A Morte do Pensamento

Ora, este, é o tipo de pensamento que põe fim ao pensamento. E, é o único pensamento a que é  necessário pôr absolutamente fim. Esse é o mal definitivo a que sempre se opôs a autoridade religiosa, um mal que sempre se manifesta no termo de  épocas decadentes como a nossa.

G. K. Cherterton, Ortodoxia

 

A afirmação de que a geometria é empírica surgiu de homens diferenciados com os quais tive o azar de discutir filosofia. A geometria não foi o tema principal da conversa, foi apenas um exemplo de algo que todos concordámos ser um conhecimento real, um facto e não uma mera opinião. Mas, por tal razão, todos eles estavam convencidos de que a geometria é uma ciência empírica.

O mistério é o seguinte, qual a razão que os levou a proferirem semelhante afirmação.

Dizer que a geometria é empírica é uma afirmação absurda, que se pode  fácil e inequivocamente demonstrar ser falsa. Não é uma daquelas questões sobre as quais haja um argumento sincero de ambos os lados que valha a pena ponderar. A única forma de manter essa afirmação é nunca definir os seus termos, ou seja, não a discutir claramente ou mesmo nunca a chegar a discutir.

Não um, ou dois, mas todos estes diferenciados deterministas  com quem falei, estavam convencidos de que a geometria é empírica e, portanto, um ramo das ciências naturais, como a física ou a química.

Eram homens que claramente sabiam algo sobre ciência e matemática, e deveriam portanto saber a diferença entre as duas: e no entanto todos eles afirmaram algo que os homens das suas áreas deveriam ter sido treinados não só para saber mas também para conseguirem demonstrar ser falso. Então, porque disseram eles algo tão claramente contrário à sua área de conhecimento? Foi como encontrar um Doutorado em ornitologia que não soubesse distinguir as aves dos peixes.

 O mistério, portanto, é este:

Como é possível que os homens instruídos (1) acreditem em algo que facilmente se pode provar ser falso, (2) que contradiz abertamente a metodologia que é absolutamente fundamental para o seu campo de trabalho, (3) e que, no entanto, não têm a mínima consciência dessa contradição?

Nenhum destes sujeitos diferenciados, que me recorde, afirmou que todo o conhecimento é empírico, mas, se o tivesse feito, pelo menos faria uma espécie de sentido que um materialista radical fosse também um empírico radical.

O materialismo radical, também chamado Fisicalismo, sustenta que nenhuma substância, além das substâncias materiais, existe ou pode existir; tudo o que parece ser não-físico pode ser reduzido a um fenómeno físico. E, o empirismo radical sustenta que nenhum conhecimento para além do conhecimento empírico existe ou pode existir; tudo o que parece ser conhecimento não empírico é ou indução de exemplos empíricos, ou mera opinião arbitrária.

Se algum deles tivesse sido capaz de argumentar em defesa da sua posição (nenhum o fez) teria argumentado algo do género: (1) Todas as coisas são apenas matéria. (2) A observação empírica é o único meio de reunir conhecimentos sobre a matéria. (3) Portanto, a observação empírica é o único meio de recolher conhecimento sobre qualquer coisa; logo, todo o conhecimento é empírico. (4) A geometria é um ramo do conhecimento. (5) Como todo o conhecimento, o conhecimento geométrico é obtido unicamente por observação empírica: por conseguinte, a geometria é empírica.

Este argumento é válido, ou melhor, é formalmente válido. Isto significa que, se as premissas e as definições forem verdadeiras, então a conclusão deve ser verdadeira.

 Mas existem dois pontos que levantam algumas suspeitas:

Primeiro, o silogismo contradiz-se a si próprio ao considerar que todas as coisas conhecidas como verdadeiras, são conhecidas por meios empíricos, ou seja, com base numa observação. Porque a afirmação (3) "todo o conhecimento é empírico" não pode ser baseada na observação, a menos que um observador omnisciente tenha podido observar todas as coisas do universo e reunido todo o conhecimento sobre elas, e visto - não deduzido, mas visto - que todo o conhecimento é empírico.

Mas o empirismo, por definição, está limitado ao que podemos observar.

O silogismo acima, tem axiomas tanto universais como incondicionais e, portanto, tem conclusões universais e incondicionais, coisas que a observação empírica, por definição, não pode confirmar.

