Por me parecer uma visão lúcida do que se está a passar no mundo e constituir uma base ideológica sólida contra a ideologia liberal - i.e. contra o capitalismo, o globalismo, o trans-humanismo e o pós-humanismo - aqui vos deixo a minha tradução (creio que a única, em língua portuguesa) das passagens mais importantes da primeira parte (The Great Reset) do  último livro de Alexander Dugin, a que seguirá brevemente a tradução da segunda (The Great Awakening).


À memória de Dária Dugin, filha de Alexander Dugin, assassinada, em 20/8/2022, aos vinte e nove anos, num atentado terrorista que se destinava a eliminar o pai.

  Da leitura do texto perceber-se-á porquê.

JFM


 


   I - The Great Reset

 

Breve História do Liberalismo: O Globalismo, como seu Desenlace Final

 

                          Nominalismo

 

Para podermos entender claramente, à escala histórica, o significado da vitória de Biden e a subsequente aposta de Washington na “Great Reset” (O Grande Reinício), devemos olhar primeiro para a história do liberalismo como um todo, começando pelas suas raízes. Só assim será possível compreender a gravidade da presente situação.

A vitória de Biden não é um episódio esporádico; nem o anúncio do contra ataque globalista é o estertor final dum projecto falhado mas, algo bem mais sério. Biden e as forças que o apoiam, encarnam o culminar de um processo histórico que, começando na Idade Média, atingiu a maturidade na idade moderna, com o surgimento da sociedade capitalista e, hoje, está prestes a atingir o seu estádio final – estádio, esse, ínsito na ideologia liberal desde o seu início.

As raízes do sistema liberal (capitalista) recuam até à disputa  Escolástica sobre os universais. Esta disputa dividiu os teólogos católicos em dois campos: uns reconhecendo a existência de universais (espécies, géneros) e outros acreditando apenas em coisas concretas/individuais, e interpretando a designação genérica aplicada a determinados grupos de seres ou objectos como meros sistemas de classificação externos criados pela mente humana. 

Os que defendiam a existência de universais, baseavam-se na tradição clássica vinda de Platão e Aristóteles e denominavam-se “realistas” por acreditarem na “realidade dos universais” (na existência de  essências ou formas substanciais comuns a todos os elementos dum grupo). O mais proeminente representante dos “realistas” foi S. Tomás de Aquino.

Aqueles que defendiam serem reais apenas os seres e as coisas individuais eram chamados nominalistas, do termo latino nomen. A proposição “ os entes não se devem multiplicar mais do que o necessário” foi cunhada precisamente por um dos principais defensores do nominalismo o filósofo Inglês William Occam. Mas, já anteriormente, as mesmas ideias tinham sido defendidas por Roscelin de Compiègne.      

Embora os “realistas” tenham vencido as primeiras escaramuças e os ensinamentos dos nominalistas fossem anatemizados pela Igreja Católica, mais tarde os caminhos da filosofia europeia ocidental seguiram os passos de Occam.

O nominalismo estabeleceu as fundações ideológicas e económicas do que se viria a chamar Liberalismo. Este, na esteira daquele, via os seres humanos como meros indivíduos desligados de todas as formas de identidade colectiva (religião, família, classe, nação etc.), defendendo a abolição destas instituições por, supostamente, serem limitadoras da liberdade individual, 

Da mesma forma, as coisas eram vistas como propriedade privada absoluta, como algo concreto e isolado cuja propriedade poderia ser facilmente atribuída a este ou aquele dono individual.

O nominalismo prevaleceu primeiro em Inglaterra, alastrou depois pelos países protestantes e gradualmente tornou-se a matriz filosófica da nova era – na religião (relação individual do homem com Deus), na ciência (atomismo e materialismo), na economia (mercado e propriedade privada), na ética (utilitarismo, individualismo, relativismo, pragmatismo), etc.

 

 

                     Primeira fase: Capitalismo

 

Partindo do nominalismo, é possível traçar todo o caminho do liberalismo histórico, desde Roscelin e Occan até Soros e Biden.

 Por conveniência vamos dividir essa história em três fases.

