UM DESEMBARGADOR DA REALAÇÃO DE LISBOA 

                                                                                              E A SUA

                                                                         EXCELENTÍSSIMA FAMÍLIA


O Sr.   Desembargador   Amado era de uma boa família do Norte e tivera uma   carreira singularmente fácil. Dizia-se dele: «aquele deixou-se ir e chegou».

Sustentado   pela   vasta   influência   da   parentela,   fora   com   efeito   levado, sem abalos   nem choques, numa ascensão gradual e confortável, até à sua poltrona de damasco vermelho da Relação de Lisboa. Aí se deixara cair com o peso da sua obesidade, e cruzando as mãos sobre o estômago, começara a ruminar regaladamente. Que de modo nenhum se creia que eu queira   diminuir com azedume os mérito deste varão obeso: quero somente mostrar a natureza, toda de indolência e de egoísmo, do Desembargador Amado, ocupado em se nutrir com abundância, atento exclusivamente ao jogo das suas funções, assustado se a bexiga, ou o baço, ou o fígado denunciavam alterações, sem ter coragem de se mexer do sofá durante noites inteiras, completamente desinteressado dos homens – e mesmo de Deus.

O nosso imortal José Estêvão, vendo-o um dia entrar numa recepção em casa do chorado duque de Saldanha, exclamou, designando-o com um verso conhecido de Juvenal:

– Aquele ventre que ali vem, é o Amado!

Era com efeito um ventre, que em certos dias da semana punha sonolentamente os óculos, e assinava com a mão papuda, onde os colegas lhe indicavam com o dedo; da sua ciência jurídica, nada direi,  para não envergonhar as  paredes e os  móveis deste quarto  onde escrevo; da sua honestidade, sei que a sua grande fortuna e as suas propriedades de Azeitão o tornavam indiferente às tentações do dinheiro: mas condenaria Jesus e absolveria o mau ladrão, se o peitassem com um casal de patos bem gordos ou com um salmão fresco do Rio Minho. Fazia, ao comer a sopa, um glou-glou nojento e repelente, e atirava para o soalho os escarros que merecia na face.

 Tal era esta besta obesa. O Conde detestava-o. E eu mesmo, apenas o respeito que lhe devia como sogro de S. Exª, me impediu certa noite – ainda tremo ao recordá-lo! – de lhe atirar estas mãos ao pescoço gordalhufo, e apertar-lho, aperta-lho até que lhe pendesse, inchada e negra, aquela língua onde a banalidade era mais usual que a saliva, e lhe saíssem das órbitas aqueles olhos que só tinham fixado neste mundo com algum interesse as postas de vitela de que se abarrotava.

Era uma noite que ele passara em casa do Conde. Desde o jantar, estirado numa poltrona, só denunciando  a sua  presença  por   arrotos frequentes, tinha dormido o sono  bestial do seu enfartamento senil. Eu estava justamente contando à Srª Condessa, que me escutava com interesse, uma deliciosa anedota do Sr. D. João VI que lera nessa tarde – quando ouvi, do fundo da poltrona onde dormitava o Vitellius, estas palavras, naquela voz espessa e brutal que era a repercussão sonora da sua inteligência:

– Olá, senhor secretário, veja lá em baixo se já vieram com a sege!...

Eu fiquei petrificado, com a lividez da cal. Mas a Srª Condessa que – sejam quais forem as suas culpas – tinha delicadezas tocantes, acudiu imediatamente.– Oh papá! E agitando a campainha, dirigiu-se ao João que aparecera. – Veja se já está a carruagem do papá!

Enquanto fui secretário do Conde, tratei com Fidalgos, com Ministros, com Embaixadores, com Augustos Personagens, e só recebi de S. Ex.ª – e poderia dizer de S.S. MM. e AA. – aquela benévola consideração que talvez as minhas aptidões justificassem, mas que eu recebia como preciosa recompensa da minha dedicação. Mesmo junto dos degraus do Trono, só encontrei bondade, e a  mão  que eu ia beijar  na humildade tradicional, apertava a minha  com uma simpatia que me deixava na alma impressões inesquecíveis. Só aquela obesa carcaça se arrojou a tratar-me como um lacaio!

