A Sociedade Paliativa

Byung–Chul Han é um filósofo germano-coreano que, nascido em Seul, se radicou na Alemanha nos anos oitenta onde estudou filosofia na universidade de Friburgo e Literatura Alemã e Teologia na Universidade de Munique. Em 1994 doutorou-se nesta universidade com uma tese sobre Martin Heidegger. Ensina, actualmente Filosofia na Universidade de Berlim. Talvez por vir “de fora” tenha uma visão particularmente lúcida da sociedade actual. Publicou em 2020, “A sociedade Paliativa” onde analisa as causas e consequências da nossa estranha reacção à presente “pandemia”.

Eis algumas passagens deste seu livro:

«Hoje reina por toda a parte uma algofobia, um medo patológico da dor. A tolerância à dor diminui rapidamente. A algofobia tem por consequência uma anestesia permanente. Tenta-se evitar a todo o custo qualquer estado doloroso. 

Até o sofrimento amoroso se tornou suspeito.

 A algofobia estende-se ao social. Cada vez mais se evitam os conflitos e as controvérsias susceptíveis de conduzir a confrontos dolorosos.

A algofobia abrange também a política. A coacção à conformidade e a pressão para o consenso estão a aumentar. A política instala-se numa zona paliativa e perde toda a vitalidade. A “falta de alternativas” é um analgésico político. O “centrão” difuso e amorfo tem um efeito paliativo; em vez de se discutir e lutar, procurando os melhores argumentos, cede-se à coacção do sistema.

Alastra uma pós-democracia, uma democracia paliativa, incapaz de visões ou reformas drásticas susceptíveis de poderem criar dor; que prefere recorrer a analgésicos de curta duração que apenas mascaram disfunções e distorções sistémicas. A política paliativa não tem coragem para a dor. E, assim, o mesmo permanece.

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A crise de opióides (pain killers) nos EUA tem, neste contexto, um carácter paradigmático. Assenta num pressuposto desastroso para a existência humana. Uma ideologia do bem-estar permanente levou a que fármacos usados em medicina paliativa estejam a ser ministrados em grande escala a pessoas saudáveis. David Morris, um especialista norte-americano em dor, sublinhou que “ os norte-americanos actuais pertencem à primeira geração do mundo que considera uma existência sem dor como uma espécie de direito constitucional. A dor é um escândalo.”

Hoje, as pessoas sofrem da “síndroma da princesa e da ervilha”. O paradoxo desta síndroma da dor consiste no facto de se sofrer cada vez mais com cada vez menos. A dor não é uma grandeza verificável, mas uma sensação subjectiva. As espectativas criadas pelo progresso, a par da perda de sentido para a dor, fazem com que mesmo pequenas dores pareçam insuportáveis. E, não temos um sentido, uma narrativa,  nem instâncias ou objectivos superiores capazes de envolver a dor e de a tornar suportável. Uma vez desaparecida a ervilha que causava a dor, as pessoas começam sofrer até com colchões macios.

E, o vazio de sentido actual, torna as dores insuportáveis. Elas reflectem a nossa sociedade sem sentido, para a qual a vida se tornou uma sobrevivência nua.

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O actual vírus tornou-se um espelho desta sociedade. Ele, torna evidente a sociedade em que vivemos. Hoje, a sobrevivência é absolutizada, como se estivéssemos num estado de guerra permanente. Todas as forças vitais são utilizadas para prolongar a vida. A sociedade paliativa revela-se uma sociedade da mera sobrevivência.

O vírus invade a zona de bem-estar paliativa e transforma-se numa hibernação, na qual a vida se suspende para sobreviver.

Mas, quanto mais a vida é uma  mera sobrevivência, mais medo se tem da morte. A algofobia é, em última análise uma tanatofobia.E, a pandemia torna de novo visível a morte que, com todo o cuidado, tínhamos afastado e deslocalizado.

A sociedade da sobrevivência perde completamente o sentido do bem viver (gute leben). Até, o prazer é sacrificado à saúde a qual é elevada a objectivo em si.

