TALVEZ A MELHOR CENA DE AMOR ERÓTICO DA HISTÓRIA DA LITERATURA

 

Não tens, por acaso, um lápis?

Fora invadido por uma palidez mortal. Os nervos e vasos que controlavam o seu rosto, funcionavam de tal maneira que a pele exangue se franziu fazendo que o nariz parecesse pontiagudo e a parte situada sob os olhos adquirisse uma cadavérica cor de chumbo. O nervo simpático fazia o coração de Hans Castorp martelar num ritmo tão acelerado que já não se podia falar numa respiração regular, e calafrios percorriam o jovem,

A mulher contemplou-o de alto a baixo com um sorriso que não traía qualquer piedade ou inquietação perante esse rosto devastado. Este sexo não conhece nem tal piedade nem tal preocupação diante dos terrores da paixão, esse elemento que, evidentemente, lhe é muito mais familiar do que ao homem, no qual, este, por natureza, não se encontra à vontade. A mulher nunca o constata no homem sem uma satisfação maliciosa e maligna. Mas, ele não se importava por não produzir piedade nem inquietação.

Eu? – respondeu a mulher dos braços nus, ao tratamento por tu. – Sim, talvez tenha. E, apesar de tudo, havia no seu sorriso e na sua voz um pouco dessa emoção que se produz quando depois de prolongadas relações mudas, é proferida a primeira palavra – uma emoção maliciosa que secretamente faz entrar todo o passado no instante presente.

- És muito ambicioso… Tens muito zelo – começou ela a zombar na sua pronúncia exótica, com o “r” estrangeiro e o “e” demasiado aberto, enquanto a sua voz, levemente velada, agradavelmente rouca, acentuava a segunda sílaba da palavra “ambicioso” o que a fazia parecer completamente exótica; e remexeu a bolsinha de couro, procurando o objecto com os olhos e tirou debaixo de um lenço, uma minúscula lapiseira de prata, frágil e delgada, um pequeno artigo de fantasia, inútil para qualquer trabalho.

- Ei-lo – disse ela, e colocou a pequena lapiseira diante dos olhos de Hans Castorp, segurando-o pela ponta, balouçando-a ligeiramente entre o polegar e o indicador.

Como ela lha oferecesse e a negasse ao mesmo tempo, ele fez menção de agarrá-la, quer dizer, elevou a mão à altura do objecto, com os dedos prontos para o apanhar, mas sem o agarrar completamente. Do fundo das órbitas de chumbo, o seu olhar fixava-se alternadamente na lapiseira e no rosto de Clawdia. Os seus lábios exangues estavam abertos e permaneceram assim sem que ele deles se servisse para falar, quando disse:

- Vês? Eu sabia que tinhas um lápis.

- Toma cuidado, é um pouco frágil – disse ela. – É de rodar, sabes?

E enquanto as duas cabeças se curvavam, ela explicou-lhe, sem pressa, o mecanismo, absolutamente banal, da lapiseira.

Permaneciam inclinados um para o outro.

- Trazes um vestido novo – disse Hans Castorp, para ter direito a olhá-la; e ouviu-a responder:

- Um vestido novo? Estás a par das minhas “toilettes”?

- Não tenho razão?

- Tens. Mandei-o fazer recentemente. Agrada-te?

- Muito – respondeu ele, envolvendo-a mais uma vez no seu olhar, antes de baixar os olhos. – “Queres dançar?” – acrescentou,

- E tu, gostarias? – perguntou ela, com as sobrancelhas levantadas, sorrindo; e Hans Castorp respondeu:

- Gostaria muito, se tu tivesses vontade.

- És menos ousado do que eu pensava – disse ela. – Vamos ver, primeiro, como dançam os outros.