Morreu. Morreu da bexiga.  Notou-se com admiração o fétido que lhe saiu do corpo, depois de morto, e a decomposição muito rápida das matérias serosas: isto talvez fosse a dissolução do corpo; mas o cheiro asqueroso vinha da sua alma torpe que se soltava, dando a exalação de uma latrina que se destapa. O caixão em que o levaram pesava arrobas, e quando o embalsamaram e lhe extraíram o cérebro, viram  que não  era   mais   volumoso  que o de  um   bacorinho recém-nascido. Na cavidade craniana meteram-lhe um pedaço de esponja velha, decerto mais útil e tão inteligente como o cérebro que substituía! Amortalharam-no na sua beca de cetim, –  que não cobre agora  um desembargador  mais morto e mais pútrido do que tinha coberto nos dias de sessão da Relação de Lisboa. Levaram-no ao Alto de S. João, ao passo de quatro éguas cobertas de panos negros; e as quatro éguas agitavam a cabeça, parecendo vaidosas do cadáver que arrastavam: foi o único orgulho que inspirou jamais a   companhia da sua pessoa. Ali   apodrece aquele resto de  matéria  mal organizada, que rebolou durante anos pela terra, sob o nome desacreditado de Justiniano Sarmento Amado.

Este ventre – segundo a frase de José Estêvão – era naturalmente um títere, um títere obeso nas mãos de sua mulher: era ela quem lhe puxava as guitas da vontade.

D. Laura Amado, de aspecto, dava a impressão de uma régua: esguia, chata, erecta, perpendicular, com o seu vestido de seda negra, parecia, não uma senhora, vivendo num prédio à Estrela, mas uma criação pitoresca do ilustre Dickens. Moralmente, tinha a mesma rigidez dura e inflexível, o mesmo rectilíneo de régua. Era uma devota, de uma pontualidade de máquina no cumprimento da sua devoção. Desde nova até ao dia em que a levou uma benemérita escarlatina, rezou, rezou imperturbavelmente, cronometricamente, com um tique-tique-tique, de relógio. Era dotada de uma língua feroz com que lacerava todas aquelas – porque raras vezes, decerto por pudor, se referia aos homens – que não exerciam uma devoção tão complicada, ou tinham os gozos, os luxos, as paixões que lhe proibia o seu Deus, um Deus especial, dela – um Deus terrível, que vivia na Igreja de S. Domingos, insaciável de louvores, pródigo de catástrofes, sempre pronto a despedir, como raios, doenças mortais ou desgostos com as criadas, e que era necessário abrandar constantemente com promessas, missas, ladainhas e ofertas, porque o seu divino temperamento, de uma irritabilidade fora do vulgar, o mantinha no desejo frenético de fazer mal.

Pode parecer irrespeitosa esta apreciação da família Amado, mas, para minha justificação, direi, que o Ex.mo Conde a abominava. E todavia – tanto a sua polidez era perfeita – nunca deixou de beijar respeitosamente a mão de sua devota sogra – mão magra, amarela e seca como um caranguejo, de longos dedos que ela tinha sempre postos em atitude de reza, contra o peito, na igreja, sobre o regaço, na sala, e em cima do prato, à mesa.

Desta devota, e do outro, do montão de gordura de que falei acima, tinha nascido um anjo. Que me perdoe a memória do Conde, mas D. Virgínia Sarmento Amado, primeira Condessad'Abranhos, era um anjo! Não ignoro os seus erros: mas se, para os atenuar, não bastasse lembrar-me que há 1800 anos, Jesus de Nazaré defendeu das pedras farisaicas a pobre mulher amorosa prostrada a seus pés, bastar-me-ia recordar a bondade de D. Virgínia, a sua tocante delicadeza, o mimo das suas maneiras, aquela necessidade de ver todos à volta dela confortáveis e contentes...Era  um   anjo,  tanto  na sua  alma, viva  e   toda  espontânea, como nos  seus  cabelos  loiros, sempre um pouco desordenados, nos seus grandes olhos activos e banhados num largo riso doce,   no  seu   nariz   tão  fino, de   um  tom  de   marfim,  na  sua  figura   delicada,   patrícia,  de movimentos de ave... Era um anjo!

Desta família, o pai foi magistrado condecorado, a mãe, devota respeitada, e a filha – segundo a lei e a moral corrente – criminosa repulsiva. Hoje, dormem os três no jazigo monumental do Alto de S. João, e eu estou bem certo que esta opinião dos homens não foi corroborada por Deus. A devota estimada está, não o duvido, atravessada pelo espeto tradicional, que um diabo, por toda a Eternidade, vai fazendo girar, para a assar ora de um lado ora do outro. O pai, magistrado coberto de honras, impossível para ser de Deus, muito abjecto para ser do Diabo, deve estar nesse lugar tenebroso, latrina da Eternidade, onde os Vitellius torpes e os Amados pútridos chafurdam para todo o sempre numa massa líquida, feita dos excrementos dos homens e da baba das feras. E ela, a doce culpada, a loira condessa, parece-me vê-la, com um vestido cândido, a palma verde na mão, os fios de ouro fino dos seus cabelos soltos, banhada na luz paradisíaca e mística que sai dos olhos de Deus.

Eça de Queiroz, O Conde D´Abranhos

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