A primeira fase consistiu na introdução do nominalismo no reino da religião. A identidade colectiva Igreja, tal como era entendida pelo catolicismo (e ainda mais pela Ortodoxia), foi substituída, pelo Protestantismo, ou seja,  por indivíduos que daí em diante podiam interpretar as Escrituras somente segundo o seu discernimento (ou falta dele) rejeitando qualquer tradição. Assim sendo, muitos aspectos do Cristianismo – os sacramentos, os milagres, os anjos, a recompensa depois da morte, o fim do mundo, etc. – foram reconsiderados e descartados por não preencherem “o critério racional”.

A Igreja como o “corpo místico de Cristo” foi destruída e substituída por clubes recreativos criados pelo livre consentimento vindo de baixo, ou seja, por inúmeras seitas protestantes em perpétuo conflito.

No entanto, na Europa e na própria Inglaterra onde o nominalismo mais tinha frutificado, o processo acabou por ser de alguma forma travado e os protestantes mais fanáticos foram enxotados para o Novo Mundo onde estabeleceram uma sociedade à sua imagem. Foi assim que, mais tarde, depois do desentendimento com Londres, os Estados Unidos nasceram.

Paralelamente à destruição da Igreja como “identidade colectiva” (como algo comum), os estamentos começaram também a ser abolidos. A hierarquia social de clero, aristocracia e camponeses foi substituída pela indefinida “gente da cidade”, de acordo com o significado etimológico da palavra “burguês”. A burguesia acabou por suplantar todos os outros estratos da sociedade europeia,  uma vez que o burguês era precisamente o “indivíduo” por excelência, um cidadão sem clã, tribo, ou profissão, mas apenas possuidor de propriedade privada. E esta classe começou a reconstruir toda a sociedade europeia.

Ao mesmo tempo a unidade supranacional em torno da Sede Papal e o Império Romano do Ocidente – como outras tantas expressões de “identidades colectivas” – foram abolidos. No seu lugar foi estabelecida uma ordem baseada na soberania dos Estados–nações, uma espécie de “indivíduos políticos”. No fim da Guerra dos Trinta Anos, a Paz de Westphalia acabou por consolidar esta nova ordem.

Assim, em meados do Século XVII, a ordem burguesa impregnava todos os principais aspectos da Europa Ocidental.

A filosofia desta nova ordem tinha sido em muitos aspectos antecipada por Thomas Hobbes e desenvolvida por John Locke, David Hume e Immanuel Kant; Adam Smith aplicando estes princípios ao campo económico, tornou o liberalismo uma ideologia económica - o capitalismo – que mais  não era que uma sistemática aplicação do nominalismo ao domínio económico.

A História passou, desde então, a ser entendida como um processo de “libertação do indivíduo de todas as formas de identidade colectiva ” - levado às suas lógicas consequências.

No século vinte, através das conquistas coloniais, o capitalismo da Europa ocidental, tornou-se uma realidade global. A perspectiva nominalista passou, então, a dominar a ciência e a cultura, a política e a economia e o modo habitual de pensar das populações do Ocidente e do resto da humanidade.

  

Segunda Fase: O Século XX e o Triunfo da Globalização 

Durante o Século XX o capitalismo deparou-se com um novo desafio. Já não se tratava de combater as formas usuais de identidade colectiva – religião, classe, família, profissão, etc. – mas outras ideologias modernas artificialmente construídas (como o próprio liberalismo) que rejeitavam o individualismo e se lhe opunham com  novas formas de identidade colectiva.

O socialismo, a social-democracia e o comunismo, opunham-se ao liberalismo propondo uma identidade colectiva de classe e apelando a todos os trabalhadores do mundo para que derrubassem o poder da burguesia global. Esta estratégia revelou-se eficiente, e em alguns países importantes (embora não nos países ocidentais industrializados, como Karl Marx tinha previsto), algumas revoluções proletárias acabaram por triunfar.

Na Europa ocidental, paralelamente ao comunismo, tomaram o poder novas forças defensoras de um nacionalismo extremo, que actuavam em nome da “nação” ou da “raça”, opondo ao individualismo liberal algo de “comum”, outro “ser colectivo”.

Os novos oponentes do liberalismo já não eram fruto “duma inércia do passado” como anteriormente, mas representavam projectos modernos desenvolvidos no próprio ocidente com base na rejeição do individualismo e do nominalismo.

Isto mesmo, foi prontamente entendido pelos teóricos do liberalismo (sobretudo por Hayek e o seu discípulo Popper), que não tardaram em unir “comunistas” e “fascistas” sob a designação comum de “ inimigos da sociedade aberta (open society)”, a quem declararam guerra de morte.

