A Ilusão Corpórea

O que separa, a humanidade normal, dos abortistas, gayzistas, globalistas, marxistas, liberais materialistas e outras criaturas afectadas pela mentalidade revolucionária não é uma questão de opinião ou crença: é uma diferença mais profunda, de ordem imaginativa e afectiva.

Já Aristóteles ensinava – e a experiência de vinte e quatro séculos não cessa de o confirmar – que a inteligência humana não forma os conceitos directamente a partir dos objectos da percepção sensível, mas a partir de formas conservadas na memória e alteradas pela imaginação.

 Isto quer dizer que aquilo que saia dos limites do respectivo imaginário será, para um ser humano, perfeitamente inexistente.

O imaginário, por sua vez, não reflecte somente as disposições do indivíduo, mas os esquemas linguísticos e simbólicos transmitidos pela cultura. A cultura tem o poder de moldar o imaginário individual, ampliando-o ou circunscrevendo-o, tornando-o mais luminoso ou mais opaco.

O imaginário da espécie humana quase inteira, ao longo dos milénios, foi formado por influências culturais que o convidavam a conceber o universo físico como uma parte, apenas, da realidade total. Para além do círculo da experiência imediata, existia uma variedade de outras dimensões possíveis, ocupando o território incomensurável entre o infinito e o finito, a eternidade e o instante que passa.

A partir do momento em que o universo cultural passou a girar à volta da tecnologia e das ciências naturais, com a exclusão concomitante de outras perspectivas possíveis, era inevitável que o imaginário das multidões se fosse limitando, cada vez mais, aos elementos que pudessem ser expressos em termos da acção tecnológica e dos conhecimentos científicos disponíveis. Gradativamente, tudo o que escapasse desses dois parâmetros foi perdendo força simbolizante e acabou por ser reduzido à condição de “produto cultural” ou “crença”, sem mais nenhum poder de preensão sobre a realidade.

 

O empobrecimento do imaginário foi ainda agravado pela crescente devoção pública ao poder da ciência e da tecnologia, depositárias de todas as esperanças e detentoras, por isso mesmo, de toda autoridade. Isso não quer dizer que as dimensões supra materiais tenham desaparecido de todo, mas elas só ficaram acessíveis ao imaginário popular quando traduzidas em termos de simbologia tecnológica e científica. Daí a moda da ficção científica, dos extraterrestres e dos deuses astronautas. Mas é claro que essa tradução não é uma verdadeira abertura para as dimensões espirituais, e sim apenas a sua redução caricatural à linguagem do imediato e do banal.

Uma das consequências de tudo isto é que o corpo, milenarmente compreendido como um aspecto entre outros da estrutura da individualidade, passou a ser não apenas o seu centro, mas o limite último das suas possibilidades.

Aquelas potências do ser humano que só aparecem quando ele é confrontado com a dimensão da infinitude e da eternidade tornaram-se absolutamente inacessíveis e passaram a ser explicadas como “crenças culturais” de épocas extintas, com a conotação de atraso e barbarismo.

Daí, também, que as mais hediondas realizações da sociedade tecnológica, como a guerra total e o genocídio, tivessem de ser explicadas, de maneira invertida e totalmente irracional, como resíduos de épocas incivilizadas em vez de aquilo que efectivamente são: criações originais e típicas da nova cultura.

O “formador de opinião” dos dias que correm é incapaz de perceber a diferença específica entre o totalitarismo moderno e as formas incomensuravelmente mais brandas de tirania e opressão conhecidas na antiguidade e na Idade Média. Para ele, o Gulag e Auschwitz são a mesma coisa que a Inquisição. Quando lhe demonstramos que as formas extremas de controlo totalitário da conduta individual eram perfeitamente desconhecidas, em toda parte, antes do século XIX, ele sente aquele mal-estar de quem vê o chão abrir-se sob os pés. Então muda de conversa imediatamente ou amaldiçoa-nos como fanáticos fundamentalistas.

O apego cognitivo ao corpo, que já as velhas doutrinas hindus ensinavam ser a base de toda ilusão e de todo erro, tornou-se obrigatório ao ponto das pessoas consideram seus corpos como sua “propriedade”, sobre a qual têm todos os direitos.

Em vão lhes mostramos que a propriedade material tem como pressuposto a existência física do proprietário; que o corpo, portanto, não pode ser uma propriedade porque é a condição prévia para a existência da propriedade. Mais ainda, o corpo só poderia ser entendido como propriedade caso se admitisse a existência do proprietário para além e para fora dele. Chamar ao corpo “propriedade” (e mesmo assim não jurídica, mas apenas lógica) faz sentido na perspectiva hindu ou cristã, para as quais a existência da individualidade transcende a do corpo – mas não faz sentido nenhum para a própria perspectiva materialista que, paradoxalmente, a toma como dogma inabalável.

Se alguém acredita que o corpo é tudo, então ele não pode ser sua propriedade: ele é a sua substância; ele é a própria pessoa.

A loucura é levada ao extremo no caso das abortistas, que acreditam que tudo o que está dentro do seu corpo lhes pertence, como se o feto, por sua vez, nada tivesse dentro do seu próprio corpo e não fosse por sua vez, nessa lógica, também proprietário de si mesmo.

O tremendo potencial de acção desencadeado pelo advento da tecnologia e das ciências naturais modernas no campo da corporalidade, legitimou a tal ponto a ilusão do corpo como centro e limite último da individualidade, que a própria noção de continuidade biográfica dos indivíduos acaba por se tornar dificilmente concebível excepto como “estrutura narrativa” totalmente artificial e sem conexão com a realidade. Giordano Bruno já o tinha previsto: neguem a dimensão espiritual, dizia ele, e acabarão por se negar a si mesmos.

 O fenómeno, que despontou na literatura de ficção no começo do século XX, é hoje bastante visível na prática da historiografia. Para o historiador antigo, usar recursos narrativos de romance ou teatro num livro de História provava apenas que o real se apreende como aspecto do possível, coisa que Aristóteles já explicava na “Poética”; mas para os historiadores “pós-modernos”, prova que a realidade não existe, que tudo é ficção e “imposição de narrativas” (curiosamente, e não obstante, na política de hoje espera-se que essa mesma imposição de narrativas tenha efeitos reais).

Juntamente com a continuidade biográfica, desaparece o senso da responsabilidade individual por qualquer acção que o indivíduo, decorridos alguns anos, já não “sinta” corporalmente como sua.

 A redução do campo da experiência humana às dimensões manipuláveis pela ciência e pela tecnologia é totalmente incompatível com a estrutura da realidade, onde a existência do infinito, da eternidade e do incognoscível não é, de maneira alguma, uma situação provisória que o “avanço da ciência” possa vir a superar amanhã ou depois, mas um dado positivo permanente, que uma vez suprimido só pode resultar em deformações psicóticas e infantilismos grotescos, como o de tomar a mera esperança de provas científicas futuras como prova actualmente válida e incontestável.

Mas o cúmulo do puerilismo epidémico dos intelectuais materialistas chega quando Richard Dawkins, rejeitando como bárbaras as doutrinas tradicionais das religiões – e com elas, toda a tradição filosófica de Sócrates a Leibniz – explica a origem da vida como sendo o resultado duma possível intervenção de… deuses astronautas (não perca o seu patético depoimento no filme de Ben Stein, “Expelled: No Intelligence Allowed”, v. http://www.expelledthemovie.com).

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