estabelecer por si a conexão entre o antes e o depois, entre a intenção e o acto, entre a autoria e a culpa, e é assim que se desenvolve nela a autoconsciência, que será a base não somente da conduta moral, mas da objectividade no conhecimento.

 A verdade é aceite assim como um valor moral antes mesmo de se firmar como um critério cognitivo, pois a admissão da verdade sobre si mesmo precede a admissão da verdade sobre as coisas.

 “A autoconsciência é a terra natal da verdade”, dizia Hegel.

 A possibilidade do conhecimento objectivo depende portanto de uma opção preliminar, em que o homem assume — ou não assume — um compromisso interior com a verdade e a coerência. 

Nada pode obrigá-lo a este compromisso. A facilidade com que os seres humanos se livram dele sempre chocou os filósofos, de Platão e Aristóteles até Kant, Scheler, Ortega y Gasset, Éric Weil.

 Os filósofos gostariam que todos os homens fossem dóceis à verdade, mas trata-se de uma aspiração utópica e auto-contraditória: se a percepção da verdade nasce da liberdade, só pode conhecer a verdade quem esteja livre para a negar. 

“Verdade conhecida é verdade obedecida”, dizia Platão; mas mesmo a verdade conhecida não pode ser obedecida de uma vez para sempre, mediante um suicídio preventivo da liberdade, que nos garantisse contra as futuras tentações do erro e da mentira.

 A opção pela verdade deve, portanto, ser refeita diariamente, entre as hesitações e dúvidas que constituem o preço da dignidade humana. 

O compromisso com a verdade, ainda que assumido de coração, jamais obriga o homem todo: continentes inteiros da alma, como a imaginação ou determinados sentimentos, podem continuar vagando à margem de toda obrigação de veracidade, e atendendo apenas aos apetites imediatos. 

Há sempre muitos meios de fugir da verdade. Os sonhos, por exemplo, são um tecido de eufemismos que pode servir para amortecer ou desviar o impacto das verdades indesejáveis, ajudando a manter o organismo psicofísico naquele estado de ausência de tensões que os médicos denominam homeostase.

 É claro que em grande número de casos esse arranjo oportunista acaba produzindo uma neurose. A melhor definição de neurose que conheço é do meu falecido amigo e mestre Juan Alfredo César Müller, um génio da psicologia clínica. Neurose, dizia ele, é uma mentira esquecida na qual você ainda acredita.

Se mentir para si mesmo é esquecer a verdade, neurose é esquecer o esquecimento, apagar as pistas do embuste.

Na neurose, a mentira transforma-se num sistema, num programa que se auto-multiplica, ocultando a mentira inicial sob montanhas de entulho. Mas ninguém ficaria neurótico se a opção neurótica não lhe parecesse vantajosa, pelo menos no instante decisivo em que uma verdade intolerável se abre diante dele como um abismo.

Mentir alivia porque economiza à psique o esforço de suportar um desequilíbrio temporário.

 Isso quer dizer, em suma, que não há consciência moral, nem conhecimento objectivo, sem algum sofrimento psíquico voluntário, sem o sacrifício ao menos temporário da harmonia interior em vista de valores que transcendem os interesses imediatos do organismo psicofísico.

 “Ser objetivo, dizia Frithjof Schuon, é morrer um pouco”.

Objectividade é sinceridade projectada no exterior, assim como sinceridade é introjecção dos limites objectivos.

Sinceridade e objectividade, por sua vez, formam um nexo indissolúvel com a responsabilidade: as três condições que perfazem a autoconsciência moral.

 Uma vez afrouxadas porém as exigências da autoconsciência, a imaginação torna-se serva do interesse orgânico imediato, produzindo tantas ficções quantas forem necessárias para conservar o indivíduo num estado de profunda sonolência moral, no qual ele não tenha de responder pelos seus actos.

O entorpecimento da consciência tem graus e etapas, que vão desde as “racionalizações” corriqueiras com que na vida diária nos furtamos ao apelo de pequenos deveres, até a completa inversão.

 O homem moralmente embotado já não consegue “sentir” a bondade ou maldade intrínseca de seus actos. Embora conheça perfeitamente as normas sociais que aprovam ou desaprovam certos comportamentos, ele não as vê senão como convenções mecânicas, e pode até continuar a obedecer-lhes exteriormente por mero hábito, mas sem pensar sequer em lhes aderir de coração; e continuará assim até que a conjunção da necessidade com a oportunidade o transforme de vez no criminoso que sempre foi.