- Sim, é o que vamos fazer – concordou ele, e pôs-se a ver, sentado junto dela, com o rosto pálido, e os olhos azuis que tinham a expressão pensativa do avô. “É o que vamos fazer” – repetiu maquinalmente. Falava baixinho e o piano cobria-lhe a voz. – Vamos ficar aqui sentados e olhar como num sonho. Para mim, isto é um sonho, sabes? Estarmos sentados assim – num sonho singularmente profundo, porque é preciso dormir muito profundamente para sonhar assim… quero dizer: é um sonho que me é familiar, desde sempre sonhado, longo, eterno;… sim, estar como agora, sentado a teu lado, eis a eternidade.

- Poeta! – disse ela. Linda frase. Diz-me, no entanto … Não podias ter sonhado esse sonho mais cedo; o cavalheiro resolveu-se a dirigir a palavras a esta sua humilde serva, um pouco tarde.

- Falar, pobre tarefa! Na eternidade ninguém fala.

- Sim senhor, vê-se que te sentes, perfeitamente à vontade na eternidade, conhece-la a fundo, não há sombra de dúvida.

E depois – disse Hans Castorp – se te tivesse falado há mais tempo ter-me-ia sido preciso tratar-te por ”você”.

Bem, e é intenção tua, agora, tratar-me por tu para sempre?

Claro que sim. Sempre te tratei por tu e tratar-te-ei por tu eternamente.

Mas, convenhamos, é um pouco forte. Em todo o caso não terás ocasião de me tratares por tu por muito tempo. Vou partir.

A palavra demorou algum tempo a penetrar-lhe a consciência. Em seguida, sobressaltou-se, lançou em redor de si um olhar confuso, como faz quem é despertado de repente.

- Que vais fazer? – perguntou Hans Castorp, consternado.

- Vou partir – repetiu ela, sorrindo da sua estupefacção, como se estivesse surpreendida.

- Não é possível – disse ele. – estás a brincar.

- De modo nenhum. Estou a falar absolutamente a sério. Vou partir.

- Quando?

- Mas, amanhã. Depois do jantar.

Um vasto cataclismo produziu-se nele.

- Seja… Mas, deixa-me sonhar ainda um pouco depois de ter sido tão cruelmente acordado por este sinal de alarme da tua partida. Sete meses debaixo dos teus olhos… E agora quando na realidade travei conhecimento contigo, falas-me «em partida!

- Repito que poderíamos ter falado mais cedo.

 - Já to disse. Não queria tratar-te por “você”.

- Farsante.

Ele permaneceu calado. Estava ainda sentado como no início, com os pés cruzados muito para trás, sob o assento que rangia, inclinado para a frente em direcção à mulher reclinada, tendo entre os dedos a lapiseira que lhe pertencia a ela; e com os olhos azuis do avô, o jovem fitava a sala que estava, agora, vazia.

- Foi-se toda a gente – disse Clawdia Cauchat. Eram os últimos; faz-se tarde. A festa de carnaval acabou. Sabe quais são as consequências, senhor?

Mas, Hans Castorp objectou, de olhos fechados, sem, de resto, mudar a sua posição: - Nunca Clawdia. Nunca te tratarei por “você”, nunca, nem na vida nem na morte, se é que se pode dizer assim; deveria poder-se. A febre do meu corpo e o palpitar do meu coração fatigado, e os calafrios dos meus membros são o contrário de um incidente porque não são mais – e o seu rosto pálido, com os lábios trémulos, inclinou-se ainda mais para o rosto da mulher – não são mais do que o meu amor por ti; sim este amor que me assaltou no instante em que os meus olhos te viram, ou antes, em que te reconheci, quando te revi…

- Que loucura!

- Oh, o amor nada é, se não é loucura, uma coisa insensata, proibida, uma aventura no mal. De outro modo, mais não seria que uma banalidade agradável. Mas quanto ao que em ti revi, quando reconheci o amor que por ti sinto – sim, é verdade, já te conheci há muito tempo, a ti e aos teus olhos maravilhosamente oblíquos, e à tua boca, e à tua voz com que falas – e já uma vez te pedi um lápis, para, enfim, poder travar relações sociais contigo, porque te amava irracionalmente, e é disso, sem dúvida, é desse meu antigo amor por ti que me restam estas marcas no meu corpo que indicam que eu também estava doente outrora…

Os seus dentes bateram. Enquanto divagava, retirou um pé de sob o assento rangente, e ao avançar este pé, tocou o chão com o outro joelho, de maneira que ajoelhava diante dela, a cabeça curvada e o corpo trémulo.

