TUDO O QUE NUNCA LHE DISSERAM - E, PROVAVELMENTE, NUNCA QUIS SABER - SOBRE SEXO, AMOR ROMÂNTICO E CASAMENTO, NA PERSPECTIVA DA MORAL CATÓLICA TRADICIONAL/DIREITO NATURAL CLÁSSICO 


                            IV -  O ARGUMENTO DA FACULDADE PERVERTIDA

Ecclesia edixit doctrinam Thomae esse suam.

S.S. Bento XV (Carta Encíclica Fausto aspettente die)

Ite ad Thomam.

S.S. Pio XI (Carta Encíclica Studiorum ducem)


Apesar do que ficou escrito no capítulo anterior, diga-se em abono da verdade que tudo o que até agora foi dito pode não ser suficiente para suportar as exigências morais absolutas feitas pelo Magistério Católico:

Se ficássemos pelo que até aqui dissemos seria difícil estabelecer o limite a partir do qual os actos contraceptivos e masturbatórios começam a contrariar os fins unitivos e reprodutivos do sexo uma vez que nada do que foi dito, por si só, determina que esses actos são sempre e em princípio errados.

Sendo assim, do ponto de vista do Magistério Católico, o que ficou escrito parece por um lado não ser suficiente. Mas, por outro lado, parece ser demais.

Por exemplo, se é bom prosseguir os fins unitivos e reprodutivos do sexo e errado impedi-los, então seria mau alguém não se casar podendo fazê-lo. Ou, se os fins unitivos e reprodutivos do sexo são inseparáveis, então os casais estéreis ou idosos deveriam abster-se de ter relações sexuais.

Ora, do Ensinamento Católico não se podem, efectivamente, retirar semelhantes conclusões; seria o mesmo que concluir que, pelo facto da propriedade privada ser boa, não se deveria dar esmola; ou que, pelo facto de a verdade ser boa, não nos deveríamos abster de dar informações embaraçantes; ou que, pelo facto de os alimentos serem benéficos, nunca deveríamos jejuar.

Na verdade, com o sexo, como com os outros bens, identificar os seus fins naturais é apenas o primeiro passo, embora crucial, para determinar o seu papel numa vida moralmente bem ordenada; mas, tal passo, só por si, não responde a todas as perguntas que possam surgir, uma vez que a vida humana é complexa e a prossecução simultânea dos diferentes bens, resultantes da natureza humana, pode não ser exequível.

Por vezes um determinado bem terá de ser sacrificado em prol de um bem maior, como quando, em prol do sacerdócio ou duma vocação religiosa, se sacrifica o matrimónio e a família. Outras vezes um bem não poderá ser prosseguido por força de determinadas vicissitudes, como quando alguém não consegue encontrar um parceiro conveniente para casar, ou quando um casal tem de se abster de ter relações sexuais porque a gravidez daí resultante seria perigosa para a saúde da mãe ou do filho.

Sendo assim, poder-se-á concluir que - existindo uma proibição moral absoluta dos actos contraceptivos, masturbatórios, homossexuais etc., e não se aplicando tal proibição à simples abstinência sexual ou ao sexo entre casais estéreis - deverá haver algo na natureza dos primeiros actos que os torna inerentemente contrários ao que é bom para nós, seres humanos; algo que não se verifica nas segundas situações.

Para determinar a natureza desse algo ter-se-á de recorrer ao clássico Argumento da Faculdade Pervertida o qual constava de todos os manuais católicos sobre Ética e Moral anteriores ao Concílio Vaticano II.

A ideia que subjaz ao Argumento da Faculdade Pervertida é extremamente simples e pode ser formulada num estilo formal, da seguinte forma:

"Quando uma faculdade F é inerente à natureza de um agente A, e existe precisamente para que A possa prosseguir um determinado fim E, é metafisicamente impossível ser bom para A usar F por forma a contrariar a realização de E."

Esta tese resulta directamente da metafisica A-T do bem, atrás exposta: O bem, para uma dada coisa, depende do fim que é inerente a essa mesma coisa, por força da sua própria natureza.

F existe em prol da prossecução de E, e todos os agentes A possuem F precisamente para que possam prosseguir E. Então, atendendo à metafísica A-T, não é possível ser bom para A o uso de F em prol de um fim que inerentemente frustre a realização de E.

É importante esclarecer precisamente o que esta tese diz e o que não diz:

Em primeiro lugar note-se que ela descreve o que é bom para um agente racional uma vez que a moral não trata do que é bom para as plantas, os animais e os seres inanimados, mas do que é bom para os seres humanos, tendo em conta a sua natureza.

Note-se também que esta tese não implica que a faculdade F não possa ter mais do que um fim natural, nem implica que não possa ser bom para A usar F para outro fim que não E, uma vez que diferente de E ou outro além de E, não significa contrário a E.

