A imagem representa a princesa Nzinga (Ginga) que se apresentou-se, em 1621, na cidade de Luanda,  como embaixadora de seu irmão, o Ngola Ngola Mbande, para discutir um tratado de paz com o governador português, João Correia de Sousa. Segundo a obra Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola, escrita pelo capuchinho italiano, Padre João Antonio Cavazzi de Montecuccolo, que conheceu Nzinga, pessoalmente, Sousa não a tratou com a reverência que ela julgava ser-lhe devida, oferecendo-lhe apenas duas almofadas, ao invés de uma cadeira. Humilhada, a rainha Ginga chamou uma das suas escravas, fê-la pôr-se de gatas, tendo passado toda a conferência sentada nas suas costas.  Ao sair, não deu ordem à desgraçada para que se levantasse, permanecendo esta naquela não muito confortável (e sumamente perigosa) posição. Perguntando -lhe João de Sousa se não levava a escrava consigo, a Ginga retorquiu: "podes ficar com ela; tenho muitas".

 Este episódio, que ficou famoso, ilustra bem como, entre os africanos, não só havia escravatura como se tratava de uma escravatura bem mais cruel e desumana do que a existente nos países cristãos - basta lembrar que a palavra carimbo tem origem angolana e significava a marca com ferro em brasa feita pelos locais na pele dos respectivos escravos. 

Curiosamente não foi possível encontrar registos da versão africana deste episódio provavelmente porque, por essa altura, na África negra, a escrita ainda  era completamente desconhecida. No inicio do século XVII viviam, aqueles povos, literalmente em plena pré-história - em toda a África subsariana, além da escrita, não existiam, por exemplo, edifícios com mais de um andar térreo (rés-do-chão), nem era conhecida a roda.

    Mas demos a palavra, aquele que é considerado um dos maiores especialistas mundiais em história da escravatura a João Pedro Marques[1], no seu livro  Escravatura Perguntas e Respostas:

“ O abolicionismo foi, como é sabido, uma ideologia nascida no último terço do século XVIII, na Grã-Bretanha e nas suas colónias da América do Norte, que exigia o fim imediato da escravatura. Foram os abolicionistas britânicos, de ambos os lados do atlântico – e também alguns filósofos da época -, que perspectivaram a escravatura dos africanos como uma culpa exclusiva do homem branco, algo que devia provocar arrependimento e uma pronta reparação do mal. Foram também eles que elaboraram e difundiram a ideia do pacífico e inocente negro – isto é do “bom selvagem” -, enganado e brutalizado pela ganância sem limites do europeu. Essas perspectivas foram, depois, milhares de vezes repetidas e milhares de vezes reforçadas por notícias de jornais, discursos parlamentares, páginas literárias como as de Acabana de Pai Tomás, um extraordinário livro de 1852 que, convém sublinhá-lo, foi o mais lido romance de sempre. Assim, do muito que se disse e se escreveu sobre o assunto, de finais do século XVIII a princípios do século XX, foram-se cristalizando na mente das populações ocidentais – incluindo nas mentes portuguesas – várias imagens e convicções, que ainda perduram, sobre o que teria sido a escravatura. Algumas dessas imagens e convicções não são correctas e já não se justificam. Sabemos actualmente bastante mais do que sabíamos há duzentos  anos e sabemo-lo porque, a partir da década de 1960, a investigação histórica fez enormes avanços nesta área. De então para cá, formou-se uma verdadeira torrente bibliográfica, a tal ponto intensa e caudalosa que, na década de 1990, começaram a publicar-se suplementos bibliográficos anuais (com cem páginas e mais) para que os estudiosos não perdessem o pé. Quem, hoje em dia, quiser ficar a par do que foi o sistema escravista criado pelos povos marítimos do Ocidente entre os séculos XV e XIX tem à sua disposição muitas centenas de livros e milhares de artigos para se informar de forma cabal e profunda sobre o assunto.

E é por essa razão que também não se justifica – e entro, agora, na questão das distorções – a posição dos que, por outro lado, querem reescrever a história da escravatura com o aparente intuito de a adaptar à era da globalização e do politicamente correcto. Alguns dos mais visíveis paladinos da reescrita dessa história produzem o seu trabalho no âmbito ou sob a égide da UNESCO. Efectivamente, em 1994, sob proposta do Haiti, a UNESCO criou o projecto The Slave Route – ou A Rota do Escravo, na designação do ramal português do referido projecto -, cujo comité científico internacional é actualmente presidido pela historiador francesa Nelly Schmidt. No âmbito desse projecto, a UNESCO tem apadrinhado, incentivado e caucionado trabalhos historiográficos e narrativas históricas que, em certos casos, deformam substancialmente, às vezes de forma subtil, outras de forma grosseira, aquilo que sabemos sobre o passado. Se pesquisarmos The Slave Route na Internet, iremos dar com páginas e páginas de teorias surpreendentes, com novos heróis abolicionistas (maioritariamente negros, agora) ou com afirmações erradas ou, pelo menos, muitíssimo contestáveis. Logo na declaração inicial do projecto The Slave Route, a UNESCO informa que “decidiu quebrar o silêncio que envolve o tráfico de escravos e a escravidão”, o que deixará boquiaberta qualquer pessoa que esteja a par do que tem sido publicado nas últimas décadas e que saiba que silêncio, nestes temas, é algo que não há nem nunca houve. O leitor que aceda, por exemplo, ao separador “Resistances and abolitions” na página do projecto da UNESCO será confrontado com a seguinte afirmação: “os primeiros que lutaram pela abolição da escravidão foram os próprios nativos e escravos que, desde a sua captura em África até à sua venda e exploração nas Américas e Caraíbas, adoptaram vários métodos de resistência”. Será isto verdade? Não! Trata-se duma mera declaração política, de uma mitologia, que não se coaduna com os resultados da investigação histórica. Ou seja, parte do que se oferece ao público na página de The Slave Route não é História, é ideologia política, com a agravante de ser servida no site de uma instituição com o peso, a credibilidade e o alcance verdadeiramente universal da UNESCO.

Um dos venenos do nosso tempo são as ideologias políticas mascaradas de ciência – ciência histórica neste caso – e é de lamentar que seja a UNESCO a fornecer o copo para esse veneno. A História não é um mero instrumentos para atingir fins políticos. É antes do mais, uma maneira de compreender a trama dos acontecimentos humanos, de desenvolver o sentido crítico nos que escrevem ou lêem e, acima de tudo, um caminho de procura da verdade.”



[1] Foi, durante mais de duas décadas, investigador do Instituto de Investigação Científica Tropical e, em 2007-2008, presidente do Conselho Científico desse instituto. Doutorou-se em História pela Universidade Nova de Lisboa, onde leccionou a cadeira de História de África durante a década de 1990. Ao longo da sua carreira escreveu dezenas de artigos e livros sobre temas da história colonial. É um especialista de créditos firmados e renome mundial – referência obrigatória em publicações sobre o assunto – em história da escravatura e da sua abolição.



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