 – Amo-te, balbuciou – amei-te sempre por que és o Tu da minha vida, meu sonho, meu destino, meu eterno desejo…

- Meu, pequeno – disse ela – lindo pequeno. É verdade que me amas tanto?

Com a mão acariciou-lhe suavemente o cabelo.

E, arrebatado por este contacto, já sobre ambos os joelhos e com os olhos fechados, ele continuou a falar:

Oh, o amor, sabes … O corpo, o amor, a morte, os três são idênticos. Porque o corpo é a doença e a volúpia, é ele a causa da morte; sim, são ambos carnais, o amor e a morte, e aí reside o seu terror e o seu enorme sortilégio! Mas a morte, compreendes, se por um lado é coisa mal afamada, impúdica, que faz corar de vergonha; por outro lado, é um poder muito solene e majestoso – muito mais digno do que a vida sorridente que ganha o seu dinheiro e vai enchendo a pança – porque ela é a história e a nobreza e a piedade e o eterno e o sagrado, que nos faz tirar o chapéu e caminhar em bicos dos pés… Ora, do mesmo modo, o corpo, ele também, e o amor do corpo, são uma  coisa indecente e vergonhosa, e o corpo cora e empalidece, exteriormente, com espanto e vergonha de si mesmo; mas é também uma glória, grande e adorável, imagem miraculosa da vida orgânica, santa maravilha da forma e da beleza; e o amor por ele, pelo corpo humano, é, do mesmo modo, um interesse extremamente humanitário e um poder mais educativo que toda a pedagogia do mundo!... Oh encantadora beleza orgânica que não é composta de pintura a óleo, nem de pedra, mas de matéria viva e corruptível, cheia do segredo febril da vida e da corrupção! Olha a simetria maravilhosa do edifício humano, as espáduas e as ancas, e as costelas agrupadas aos pares, e o umbigo ao centro, na moleza do ventre, e o sexo obscuro entre as coxas! Olha o movimento das omoplatas sob a pele sedosa das costas, e a espinha que desce até à luxúria dupla e fresca das nádegas; e as grandes ramificações dos vasos e dos nervos que passam do tronco para os membros pelos sovacos, e como a estrutura dos braços corresponde à das pernas. Oh as suaves regiões da articulação interior do cotovelo e da curva da perna, com a abundância de delicadezas orgânicas, sob a sua almofada de carne. Que imensa festa acariciá-los, esses lugares deliciosos do corpo humano! Poderia morrer-se depois sem um lamento! Sim, meu Deus, deixa-me sentir o odor da pele da tua rótula, sob a qual a engenhosa cápsula articular segrega o seu óleo escorregadio! Deixa-me tocar religiosamente com a boca a Arteria Femoralis que bate no fundo da coxa e que mais abaixo se divide em duas artérias da tíbia! Deixa-me sentir a exalação dos poros e tactear o a penugem do teu buço, imagem humana de água e albumina, destinada à anatomia do túmulo, e deixa-me morrer, os meus lábios nos teus!

Não abriu os olhos depois de ter acabado de falar. Permaneceu sem se mover, estendendo as mãos que agarravam a lapiseira de prata, estremecendo e vacilando sobre os joelhos.

 Ela disse: - Com efeito, és um amante que sabe solicitar de uma maneira profunda… - Adeus meu príncipe carnaval!

Com estas palavras, resvalou da cadeira, deslizou pelo tapete, rumo à porta, sob cujo umbral hesitou, meio voltada, levantando um dos braços nus, com a mão a repousar na maçaneta. Por cima do ombro disse baixinho:

Não te esqueças de me devolver o meu lápis.

E saiu.

 

Der Zauberberg, Thomas Mann

 

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