Nem, implica que seja obrigatório usar F. Porque F, que faz parte de A, existe apenas para o bem de A como um todo e, sendo assim, é até perfeitamente admissível, à luz desta tese, destruir F se tal for o único modo de preservar A: como acontece quando um órgão canceroso tem de ser removido para salvar a vida do seu dono.

Também não implica que A tenha a intenção consciente de realizar E - ainda que parcialmente - sempre que usar F; implica apenas que ao usar F, tenha ou não tenha a intenção de realizar E, não tenha a intenção de activamente frustrar a realização de E.

Nem implica que A não possa usar F quando saiba que o seu uso não leva à realização de E uma vez que, neste caso, não está a usar F por forma a activamente frustrar a realização de E, nem está ele próprio a actuar de modo a procurar a não realização de E, ao usar F: porque prever que o uso de F não leva à realização de E não é o mesmo que usar F de modo a frustrar intencionalmente a realização de E; do mesmo modo que prever que algo não se realizará não é o mesmo que impedir tal coisa aconteça.

Nem, aquela tese significa que a utilização de artefactos construídos pelo homem implique só por si a frustração do fim natural de F. Pelo contrário, tais artefactos servem muitas vezes para restaurar as funções naturais (como acontece com os óculos) ou aumentá-las (como no caso dos binóculos); e, é possível frustrar a realização do fim natural de uma faculdade sem usar artefactos (como no caso de, por absurdo, alguém arrancar os olhos com as próprias mãos).

Ser contrário à natureza — aqui como mais genericamente na Moral Católica Tradicional/Direito Natural Clássico (MCT/DNC) - não tem a ver com o facto de algo ser ou não ser artificial no sentido de ser construído pelo homem, mas sim com o facto de activamente frustrar o fim para o qual a faculdade naturalmente está dirigida.

A tese não é afectada, também, pela possibilidade de algumas pessoas terem um desejo profundo, ou até geneticamente determinado, de usar F por forma a contrariar E. O facto de alguém ter miopia não faz com que o fim natural dos seus olhos seja diferente do fim natural dos olhos das pessoas normais; significa apenas que, embora os seus olhos tenham o mesmo fim que os olhos das pessoas normais, são deficientes no sentido que são menos aptos a prosseguir o seu fim natural. O facto de alguém nascer com tendência para o alcoolismo não significa que, ao contrário dos outros seres humanos, a realização dos seus fins naturais implique beber imoderadamente; significa sim que, embora tenha os mesmos fins naturais dos outros seres humanos - cuja realização implica não beber em excesso —tem, também, um defeito psicológico que dificulta a realização desses fins naturais.

Por outro lado a tese não se focaliza exclusivamente nos aspectos meramente fisiológicos uma vez que existem faculdades psicológicas, além das fisiológicas, que como estas têm fins naturais para os quais existem inerentemente.

Ao mesmo tempo, a tese não reduz a questão moral à questão de se determinar se uma dada faculdade, seja esta fisiológica ou psicológica, é ou não usada correctamente. Diz apenas que determinadas acções são inerentemente contrárias ao bem e como tal devem ser descartadas.

Obviamente que, para uma abordagem sistemática da moral (sexual ou outra), seria necessário chamar à colação outros tipos de considerações.

Mas, quando aplicado à moral sexual, o Argumento da Faculdade Pervertida deixa espaço aberto para um largo tipo de acções:

Por exemplo: é perfeitamente compatível com esta tese o facto de alguém se abster de praticar actos sexuais tendo em vista uma vocação sacerdotal ou religiosa ou simplesmente para evitar uma gravidez. Porque a tese não nos diz que há algo de necessariamente contrário à natureza no facto de não se usar uma faculdade mas sim que é contrário à natureza usar uma faculdade por forma a activamente frustrar o fim para o qual ela existe. Claro que podem existir outras razões morais segundo as quais possa ser errado procurar evitar a gravidez ou evitar usar qualquer outra faculdade, mas essa é uma outra questão. O ponto a realçar será que abster-se de usar uma faculdade não é o mesmo que perverter a faculdade.

Da mesma forma, não há nada na tese que implique haver algo de inerentemente errado em se ter relações sexuais durante a gravidez, ou durante os períodos inférteis, ou com um cônjuge estéril, ou depois da menopausa, ou mais geralmente, em situações nas quais é previsível que a concepção não ocorra; porque em nenhuma destas situações se está a usar a faculdade sexual de forma a activamente frustrar o seu fim natural. Prever que, de um dado acto sexual, não resultará a concepção, não é o mesmo que activamente alterar os órgãos envolvidos ou a natureza do acto de forma a impossibilitar a concepção.

Identicamente, usar órgãos que, por alguma razão, não estão funcionais — no sentido de estarem incapacitados para realizar o fim para o qual existem - não é pervertê-los; mas tentar activamente torná-los não funcionais (como na laqueação das Trompas de Falópio ou na vasectomia) por forma a impedir que do seu uso resulte a realização do fim para os quais existem, é pervertê-los.