 Albert Camus dá, em l’Étranger, o retracto do tipo cuja mediocridade pacata esconde a mais absoluta insensibilidade moral. Um dia o sujeito caminha pela praia e, sem qualquer motivo, até mesmo sem sentir raiva, resolve matar dois transeuntes a tiros. Até ao fim ele não compreende a revolta e a indignação que seu crime desperta.

 Como a inteligência humana não opera no vazio, mas apenas elabora e transforma os dados que recebe da esfera sensível, é natural que, quando um homem já não sente a realidade de alguma coisa, o conceito dessa coisa, o esquema que corresponde a ela no plano da inteligência abstracta, logo comece a parecer-lhe também vazio de sentido. Nessas horas, somente a um autêntico filósofo ocorrerá tomar consciência do seu depauperamento interior e sair em busca do sentimento perdido, para dar vida nova ao conceito. A maioria simplesmente adaptará o conceito ao estado actual da sua alma.

 No homem sem maiores interesses morais, esse conceito já sem conteúdo não tem mais nenhuma função, e será simplesmente esquecido. Mas, se esse homem for um letrado, ele não suportará ser o único a sentir o que sente. Invariavelmente, criará argumentos para demonstrar que aquilo que ele não sente, inexiste no mundo objectivo.

A sua incapacidade para discernir o bem e o mal excepto como convenções vazias será usada como “prova” de que toda lei moral é uma convenção vazia, e a deformidade da sua psique será erigida em padrão de medida moral para toda a humanidade.

 Mas um homem não vive muito tempo em estado de abstinência moral. Após ter solapado as bases de todo critério moral objectivo, ele  continuará a ter ódios e afeições, repugnâncias e desejos, que, na esfera intelectual, farão brotar outros tantos correspondentes juízos morais elaborados racionalmente. Não podendo suportar indefinidamente a insegurança de admitir que esses juízos são meras preferências subjectivas, não melhores ou piores do que quaisquer outras, ele cairá na tentação de argumentar a favor delas, de lhes dar uma expressão e fundamento intelectual; e, ao fazê-lo, criará um novo critério de moralidade, que não consistirá em outra coisa senão na ampliação universalizante dos gostos perversos de um indivíduo.

 A linguagem abstracta da filosofia moral ter-se-á tornado, então, numa arma ao serviço de fins egoístas, de um ego insuflado que quererá remodelar o mundo à sua imagem e semelhança.            

As aspirações subjectivas dos indivíduos, porém, não são tão diferentes umas das outras, sobretudo na época de cultura de massas que padroniza os desejos da multidão, e por isso o filósofo moral improvisado logo terá o grato prazer de descobrir que as suas ideias são compartilhadas por milhões de pessoas iguais a ele, muitas das quais já vinham produzindo, com os mesmos fins, outras tantas filosofias morais coincidentes.

Aí ele terá encontrado o argumento decisivo a favor do seu sistema: o argumento do número. O seu sistema pessoal de racionalizações será enobrecido e investido de validade universal como expressão das “aspirações da nossa época”.

 Mas como todos os desejos da multidão, moldados pela cultura de massas, se condensam, hoje, no triângulo sexo-dinheiro-fama, as novas éticas nascidas do embotamento moral não consistirão em outra coisa senão num sistema de racionalizações que transformará esses três desejos em hipóstases de valores morais universais e em fundamentos máximos de toda conduta eticamente válida.

 Completa-se assim a inversão: as paixões mais baixas e vulgares ergueram-se ao estatuto de mandamentos divinos, cuja violação sujeita o homem a padecimentos interiores, quando não à execração pública ou a penalidades legais.

 O embotamento completo da intuição moral, substituída por uma rectórica sofística de um artificialismo alucinante, chegou a ser diagnosticada por Konrad Lorenz como uma forma de degenerescência biológica, que, apagando da memória humana registos de valores aprendidos ao longo da evolução animal, anuncia o começo da demolição da espécie humana.

 Mas sondar as causas primeiras desse fenómeno, na escala da humanidade, não é, aqui, o meu intuito. O que desejo perguntar é como ele se produz num indivíduo em particular. Excluo, é claro, os casos de psicopatia congénita, que recebem o nome técnico de personalidades psicopáticas ou de sociopatas; mas não é possível que o conjunto dos militantes radicais do mundo se componha de uma maioria de personalidades psicopáticas, afectadas por taras congénitas.

 O que me intriga é: como é que um ser  humano de personalidade normal pode ser transformado de tal maneira que o seu senso moral se torne idêntico ao de um sociopata de nascença?