Aliando-se, por motivos tácticos, à Rússia Soviética, o capitalismo foi bem sucedido na luta contra os regimes fascistas – conseguindo uma vitória ideológica importante na II Guerra Mundial.

A Guerra Fria que se seguiu, entre o Ocidente e o Leste terminou com a vitória liberal sobre os comunistas nos anos 80.

Assim sendo, o projecto de libertação do indivíduo de todas as formas de identidade colectiva e o “progresso ideológico” tal como eram entendidos pelos liberais, entraram numa nova fase, começando, nos anos 90, alguns teorizadores liberais, a falar no “fim da História” (Francis Fukuyama) e no “momento unipolar” (Charles Krauthamer).

Tratava-se da mais vívida prova de ter entrado o capitalismo na sua fase mais avançada – a fase do globalismo. 

De facto, foi por esta altura que nos EUA a estratégia globalista das elites governantes triunfou, unindo os dirigentes de ambos os partidos – Democratas e Republicanos - , representados principalmente pelos “neoconservadores” (neocons). 

 

 

       A Terceira Fase: Género e Pós humanismo 

Uma vez derrotado o seu último inimigo ideológico - o socialismo – o capitalismo chegou a um ponto crucial. O individualismo, o mercado, a ideologia dos “direitos humanos”, a democracia e os “valores ocidentais” tinham vencido à escala global. Parecia que a agenda estava completa – já ninguém se opunha ao individualismo e ao nominalismo, com algo de sério ou sistémico.

Foi neste momento que o capitalismo entrou na sua terceira fase: uma vez derrotados os inimigos externos, os liberais, num esforço de aprofundamento da sua ideologia, conseguiram desencantar duas outras  formas de identidade colectiva.

Primeiro, descobriram o “género”; porque, no fim das contas, o “género” também é algo colectivo: ou se pertence ao grupo masculino ou ao feminino. Logo, pensaram eles, a próxima luta consistiria em destruir o “género” como algo objectivo, essencial e insubstituível.

O género  precisava, pois, de ser abolido como tinham sido abolidas previamente todas as outras formas de identidade colectiva. Daí, nasceram as políticas de “género”, isto é, a transformação da categoria “género” em algo “opcional” e dependente da escolha individual.

 Aqui, mais uma vez, deparamo-nos com o nominalismo puro: uma pessoa é uma pessoa enquanto indivíduo, mas o “género” pode ser escolhido arbitrariamente - como, já antes eram, a religião, a profissão, a nação, o tipo de família e o modo de vida. Esta tornou-se a principal agenda liberal depois dos anos 90 e da derrota da União Soviética.

 Claro que continuavam a existir oponentes às políticas de “género” – países que ainda conservavam restos da sociedade tradicional, valores familiares, etc., assim como alguns círculos conservadores no próprio ocidente.

Combater esses conservadores e “homofóbicos”, isto é, os defensores da visão tradicional dos sexos, passou a ser o novo objectivo dos liberais, a quem se juntaram muitos esquerdistas substituindo, assim, os seus anteriores objectivos anti capitalistas pela defesa de políticas de género e de protecção dos imigrantes.

Mas, uma vez institucionalizada a legislação de “género” e a promoção continuada das migrações em  massa - que, no fundo, mais não pretendia que atomizar as populações ocidentais (o que encaixava perfeitamente na ideologia dos direitos humanos que opera a nível do indivíduo ignorando a sua cultura, religião, raça ou nacionalidade) - tornou-se óbvio que os liberais tinham pela frente apenas mais um passo – abolir os humanos.

Afinal, a humanidade também é uma "entidade colectiva", ou seja, deve ser superada, abolida, destruída porque é isso que o princípio nominalista exige. Segundo este, uma “pessoa” é apenas uma designação sem qualquer significado, uma classificação arbitrária e como tal susceptível de ser constantemente posta em causa. Só o indivíduo existe –, religioso ou ateu, macho ou fêmea, humano ou não, isso dependerá da sua escolha pessoal.

Sendo assim, o último passo dos liberais que eles, no fundo, há séculos perseguiam, seria substituir os seres humanos, mesmo que apenas parcialmente, por cyborgs, por redes de inteligência artificial e por artefactos resultantes da engenharia genética.

Ao género opcional, seguia-se logicamente o ser humano opcional.