Se a afirmação "todo o conhecimento é empírico" fosse verdadeira, então a afirmação "não é possível conhecer nenhum universal" também deveria ser verdadeira, uma vez que nenhum conhecimento empírico pode confirmar uma afirmação universal.

Mas se a afirmação ""não é possível conhecer nenhum universal" for verdade, e se eu souber que é verdade, então conheço um universal, caso em que aquela afirmação é falsa. O que é uma contradição nos seus próprios termos.

E, é evidente que a geometria, que consiste em planos com volume zero, linhas de espessura zero, e pontos de tamanho zero, não consiste em nada mais do que objectos que nunca poderiam ser vistos pelo olho. Os fotões que iriam impressionar a nossa retina não podem sair, de um ponto imaginário sem extensão, sem localização, e sem duração.

Nem poderiam existir coisas de duas, uma, ou nenhuma dimensão no universo material, nem coisas que não ocupem nenhuma extensão e não tenham nenhuma localização, nem coisas que sejam intemporais, infinitas, eternas, e incapazes de mudar ou decair. Mas os pontos, as linhas, as figuras e os sólidos da geometria são precisamente esse género de coisas.

 O método empírico é baseado na observação; e a observação não pode de modo algum estudar algo que nada apresenta, directa ou indirectamente, aos sentidos.

Uma vez que por definição não podemos ver o ponto matemático infinitesimal e indivisível, a linha matematicamente recta e infinita e o triângulo matematicamente perfeito, então como poderíamos saber se alguma alegada representação deles é exacta? E, se soubermos que são exactas, será este conhecimento baseado na observação? Em caso afirmativo, observação de quê?

Euclides, nas suas provas, não faz qualquer menção à distância dos seus segmentos de linha, nem ao tamanho dos ângulos opostos ao ângulo recto. Quaisquer que sejam esses valores, o argumento é o mesmo e a conclusão vem a ser a mesma. Por conseguinte, a sua prova é necessariamente verdadeira - universalmente, absolutamente, para todo o sempre, em todo o lado e em qualquer universo possível.

Uma prova empírica do teorema de Pitágoras só seria verdadeira na condição de que todas as observações o confirmassem verdadeiro aqui na Terra, durante o período coberto pelos registos históricos, mas sem garantias particulares de que seria verdadeiro amanhã, ou em Marte, ou para triângulos demasiado pequenos para poderem ser vistos ou demasiado grandes para medir.

O conhecimento empírico é sempre provisório, nunca universal e nunca absoluto. As conclusões empíricas são aceites como dadas apenas até que uma observação contradiga uma delas. Quando, por exemplo, a mecânica newtoniana prevê incorrectamente a precessão de Mercúrio, ou prevê erroneamente o comportamento da luz em movimento através do éter luminífero, ou não prevê a curvatura da luz vista em redor do Sol durante um eclipse, toda a mecânica newtoniana é revista e destronada, e considerada aplicável apenas a casos limitados, como aproximativa.

 A mecânica newtoniana continua certamente a ser válida, mas apenas para casos macroscópicos, em distâncias não-astronómicas, perto da superfície da Terra, onde os incrementos de tempo são arredondados ao segundo mais próximo, e tudo isto para objectos que não se movem perto da velocidade da luz.

Isto porque os axiomas empíricos não são aceites de forma intuitiva ou lógica ou metafísica, mas sim provisoriamente. São declarações de “se-então”.

Quando a observação as contradiz, as leis são consideradas limitadas a certos casos, e não se aplicam a outros casos, para os quais se procura então uma lei mais geral.

O método científico, que os cientista altamente instruídos e acreditados com quem tive a infelicidade de argumentar não pareciam saber, é, resumidamente, o seguinte: imagina-se uma hipótese destinada a explicar um grande número de casos de matéria em movimento, todos pertencentes a uma mesma categoria. Movimento aqui significa qualquer forma de mudança física. A explicação terá de evitar qualquer menção a Causas Finais: apenas as Causas Eficientes são consideradas. As formas do movimento e onde ele pode ocorrer, são reduzidas a uma fórmula, equação, relação, ou a um simples conjunto de regras.

Estas regras são chamadas de “modelo”. Se o modelo for deselegante, ou seja, se multiplica desnecessariamente as entidades, é excluído a favor de um modelo menos deselegante. Se o modelo não for robusto, ou seja, só abranger certos casos e não outros, é excluído a favor de um modelo mais robusto.