 Como se pode inocular artificialmente a perversidade moral?

Pois é óbvio que, se não existisse esta possibilidade, determinados movimentos sociais e políticos só poderiam recrutar os seus adeptos nos hospitais psiquiátricos e jamais passariam de clubes de excêntricos.

 Quando hoje vemos hordas de intelectuais activistas lutando para que o aborto se torne um direito inviolável, para que manifestações de antipatia a qualquer perversão sexual sejam punidas como delitos, para que a interferência dos pais na educação sexual dos jovens se limite à instrução quanto ao uso de camisinhas, para que a Igreja abençoe a prática da sodomia e castigue quem fale contra ela, é forçoso admitir que algo, agindo sobre essas pessoas, destruiu nelas a intuição moral elementar; que, como diria Lorenz, alguma interferência externa apagou de seus cérebros os registros da experiência moral acumulada ao longo da evolução biológica.

 Se esse algo não é nem a hereditariedade nem aquela conjunção fortuita de circunstâncias traumáticas que podem produzir uma personalidade psicopática, então só pode ser uma acção humana premeditada.

 A acção humana premeditada, realizada segundo uma conexão racional de causas e efeitos, é o que se denomina uma técnica. Essa técnica existe. Aliás existem muitas. Não há neste mundo um só movimento de massas, um só Estado nacional, uma só empresa de grande porte que não disponha de uma técnica, ou de um conjunto de técnicas, para moldar a personalidade de seus membros de acordo com os fins da organização. Com alarmante frequência, a moldagem passa pelo embotamento maior ou menor do senso moral e da consciência intelectual. Não há talvez no mundo um sector de pesquisas em que governos, partidos políticos, organizações pseudo-religiosas e empresas tenham investido mais do que no dos meios de subjugar a mente humana.

O fim pretendido é abolir o domínio da vontade, cortando os laços entre a psique individual e os seus quadros de referência moral, sem apoio nos quais não pode o ego tomar posição, julgar, decidir, querer ou desquerer: neutralizada a capacidade judicativa e decisória, um homem está à mercê do que lhe sugiram, e pronto a justificar a posteriori a decisão imposta, assumindo-a como sua, para poder restabelecer a ilusória integridade da sua auto-imagem; e, com isto, assume a culpa do mal que lhe fizeram.

O rol das técnicas que o século XX concebeu para esse fim é de fazer inveja aos cientistas de outros ramos: reflexos condicionados, lavagem cerebral, guerra psicológica, influência subliminar, controle do imaginário, engenharia comportamental, informação dirigida, Programação Neurolinguística, hipnose instantânea, a lista não tem mais fim. O domador de homens tem hoje à sua disposição um arsenal de recursos mais vasto e eficaz que o dos técnicos de qualquer outro campo de actividade.

 Não há disputa política, campanha publicitária, propaganda ideológica ou pseudo-religiosa que não faça amplo uso deles, submetendo a mente humana a um bombardeio atordoante, que impossibilita o exercício normal do discernimento e predispõe as massas a uma nova patologia que recebeu a denominação, muito pertinente, de psicose informática.

O uso disseminado dessas técnicas arrisca minar todo o campo da convivência humana, legitimando a manipulação subliminar como uma forma normal e corrente de cada homem lidar com o seu próximo, e subvertendo, com isto, todos os padrões de sinceridade, honestidade, solidariedade.

Universalizado esse costume, a sociedade inteira estará à mercê de uma horda de manipuladores psicológicos, ansiosos de unlimited power e armados de um temível arsenal de meios para defraudar e colocar a seu serviço os outros homens.

 A coisa que mais impressiona o estudioso do assunto é a omnipresença da manipulação da mente na vida contemporânea. Sem ela, os grandes movimentos de massa que marcam a história do século simplesmente não teriam podido existir.

É impossível imaginar o que teria sido da propaganda comunista sem os reflexos condicionados e sem a lavagem cerebral inventada pelos chineses; o que teria sido do fascismo e do nazismo sem a técnica da estimulação contraditória com que esses movimentos desorganizavam a sociedade civil; como se teriam desenrolado os dois conflitos mundiais e dezenas de conflitos locais e revoluções sem o uso maciço da guerra psicológica; o que teria sido dos governos ocidentais e dos grandes empreendimentos capitalistas sem o controle do imaginário e a “modificação de comportamento” que exercem sobre populações que não têm disto a menor suspeita; qual teria sido a sorte da indústria das comunicações de massas sem o uso da influência subliminar pela qual reduzem à passividade mais idiota o público de todos os países.