Esta agenda já prefigurada, no domínio da filosofia, pelo pós-humanismo, pós-modernismo e pelo realismo especulativo, está a tomar contornos cada vez mais realista, em termos de realização  tecnológica. Os futuristas e os que propõem um aceleramento do processo histórico (aceleracionistas) olham com confiança para um futuro próximo onde  a inteligência artificial será comparável, em parâmetros básicos, à dos seres humanos.

 A esse momento chamam Singularidade (Singularity) cujo advento está previsto para os próximos dez a vinte anos.

 

 

        O Último Combate dos Liberais

 

É este o contexto onde deve ser enquadrada a orquestrada vitória Biden; no fundo, é este o  significado da expressão “Great Reset” e do slogan “Built Back Better”.

No começo do milénio os globalistas confrontavam-se com uma série de problemas,  mais de natureza “civilizacional” que ideológica. No fim dos anos noventa do século passado já não existiam ideologias, que se pudessem opor ao liberalismo, capitalismo e globalismo com um mínimo de coerência. Embora em graus diversos, os seus princípios tinham sido aceites por virtualmente todo o mundo. No entanto a implementação do liberalismo, da política de género e a abolição dos Estados-nação a favor dum governo mundial,  acabou por abrandar em várias frentes.

A Rússia de Putin, uma potência com armas nucleares, com uma tradição histórica de oposição ao Ocidente e com uma série de tradições conservadoras preservadas na sua sociedade, começava a dar mostras de querer resistir crescentemente às reformas de cariz liberal.

A China, embora estivesse, há muito, comprometida com a globalização e o capitalismo, insistia em manter a predominância do Partido Comunista Chinês e, sobretudo sob Xi Jiping, começavam a renascer tendências nacionalistas preocupantes. Tudo isto estava fora dos planos dos globalistas.

Os países islâmicos continuavam a sua luta contra a ocidentalização e, apesar das sanções e das  pressões, mantinham (como o Irão Shiita) os respectivos regimes irreconciliavelmente anti liberais; e as políticas dos Estados Sunitas mais importantes, como a Turquia e o Paquistão, tornavam-se cada vez mais independentes do ocidente.

Na Europa, surgia uma onda de populismo resultante do crescente descontentamento dos nativos europeus com o contínuo incentivo das elites à  imigração em massa e  a forçada implementação da ideologia de género.

Se por um lado, as elites políticas europeias continuavam completamente subordinadas à estratégia globalista emanada  do Fórum de Davos, através dos seus teóricos, Schwab e Príncipe Carlos, por ouro, as respectivas populações, começavam a movimentar-se numa revolta directa contra as autoridades – como, por exemplo, no caso dos “coletes amarelos”  em França. Nalguns casos, como em Itália, na Alemanha ou na Grécia, os populistas tinham conseguido, até, chegar ao parlamento.

E, cereja no topo do bolo, em 2016, nos próprios EUA, Donald Trump conseguia ser eleito presidente, com uma campanha baseada em críticas  directas e severas à ideologia, práticas e objectivos dos globalistas, arrecadando os votos de mais de metade dos americanos.

Aos olhos dos liberais, esta maré anti globalistas, representava um quadro ominoso: como era possível estar a ser posta em causa toda a história dos últimos séculos, com a sua ininterrupta sucessão de triunfos do nominalismo e liberalismo? E, não se tratava de este ou aquele regime político estar a ser posto em causa; tratava-se duma ameaça ao próprio liberalismo enquanto tal.

Até mesmo os teóricos do globalismo começaram a sentir que algo de muito errado estava  a acontecer. Fukuyama, por exemplo, teve de abandonar a sua tese do “fim da História”, sugerindo que talvez fosse mais avisado preservar por mais algum tempo os Estados-nação, desde que continuassem a ser  dirigidos por elites liberais que preparassem as populações para o futuro pós-humanista. Outro globalista, charles Krauthammer, declarou que o “momento unipolar” tinha acabado e que as elites globalistas não tinham conseguido tirar dele as devidas vantagens.

Foi neste estado de pânico quase histérico que  os representantes das elites globalista, estiveram nos últimos quatro anos;  para eles, correr com Trump da presidência dos EUA, era uma questão de vida ou de morte; se Trump fosse reeleito, o colapso da estratégia globalista seria irreversível. Mas Biden – não importa como – conseguiu destituir Trump e demonizar os seus apoiantes.