A tese também não implica que o casal tenha de ter a intenção de conceber sempre que tem relações sexuais, mas sim que o casal não pode querer activamente alterar a natureza do acto sexual ou alterar a função dos órgãos envolvidos de forma a torna-los incapazes de conceber estando eles em perfeito estado de funcionamento.

Nem implica que um casal não possa estimular os órgãos sexuais do cônjuge das mais variadas maneiras, no contexto de um acto sexual que atinja o seu clímax com a ejaculação do marido na vagina da esposa.

Igualmente, também não impede o uso de meios artificiais no contexto de um acto sexual, como por exemplo o uso de drogas para tratar a impotência do marido, desde que tal uso não seja reflexo de uma atitude meramente hedonista, uma vez que não se traduz, de per se, numa frustração do fim natural do acto sexual.

Resumindo, o Argumento da Faculdade Pervertida não é tão simplista ou restritivo nas suas consequências como à primeira vista poderia parecer, ao mesmo tempo que proíbe exactamente as práticas tradicionalmente condenadas pela Moral Católica Tradicional.

Diversamente, o uso da pílula contraceptiva, de preservativos, ou de qualquer outro dispositivo contraceptivo, implica obviamente o uso das faculdades sexuais de forma a activamente frustrar os seus fins reprodutivos. E, é exactamente esta frustração activa dos fins, e não a artificialidade dos meios que os torna, em sentido relevante, contrários à natureza. É por essa razão que o coito interrompido ou qualquer tipo de estimulação do órgão sexual do marido que leve à ejaculação fora da vagina da esposa são também contrários à natureza em sentido relevante, muito embora nenhum meio artificial tenha sido usado, uma vez que esses actos também implicam a frustração activa dos fins reprodutivos do sexo.

Os actos masturbatórios, por sua vez, frustram os fins naturais do sexo, a dois níveis: a nível reprodutivo, pois o fim natural do processo fisiológico, que vai do desejo sexual à ejaculação, não é apenas extrair sémen do órgão sexual masculino, mas sobretudo introduzi-lo na vagina; e a nível unitivo, porque psicologicamente o desejo e a excitação sexual são também orientados para o outro. A excitação sexual no homem é orientada para a mulher e na mulher é orientada para o homem, tanto a nível fisiológico como psicológico. A realização dos fins naturais das faculdades sexuais, nos seres humanos, requer uma ligação tanto física como emocional com outra pessoa. A masturbação implica voltar para si mesmo todo um processo natural que deveria ser orientado para o outro pervertendo assim a prossecução dos seus fins naturais .

Os actos homossexuais e o bestialismo, por maioria de razão, também frustram os fins naturais do sexo a dois níveis: ambos frustram o fim reprodutivo, uma vez que usam o processo fisiológico que vai do desejo sexual ao clímax, duma forma que torna a concepção, de princípio, impossível, mesmo quando as faculdades das partes envolvidas estão em perfeito estado de funcionamento; mas frustram também o fim unitivo uma vez que direccionam o processo psicológico de desejo, excitação e clímax emocional para um objecto diferente do que lhe está indicado por natureza — num caso em direcção a uma pessoa de sexo errado, no outro caso para um objecto que nem sequer é uma pessoa.

Quando conjugamos, todas estas considerações com o Princípio Fundamental da Lei Natural de S. Tomás de Aquino — a razão prática tem por fim natural a prossecução do bem e rejeição do que possa impedir a realização do mesmo — estamos em condições de formular formalmente o Argumento da Faculdade Pervertida aplicado ao uso das nossas faculdades sexuais:

1.  Quando uma faculdade F existe inerentemente num agente A, e existe nele para a prossecução de um fim E (existe em A precisamente para que A possa realizar E), então é metafisicamente impossível ser bom para A usar F de forma a contrariar a realização de E.

2.  As faculdades sexuais dos seres humanos existem para a prossecução dos fins reprodutivos e unitivos e existem nos seres humanos precisamente para que possam realizar esses fins.

3.  Logo, é metafisicamente impossível ser bom para os seres humanos, o uso dessas faculdades de forma a contrariar os seus fins reprodutivos e unitivos.

4.  Os actos contraceptivos, masturbatórios, homossexuais e de bestialismo implicam o uso das faculdades sexuais humanas de forma a contrariar os seus fins reprodutivos e unitivos.

5.  Logo, é metafisicamente impossível ser bom para um ser humano, praticar actos contraceptivos, masturbatórios, homossexuais ou de bestialismo.

6.  Só é racional, um ser humano, praticar actos que de alguma forma, para ele sejam bons, e nunca é racional praticar actos que frustrem a realização do que para ele é bom.

6. Logo, não é racional, para um ser humano, praticar actos contraceptivos, masturbatórios, homossexuais e de bestialismo

 

 

 

 

 

 

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