 Se retirássemos, enfim, do panorama histórico do século XX as técnicas de manipulação da mente, nada teria podido acontecer como aconteceu. Elas foram seguramente mais decisivas, na produção da história contemporânea, do que todas as outras técnicas concebidas em todos os outros domínios, incluindo a bomba atómica e os computadores. Elas estão entre as causas primordiais do acontecer histórico no nosso tempo, e no entanto os historiadores continuam a ignorá-las.

 Quando se escrever, porém, com suficiente visão de conjunto a história da pesquisa e do uso das técnicas de manipulação da mente no século XX, então se verá que nenhum outro fenómeno o define e o singulariza tão bem quanto este.

Mais que o século das ideologias, mais que o século da física atómica, mais que o século da informática, este foi o século da escravização mental.

As técnicas de manipulação psíquica progrediram tanto nas últimas décadas, em alcance, precisão e eficiência, que ultrapassaram tudo quanto o homem comum pode aceitar como verossímil. E não aceita mesmo: quase todos opõe uma obstinada má vontade a ouvir o que alguém possa ter para lhes dizer a esse respeito.

Como, por outro lado, os governos, serviços secretos, seitas pseudomísticas e empresas multinacionais investem quantias cada vez maiores na pesquisa desses assuntos, o resultado é que o domínio dos meios de escravizar a mente do povo cresce na razão inversa dos meios que ele possa ter para se defender. E aí já não se sabe quem é mais culpado: o sedutor que escraviza ou o seduzido que se entrega, com deleites de masoquismo, à servidão voluntária.

 Ora, seria concebível que populações submetidas incessantemente a esse massacre psicológico pudessem conservar intactas por muito tempo as faculdades intuitivas e valorativas em cuja perda Lorenz enxerga o começo da demolição da espécie humana?

Não é antes mais provável que a humanidade assim manipulada, estonteada, ludibriada vinte e quatro horas por dia acabe por entrar num estado crónico de auto-engano?

A incapacidade de um povo para perceber os perigos que o ameaçam é um dos sinais mais fortes da depressão autodestrutiva que prenuncia as grandes derrotas sociais. A apatia, a indiferença ante o próprio destino, a concentração das atenções em assuntos secundários acompanhada de total negligência ante os temas essenciais e urgentes, assinalam o torpor da vítima que, antevendo um golpe mais forte do que poderá suportar, se prepara, mediante um reflexo anestésico, para se entregar inerme nas mãos do carrasco, como o carneiro que oferece o pescoço à lâmina.

 Mas quando o torpor não invade somente a alma do povo, quando toma também as mentes dos intelectuais e a voz dos melhores já não se ergue senão para fazer coro à cantilena hipnótica, então apaga- se a última esperança de um re-despertar da consciência.

Quos vult perdere jupiter prius dementat (Júpiter enlouquece primeiro os que quer perder).


Aparentemente, há uma contradição intolerável em se pedir à própria consciência que reconheça a sua sujeição a um poder de que não se tem consciência. Para reconhecer que está dormindo, um homem tem de estar pelo menos meio acordado; o primado do inconsciente só pode ser afirmado por um homem consciente; e só quem escapou da manipulação sabe que é manipulado.

 É um dos mais velhos e incómodos paradoxos da mente humana. Podemos sair dele, por exemplo, com a ajuda das distinções aristotélicas entre potência e acto, substância e acidente: no plano essencial, a consciência é, por direito, a parte dominante; na existência de facto, ela tem altos e baixos e só conserva o seu domínio lutando contra a inconsciência. Mas a maioria das pessoas não atina com estas subtilezas, e só pode escapar do paradoxo pelo expediente desastroso de negar os factos. Quanto mais tememos um perigo, mais tendemos a fingir diante dele uma indiferença superior: “Senta, que o leão é manso”

Com o atraso proverbial que marca os pronunciamentos da Igreja Católica, o Papa João Paulo II finalmente reconheceu em 1994 que, sob as aparências de continuidade daquilo a que a humanidade chamava civilização, cresce hoje em todo o mundo uma espécie de anti civilização, a civilização do Anticristo.

Neste novomundo, todas as ideias e concepções mais francamente erróneas, mórbidas, disformes e fracassadas que os séculos e os milénios anteriores tinham rejeitado, saíram do fundo do lixo do esquecimento para constituirem os pilares de um culto universal do engano.

Olavo de Carvalho

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