Assim, a ciência empírica está limitada a casos precisamente como estes: modelos teóricos que fazem previsões falsificáveis (susceptíveis de virem a ser provadas falsas) mas que ainda não foram provadas como erradas, e tais modelos embora não sendo criados ad hoc, fazem assumpções mínimas (elegantes), e aplicam-se ao maior número de casos possíveis (robustos).

 Uma previsão falsificável é aquela que alguma impressão sensorial possível ou imaginável pode vir a provar estar errada.

Mas se eu previr que um quadrado construído sobre a hipotenusa de um triângulo recto abraçará uma superfície igual à soma das áreas dos quadrados construídos nos dois lados restantes, isso não é de todo uma previsão, uma vez que não se trata sequer de um acontecimento ocorrido a qualquer momento no tempo nem em qualquer lugar no espaço. Aqui, não há nada para se observar. Não há nada para prever porque estou a fazer uma afirmação sobre uma entidade que existe num aspecto da realidade intemporal e conceptual que os sentidos não podem alcançar.

Da mesma forma, se eu predisser que qualquer asserção que afirme e negue o seu predicado ao mesmo tempo e da mesma forma, não é verdadeira, ou que as partes são menores que o todo, isto, mais uma vez, não são previsões; são leis universais sobre as relações puramente formais entre sinal e significado, as quais existem num aspecto da realidade intemporal e conceptual que os sentidos não podem alcançar.

O conhecimento que é evidente por si mesmo (ou seja, o simples conhecimento do significado dos termos é suficiente para afirmar a certeza) é chamado intuitivo. É lamentável que a mesma palavra seja utilizada para se referir palpites e sentimentos fortes, mas esse é o termo correcto.

Por exemplo, quando Euclides oferece a noção comum de que duas coisas iguais a uma terceira coisa são necessariamente iguais uma à outra, isto é intuitivo. Não é necessária qualquer prova adicional, uma vez que nenhuma outra possibilidade é logicamente coerente. Do mesmo modo, quando se afirma que todos os ângulos rectos são iguais, isso é intuitivo. E temos a certeza de que é verdadeiro independentemente de o irmos verificar empiricamente (o que aliás, era impossível).

  O conhecimento intuitivo não é empírico, uma vez que diz respeito a coisas que não podem ser de outra forma.

As deduções feitas a partir de axiomas intuitivos também não podem ser empíricas, uma vez que devem ser necessariamente assim, ou seja, verdades universais não limitadas a quaisquer casos particulares.

As coisas que são verdadeiras e conhecidas como verdadeiras porque devem ser verdadeiras em todas as circunstâncias, ou seja, universalmente, são chamadas racionais. Mais uma vez, é lamentável que esta palavra tenha outros significados, mas esse é o termo técnico em epistemologia. O racionalismo, pois, só diz respeito a universais não empíricos.

As coisas que são conhecidas como verdadeiras porque se encaixam num modelo elegante mas robusto de matéria em movimento, e as previsões deste modelo sendo ambos falsificáveis, mas não tendo sido ainda provadas falsas, são chamadas empíricas. Os modelos empíricos apenas dizem respeito a particulares não racionais.

Não adianta usar a palavra empírico para mais nada: não é isso que ela significa.

Geometria é o estudo de objectos matemáticos abstractos, tais como pontos, linhas e planos, que não existem nem podem existir no mundo apreendido pela observação, nem podem ter uma relação observável, ou seja, uma relação materialmente mensurável com objectos parecidos (v.g. varas ou bolas de bilhar).

A geometria é uma ciência racionalista no sentido de ser constituída por deduções feitas a partir de axiomas intuídos, universais e não observáveis.

 A física é uma ciência empírica no sentido de ser constituída por modelos elegantes e robustos falsificáveis de matéria observável em movimento.

 O que é racionalista é não-empírico; o que é empírico é não-racionalista. O que é observável não é não-observável. O que é não-observável não é observável. O que é falsificável não é não-falsificável. O que é não-falsificável não é falsificável.

A geometria não faz previsões e não está sujeita a observações. A geometria não é nem pode ser chamada de empírica pelas próprias definições dos termos.

Ora, isto é óbvio e, em tempos, foi conhecido por todos os homens instruídos. Como é que os homens instruídos de hoje não o sabem?

