QUEM A TEM CHAMA-LHE SUA
A televisão americana submete continuamente o
espectador à mais intensa propaganda política de que há memória no Ocidente
democrático. Desde séries policiais a sticoms,
desde concursos a programas de “variedades”, desde o noticiário ao boletim
meteorológico, literalmente tudo o que se vê, incluindo os anúncios, tem por
fim demonstrar e glorificar a grandeza dos Estados Unidos, o seu Destino
Manifesto de corrigir o mundo, a incomparável perfeição das suas instituições,
a excelência do homus americanus…
O universo da televisão americana é, em sentido
próprio, um universo totalitário. Nada fica fora da ortodoxia política e nada a
contradiz. Ao fim de três ou quatro semanas um europeu saudável está
absolutamente arrasado, sem resto de bom senso ou sanidade, pronto a engolir as
mais torpes idiotias sobre os mais prosaicos assuntos. A cabeça deixa de
funcionar ou começa a funcionar como lhe mandam, muito orgulhosa de ser tão
americana e ter tanta razão.
Para o português médio, adjectivo “totalitário” pede obrigatoriamente
o substantivo “comunista”. Os Estados Unidos “totalitários”? Então não há
democracia? Não há liberdade? Há democracia e há liberdade que consiste em
concordar com a maioria e obedecer-lhe. Existem, por exemplo, dois partidos e
debates políticos nas três cadeias nacionais. Só que a latitude de opinião
nesses partidos e nesses debates não excede, digamos, a permitida no actual Diário de Notícias. Discutem-se questões
de pessoas, de oportunidade e os meios de certas políticas, tácticas eleitorais
e outras irrelevâncias. Nunca se discute coisa alguma que possa remotamente pôr
em causa a ortodoxia estabelecida. Discute-se a Nicarágua e o Panamá…. Mas não se discute o direito de
interferência dos Estados Unidos na América Central e nem ao de leve se aflora
a possibilidade dos americanos serem odiados na região, como é aliás patente. ….
Tal como o comunismo soviético decreta a
felicidade dos trabalhadores, a democracia americana
decreta a virtude do seu imperialismo externo e a justiça da sua sociedade
doméstica. Quem pensa o contrário põe-se automaticamente à margem. É um traidor
ou, pelo menos, um pária.
Não há aqui exagero. Quase ninguém resiste à
pressão ideológica e nem a própria evidência demove os nativos das absurdas
convicções que lhe foram incutidas.
Um estrangeiro que desça à rua em Washington e
veja milhares de mendigos a dormir e a pedir esmola pelas ruas talvez duvide da
proverbial maldade do socialismo. Os americanos não vêem nada, ou vêem apenas
que os mendigos são porcos e perigosos. …
Os Estados Unidos e os americanos provocam a quem
vem de fora um sentimento de irrealidade. A “realidade” do universo totalitário
só é sensível a quem está dentro. …. Por ínvios caminhos, a maioria oprime a
minoria sem qualquer ofensa aos direitos do homem e em perfeita paz de consciência.
Basta, por exemplo, constatar a
equanimidade com que os políticos lamentam o facto insólito da política
económica liberal ter criado uma “subclasse urbana”(sic) muito abaixo da “linha
da miséria”(sic). Essas sobras da
sociedade incomodam-nos, sem os comover.
...
Nenhum aristocrata esclarecido do século XVIII ou do século XIX ignorava um facto trivial que hoje infelizmente se desaprendeu, a saber: que o pior inimigo da liberdade é a democracia…. Tocqueville, por exemplo, fartou-se de prevenir que ela era necessariamente medíocre e grosseira e destruía a independência individual, com mais eficácia do que qualquer outro tirano. Quando se aceita a regra de que o povo, ou seja, a maioria nunca se engana …, resistir à opinião maioritária equivale na prática a resistir à razão.
As ideias de justiça ou de liberdade podem prevalecer (e têm
prevalecido) com relativa facilidade contra a força bruta. Mas raramente contra
uma maioria democrática fora da qual, nas nossas sociedades cépticas e seculares, não há em princípio referências
absolutas, derivadas dos mandamentos de Deus, da natureza do homem ou do
sentido da história.
O homem democrático está indefeso. Em todo o
ocidente é coagido à conformidade. … É o “consenso”. Igual ao excelente “consenso”
americano.
Vasco Pulido Valente (1990)
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