O rigor da proibição de fumar é um exemplo da histeria da sobrevivência. O prolongamento da vida a todo o custo torna-se um valor que se sobrepõe a todos os outros valores.

 Em nome da sobrevivência, sacrificamos tudo o que dá valor à vida.

 Perante a pandemia, aceita-se inquestionavelmente a restrição radical dos direitos fundamentais. Sem opormos resistência, submetemo-nos ao estado de emergência, que reduz a vida à vida nua.

Sob o estado de emergência viral, trancamo-nos voluntariamente em quarentena, numa variante vírica do campo de concentração - no qual também predomina a vida nua.

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Em face da pandemia, a sociedade da sobrevivência proíbe as cerimónias religiosas, mesmo na Páscoa.

O Clero pratica, também ele, o “distanciamento social” e usa máscara.

 Sacrifica totalmente a crença à sobrevivência.

Paradoxalmente, hoje, o amor ao próximo, na Igreja, manifesta-se como distanciamento – pois, o próximo é o portador do vírus potencial.

 A virologia desautoriza a teologia.

Todos estão atentos ao que dizem os especialistas, que alcançam uma supremacia de exegese absoluta.

Os sacramentos são  substituídos por unidades de cuidados intensivos e ventiladores

 A Doutrina da Ressurreição cede por completo o passo à ideologia da saúde e da sobrevivência.

Perante o vírus a Fé degenera e transforma-se numa farsa.

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 Contam-se os mortos diariamente. A morte domina por completo a vida e esvazia-a em nome da sobrevivência.

 A vida é reduzida a um processo biológico que precisa ser optimizado. Perde toda a dimensão meta-física.

O auto-rastreamento torna-se um culto. A hipocondria digital, a avaliação permanente de si mesmo com aplicações de saúde e de boa forma física degrada a vida, tornando-a uma mera função.

 A vida é despojada de qualquer narrativa com sentido. Ela deixa de ser narrável e passa a ser mensurável e contável

A vida fica nua e, até obscena.

Todos somos tratados como terroristas potenciais. Sem opormos resistência deixamo-nos dominar por medidas de segurança humilhantes. Permitimos que os nossos corpos sejam “revistados” à procura de “armas” escondidas.

Todos somos suspeitos de sermos potenciais portadores do vírus, o que provoca uma sociedade de quarentena e terá como consequência, inelutável um regime de vigilância biopolítica.

Perdeu-se a perspectiva de um outro modo de vida. Na guerra contra o vírus, a vida é mais do que nunca apenas sobrevivência. A histeria da sobrevivência intensifica-se e torna-se viral.

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Viktor von Weizacker descreveu a cena primordial da cura da seguinte forma: “Quando a irmãzinha vê o irmãozinho sofrer, ela encontra um caminho anterior a todo o conhecimento: a sua mão acariciadora, quando o afaga, quer tocá-lo onde lhe dói – e assim a pequena samaritana torna-se o primeiro médico. E, é isso que o irmãozinho vai sentir, a mão faz-lhe bem.  Entre ele e a sua dor tem lugar a sensação de ser tocado pela mão da irmã, e a dor recua.”

Hoje afastamo-nos cada vez mais desta cena primitiva de cura. A experiência dos cuidados curativos  como sensação de nos tocarem e falarem connosco é cada vez mais rara.

Vivemos numa sociedade com uma solidão e isolamento crescentes. O narcisismo e o egoísmo intensificam-se. A solidão e a ausência da experiência da proximidade também actuam como amplificadores da dor.

 É obvio que nos falta a mão curativa do outro. Nenhum analgésico pode substituir aquela cena primitiva da cura.

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À luta pela sobrevivência deve opor-se a preocupação com o bem viver.

 A sociedade dominada pela histeria da sobrevivência é uma sociedade de mortos-vivos. Estamos demasiado vivos para morrer e demasiado mortos para viver.

 Na preocupação exclusiva com a sobrevivência, assemelhamo-nos ao vírus, esse morto-vivo que, não vive, mas se reproduz - que apenas sobrevive, sem viver.»

 J F M, 28/10/2020

 

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