Argumentos semelhantes podem ser feitos para mostrar porque é que a matemática ou a lógica formal não podem ser reduzidas ao empirismo; já para não falar da Metafísica, da Ontologia, da Epistemologia, da Ética, do Direito, da Estética, ou, se me permitem a ousadia de nomear o nome proibido e esquecido, da Teologia - todas elas operando a partir de racionais.

Porque é que Professores em ciência, pessoas alegadamente competentes e conhecedoras da matéria, cometem um erro tão crasso sobre ciência e os seus métodos e confundiram conhecimentos empíricos com conhecimentos não empíricos (racionalistas)? Não é um erro que se deveria esperar de alguém versado na matéria, tal como não se esperaria que um ornitólogo chamasse pinguim a um peixe.

Podemos rejeitar a ideia de que se trata de um erro inocente, devido apenas a ignorância, porque cientistas deveriam ter de conhecer o método científico.

 Talvez haja a possibilidade de que os respectivos professores, quem quer que fossem, estivessem sinceramente convencidos, por qualquer razão, de que as distinções tradicionais e lógicas entre empírico e não-empírico não colhem. Talvez haja um argumento filosófico honesto, baseado em Hume ou nos escritos dos positivistas lógicos, que dê uma prova qualquer que esses professores tenham considerado convincente para apoiar o seu empirismo radical.

Mas se assim fosse, um professor competente, em tal caso, ensinaria ambos os lados do argumento, para que um estudante estivesse pelo menos ciente de que havia uma segunda opinião sobre o assunto, ou modelos anteriores que houvessem sido refutados.

Quando um professor esconde a existência de modelos, argumentos e opiniões contrárias, não está de modo algum a tentar ensinar os seus alunos a compreender um dada área de conhecimento, mas está apenas a fazê-los recitar, sem compreenderem, pontos de um dogma considerado por ele acima de qualquer discussão.

Se os professores estavam a tentar doutrinar os seus alunos em vez de os educar, isto explica porque os referidos cientistas não estavam sequer conscientes da existência duma opinião contrária.

Explica porque nenhum deles podia oferecer uma explicação, e muito menos um argumento lógico, para apoiar as suas ideias. Explica, como a educação que receberam, dificultou, em vez de ajudar, a sua capacidade de pensar claramente sobre o tema: foram treinados para não pensar nele.

Isto parece sugerir algo deliberado, e mesmo conspiratório: um desejo de não educar, mas de doutrinar.

Ora, vejamos.

O materialismo radical não é uma postura filosófica sincera, mas um dogma de culto; algo em que se acredita por um esforço de vontade, e não porque haja ou possa haver qualquer prova ou argumento para mostrar que tal posição deve ser ou pode ser verdadeira. É algo que passa por doutrinação, de uma mente, não-curiosa, não-inquisitiva, indiferente e incapaz de levantar objecções, para outra do mesmo jaez.

Uma das muitas falhas do materialismo radical é esta: se o materialismo radical fosse verdadeiro, o empirismo radical também teria de ser verdadeiro, com base no argumento de que se nada é real a não ser a matéria, nenhum conhecimento é real excepto o conhecimento sobre a matéria, e os factos sobre a matéria só podem ser conhecidos pelo empirismo. Mas o materialismo radical é uma teoria metafísica universal, e portanto não pode ser conhecido empiricamente, o que significa que não pode ser conhecido de todo. Portanto, se o materialismo radical fosse verdadeiro, era falso.

Logo, é uma doutrina que se refuta a si própria, algo que, a mera afirmação inequívoca dos termos, revela ser falso. Não é necessário mais nenhum argumento; mais nenhuma  testemunha precisa de ser chamada.

As razões pelas quais os professores não ensinam e os estudantes não aprendem nada sobre estas noções básicas sobre ciência deve-se a crenças dogmáticas, mas ilógicas, as quais não resistiriam ao menor escrutínio.

Tais crenças constituem uma verdadeira idolatria da ciência, entorpecem a curiosidade, encorajam uma arrogância refractária a qualquer argumentação ou facto e inspiram uma estreiteza de espírito agressiva. 

Só florescem em eras sombrias, quando a luz da razão obscureceu ou se extinguiu. 

São crenças que afirmam sobre a ciência coisas que se destinam a agigantá-la, a dar-lhe um estatuto que não é o seu, a conferir-lhe um prestígio que não merce, com o objectivo de a erigir em substituto da Religião.

A partir dum texto de John C. Wright

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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