 E, é aqui que a Great Reset entra em acção. Na verdade, não há, nela, nada de novo – trata-se apenas da continuação lógica do vector principal do progresso da civilização europeia ocidental tal como sempre foi entendido pela ideologia liberal e pela filosofia nominalista.  A diferença é que agora pretende libertar os indivíduos das últimas formas de identidade colectiva sobreviventes, procedendo à abolição do “género” e avançando para um paradigma pós-humanista.

Os avanços das tecnologias de ponta, a integração das sociedades em “redes digitais” totalmente controladas, de forma abertamente totalitária, pelas elites globalistas, e o refinamento das formas de rastrear, monitorizar e influenciar as populações, tornaram o objectivo dos liberais globalistas perfeitamente realizável.

Do que atrás fica dito, fica clara a nossa situação actual, dentro do processo histórico em curso e o real significado da Great Reset. 

Estamos no começo da “batalha final”.

 Os globalistas, na sua luta pelo nominalismo, liberalismo e libertação individual, vêem-se, a si próprios, como verdadeiros “guerreiros da luz”  trazendo às massas, o progresso, a libertação de milhares de anos de preconceitos e um mundo de novas possibilidades – desde as maravilhas da engenharia genética até quiçá, à imortalidade física.

Todos que se lhes opõem, são a seus olhos, “forças obscurantistas”; e, portanto, “inimigos da  sua "open society ”, os quais devem ser tratados com a severidade que merecem - “se o inimigo não se render, deve ser destruído”. 

O inimigo são todos que se opõem ao liberalismo, globalismo, individualismo, nominalismo em todas as suas manifestações. 

É esta  a  "ética" do liberalismo. 

Não é nada de pessoal. 

Todos têm o direito a ser liberais; mas ninguém tem direito a ser mais nada.

 

 

O Cisma nos EUA: O Trumpismo e os seus Inimigos

 

                                 O Inimigo Interno

Num contexto mais limitado -   em comparação ao quadro geral da história do liberalismo de Ockham a Biden - a vitória Democrata, arrancada a Trump na luta pela Casa Branca no inverno de 2020-2021, teve um enorme significado ideológico quanto ao processo em curso na sociedade americana. 

Depois da queda da União Soviética e do começo do “momento unipolar”  nos anos 90, o liberalismo global deixou de ter qualquer oponente. Ou, pelo menos assim pareceu no contexto optimista do “fim da história”; e embora essas previsões viessem a revelar-se prematuras, Fukuyama não estava apenas a sonhar com um futuro hipotético – estava, sim, a seguir a lógica própria da interpretação liberal da história.

De facto, os padrões próprios da democracia liberal – o mercado, os processos eleitorais, o capitalismo, o reconhecimento dum número sempre crescente de “direitos humanos”, as constantes transformações de cariz tecnocrático e a obsessão em desenvolver e aplicar a tudo tecnologias digitais – foram impostos a toda a humanidade. 

Se alguns povos persistiam na perrice de rejeitar a globalização, tal facto era entendido como  resultado da inércia própria de nostálgicos do passado ou como uma inexplicável recusa em se deixar agraciar pelas “bênçãos” do progresso liberal.

Por outras palavras, esses fenómenos não consubstanciavam uma oposição ideológica credível (que espécie de loucos não quereria ser beneficiados com tão óbvias vantagens?) mas apenas contratempos desagradáveis. Os cães podiam continuar a ladrar, que a caravana do progresso liberal continuaria a suprimir gradualmente todas as diferenças civilizacionais - a bem ou a mal. 

Mais tarde ou mais sedo, a adopção do sistema capitalista pela China, pela Rússia e pelo Mundo Islâmico, implicaria a surgimento de processos de democratização política, de enfraquecimento das soberanias nacionais, com a inevitável implementação dum sistema planetário único – o governo mundial.

Não se tratava, pois, de uma questão ideológica mas duma questão de tempo.

Foi neste contexto que os globalistas começaram a abolir as últimas formas de identidade colectiva, através, nomeadamente, da prossecução de políticas de género e da intensificação dos fluxos de imigração massiva, com o fim de erodir permanentemente a identidade cultural das sociedades  ocidentais.

Mas, eis se não quando, começa a surgir no seio do próprio Ocidente, um “inimigo interno”, reunindo todas as forças que se opunham à destruição da identidade sexual, do que restava da tradição cultural ocidental e ao enfraquecimento da classe média.

 Os horizontes pós-humanistas da eminente chegada da Singularidade com a sua anunciada intenção de substituir os humanos pela Inteligência Artificial, tinha-se tornado motivo de preocupação crescente para um leque cada vez mais alargado de pessoas. 

E, a nível filosófico, nem todos os intelectuais estavam dispostos a engolir as conclusões paradoxais da pós-modernidade e do realismo especulativo.

Ainda para mais, acentuava-se, de dia para dia, uma clara contradição entre as populações do Ocidente, que viviam ainda segundo as normas duma modernidade já considerada do passado, e as elites globalistas que pretendiam a qualquer custo acelerar o progresso social, cultural e tecnológico tal como eram por elas entendido.

Os inimigos da “open society” encontravam-se, agora, dentro da própria civilização ocidental e não apenas fora dela, aglutinando à sua volta todos os que rejeitavam as últimas tendências liberais -  políticas de género, fomento da  imigração em massa,  abolição dos Estados-nação e da respectiva soberania - muito embora, esta resistência crescente, genericamente apelidada pelas elites de “populismo” (ou, “populismo de extrema direita”), comungasse da mesma ideologia liberal – capitalismo e democracia liberal - mas interpretando os respectivos valores e referências segundo uma acepção desactualizada.

A liberdade era entendida pelos “populistas” como a liberdade de se poder ter qualquer ponto de vista e não só o do politicamente correcto; a democracia era, ainda, interpretada como o governo da maioria; a liberdade de mudar de sexo deveria, segundo eles, ser combinada com a manutenção dos valores familiares; a disposição para aceitar migrantes que mostrassem ter as condições mínimas para se poderem integrar nas sociedades ocidentais era estritamente diferenciada da aceitação cega de todos sem distinção.

Gradualmente, os “inimigos internos” dos globalistas foram alcançando proporções consideráveis e grande influência.

A velha democracia desafiava a nova.

 

 

Trump e a Vitória dos Deploráveis

 

Este processo veio a culminar com a vitória de Trump em 2016. Trump construiu a sua campanha precisamente sobre esta divergência na sociedade americana. 

Hillary Clinton, a candidata globalista, num lapsus linguae revelador, teve a imprudências de apelidar os apoiantes de Trump - isto é, o “inimigo interno” - de “deploráveis”, ou seja, “patéticos”, “lamentáveis”, “execráveis”. 

Os “deploráveis” responderam elegendo Trump.

Esta dicotomia dentro da democracia liberal tornou-se, pois, um facto ideológico e político incontornável.

Os que continuavam a interpretar a democracia à maneira antiga (como o governo da maioria), não só tinham o topete de se rebelarem contra a nova interpretação (o governo duma minoria abertamente contra a maioria “populista” e “fascista”), como conseguiam pôr o seu candidato na Casa Branca.

Trump, por seu lado, declarou ir “drenar o pântano”, isto é, ver-se livre do liberalismo globalista e “tornar a América grande, novamente”. Note-se a palavra “novamente”. Trump queria somente voltar à era dos Estados-nações e contrariar os “ventos da história” (tal como os liberais os entendiam); por outras palavras, pretendia apenas opor, os “bons velhos tempos”, ao “globalismo, já" e ao "pós-humanismo, amanhã”.

Os quatro anos que se seguiram foram um verdadeiro pesadelo para os globalistas. Os meios de comunicação social por eles inteiramente controlados, acusaram Trump de todos os pecados possíveis e imagináveis – até de estar a “trabalhar para os russos” porque os “russos” também rejeitavam o “admirável mundo novo” liberal, sabotando o advento do governo mundial  e proibindo - horror dos horrores - as “paradas de orgulho gay”.

Tinham-se unido, embora por motivos diferentes, todos os que se opunham à globalização liberal - desde Putin, passando por Xi Jinping e alguns líderes islâmicos, até -  imagine-se! -ao número um do “mundo livre”, o próprio presidente dos EUA. 

Era um verdadeiro tragédia para os globalistas que não tiveram um minuto de sossego enquanto não conseguiram correr com Trump da presidência.

 Para o conseguir, fomentaram revoluções coloridas no seu próprio país, orquestraram motins, aldrabaram o processo eleitoral e os métodos de contagem dos votos, enfim utilizaram todas as trafulhices que, até então, o Deep State, apenas tinha usado contra países e regimes estrangeiros.

Só depois de retomarem a Casa Branca os globalistas puderam respirar fundo e puderam voltar a … mais do mesmo.

Só que, para eles o “mesmo” (built back) significava o “momento unipolar” pré-Trump.

 

                        

                             O Trumpismo

 

Trump cavalgou, em 2016, a onda “populista” como nenhum líder europeu conseguiu até hoje fazer, tornando-se, assim, um símbolo da oposição à globalização liberal.

É certo que ele não constituía, só por si, uma verdadeira alternativa ideológica, mas apenas uma resistência desesperada às mais recentes conclusões da lógica, e até da metafísica, do liberalismo (e nominalismo). Trump não estava de forma alguma a desafiar o capitalismo e a democracia liberal, mas apenas a implementação gradual e sistemática das formas por eles assumidas na sua fase final.

Foi assim que o fenómeno “trumpismo” se formou, superando, em muitos aspectos a dimensão da personalidade de Donald Trump. Trump simplesmente “surfou” a onda dos protestos antiglobalização. Mas é claro que não se trata duma figura de cariz ideológico. E, no entanto, foi em torno dele que o bloco oposicionista se começou a formar. Nesse sentido, a conservadora americana Ann Coulter, autora do livro In Trump we Trust, reformulou posteriormente o seu credo para “in Trumpism we Trust”.

Assim, foi o Trumpismo e não Trump que se tornou o núcleo duro da oposição ao globalismo. No seu papel de Presidente, Trump nem sempre esteve à altura da situação; e não conseguiu nada que se assemelhasse a “drenar o pântano” e a derrotar o globalismo. Mas, pelo menos, tornou-se o aglutinador de todos aqueles que estavam cientes, ou simplesmente pressentiam, o perigo constituído pelas elites globalistas e pelos representantes da Big Finance e  da Big Tech, com elas conluiados.

O Intelectual conservador americano Steve Bannon teve um papel importante no processo, mobilizando largos segmentos da juventude e vários movimentos conservadores no apoio a Trump. O próprio Bannon havia-se inspirado em autores anti modernistas sérios como Julius Évola e, como tal, a sua oposição ao globalismo e liberalismo tinha raízes mais profundas.

Tiveram um importante papel no Trumpismo  os conservadores clássicos – isolacionistas e nacionalistas – como Buchanan, Ron Paul, assim como adeptos da filosofia antiliberal e anti modernista (portanto, fundamentalmente, anti globalistas), como Richard Weaver e Russell Kirk,  marginalizados pelos neocons (os globalistas de direita) desde os anos 80.

Uma parte da mobilização para o Trumpismo foi conseguida através da Internet por uma organização  chamada QAnon que baseava a sua crítica, ao liberalismo, ao globalismo e aos democratas em teorias da conspiração, espalhando uma torrente de acusações e denúncias que envolviam os globalistas em escândalos sexuais, de pedofilia, corrupção e satanismo. Embora tenham expandido bastante a sua influência acabaram por conferir à crítica antiliberal traços algo grotescos. Foram os seus apoiantes que estiveram na vanguarda  dos protestos de 6 de Janeiro, invadindo o Capitólio, furiosos com a eleição roubada. Mas, não só, esta acção foi inútil, como deu a Biden e aos democratas um pretexto para demonizar ainda mais o Trumpismo e todos os que se opunham ao globalismo, aproveitando para  passarem a associar qualquer tipo de conservadorismo a “extremismo”.

Na onda de detenções que se seguiu os “Novos Democratas” chegaram a defender que  todos os Direitos sociais – incluindo o de poder comprar passagens de avião – deviam ser retirados aos apoiantes de Trump.

 Na realidade, como toda a comunicação social é regularmente monitorizada por funcionários da elite liberal, coligir informações sobre as preferências políticas de praticamente todos os cidadãos dos EUA, não constituía qualquer problema. 

A chegada de Biden à Casa Branca revelou o liberalismo em todo o seu tenebroso totalitarismo; doravante, o Trumpismo, o “populismo”, a defesa dos valores familiares e qualquer vestígio de conservadorismo ou desacordo com a doutrina liberal, passavam a ser considerados quase crimes – “discurso de ódio” e “fascismo”.

Mas, apesar dos pesares, o Trumpismo não desapareceu com a vitória de Biden porque, é bom não esquecer, setenta milhões de eleitores norte americanos votaram em Donald Trump nas últimas eleições tornando-se claro que o Trumpismo não terminará com o fim de Trump.      Algo de similar parece estar a acontecer nos países europeus, onde os movimentos e partidos populistas cada vez mais tomam consciência de que, dentro da UE, não passam de dissidentes privados de quaisquer direitos e sujeitos a perseguição ideológica no quadro de um autêntico totalitarismo globalista.

E, o facto de, com Biden na Casa Branca, os globalistas  estarem a proceder à destruição dos próprios EUA  dá uma dimensão especial à “batalha final”.

Não se trata, já, do Ocidente contra o Leste, nem dos EUA e NATO contra o resto do mundo, mas sim dos liberais contra o resto da humanidade – incluindo as suas próprias populações.

Ficava assim delimitado com nitidez o ponto de partida para a “última batalha”.

 

                        Individuum and Dividuum

Torna-se, agora, necessário esclarecer um ponto importante. Vimos que toda a história do liberalismo se resume à sucessiva "libertação" do indivíduo de todas as formas de identidade colectiva que os oprimiam e que o estádio final da aplicação lógica do nominalismo será a transição para o pós-humanismo, com a substituição da civilização com características humanas por uma civilização tecnológica pós humanista.

Este é o extremo aonde, o individualismo consistente, encarado como algo de absoluto, nos levou.

Mas, chegada aqui, a filosofia liberal confronta-se a um paradoxo fundamental.

A libertação do indivíduo da sua identidade humana - para a qual as políticas de género têm preparado o terreno, ao, consciente e propositadamente, pretenderem transformar o ser humano num monstro pervertido - não pode garantir que este novo (e, inovador!) ser, seja ainda um indivíduo.

O desenvolvimento das tecnologias informáticas, a engenharia genética  e a Ontologia Orientada para o Objecto (que se se opõe ao antropocentrismo) claramente apontam para o facto de esse “novo ser” vir a ser menos um animal  do que uma máquina  -  prometendo “amanhãs” de imortalidade sob a forma da preservação artificial das memórias pessoais

Assim, este ser do futuro, como consumação última do projecto liberal, paradoxalmente, não será capaz de garantir aquele que foi sempre o principal objectivo do progresso liberal – isto é, não será capaz de preservar a sua individualidade.

O ser liberal do futuro, até mesmo do ponto de vista teórico, não será um indivíduo, algo “indivisível”, mas antes um “dividuum”, ou seja, algo divisível, feito de partes substituíveis, uma máquina.

Na física teórica há muito que se transitou da teoria dos átomos (isto é, unidades indivisíveis da matéria) para a teoria das partículas, que são vistas não como “partes dum todo” mas como “partes sem um todo”. O indivíduo como um todo passa também a poder decompor-se em partes componentes, susceptíveis de ser montadas ou não. 

Não é à toa que as figuras de quimeras, mutantes e monstros têm abundado na ficção moderna, povoando (e, portanto, em certo sentido, antecipando e até planeando) imaginadas versões do futuro.

Os pós-modernistas e os realistas especulativos, têm vindo a preparar o terreno para esse futuro, propondo substituir a ideia do corpo humano como um todo completo, pela ideia de “parlamento de órgãos” (B. Latour). Deste modo o indivíduo - mesmo como unidade biológica – tornar-se-ia em algo diferente, sofrendo uma mutação no preciso momento em que fosse montado.

Por outras palavras, a interpretação liberal do “progresso humano” acaba necessariamente por determinar a abolição da humanidade.

E, é precisamente disto que todos os que se opõe ao globalismo suspeitam, embora muitos de maneira vaga e imprecisa.

E, embora a Qanon, com as suas teorias da conspiração, distorcesse a realidade conferindo-lhe traços suspeitos e grotescos, que os liberais facilmente conseguem refutar, o facto é que, no que diz respeito às intenções dos globalistas, a realidade objectiva consegue ser bem mais assustadora do que as mais alarmantes e monstruosas premonições.

O Grande Reinício (The Great Reset) é confessadamente um plano para acabar com a humanidade, tal como até aqui a conhecemos. 

Esta é a consequência lógica do “progresso”, tal como é entendido pelo liberalismo.

 Ao procurar libertar o indivíduo de todas as formas possíveis de identidade colectiva, o liberalismo acaba por libertar o indivíduo de si próprio.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


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