São Roberto Belarmino

                                                


                                                            O CASO GALILEU

                                                                           ou

                                                    O PRIMEIRO HERÓI MODERNO

 

 

Se alguém se atrever a negar o mito tão divulgado, no mundo moderno, da suposta resistência de Galileu ao tenebroso obscurantismo da Igreja, será olhado como louco. O sistema funciona de tal modo que não só o ensino obrigatório estatal como até os seminários e colégios católicos, fizeram sua esta verdade de fé moderna, mostrando assim a confusão a que chegou a inteligência católica. Por isso nos pareceu necessário expor a veracidade dos factos históricos relembrando por exemplo que a frase que imortalizou Galileu: “E no entanto move-se” nunca foi por ele proferida.

Não se trata de um assunto de menor importância, pois a alegada hostilidade da Igreja relativamente à ciência é, no espírito da maioria, um dado adquirido. A versão parcial do caso Galileu que a maior parte das pessoas conhece é, em grande medida, responsável pela convicção generalizada de que a Igreja impediu o progresso da investigação científica. No entanto, basta pensar que mesmo que o caso Galileu se tivesse passado exactamente como as pessoas julgam que se passou, é significativo que seja praticamente o único exemplo recorrentemente referido.

 

I. Breve resenha histórica da evolução das teorias astronómicas.

1. O sistema geocêntrico de Ptolomeu.

Sabe-se que desde muito cedo o homem se interessou por perscrutar os céus. Via o movimento dos diversos astros através do firmamento e como tinha, como nós ainda temos, a sensação de que a terra está completamente imóvel, concluiu facilmente que ela era o centro estável do universo e que as estrelas giravam em seu redor. Esta é a chamada teoria geocêntrica.

No entanto já no século III A. C., Aristarcos de Samos (último aluno de Pitágoras) propõe em traços largos o sistema Heliocêntrico: a terra e os demais planetas girando em redor do sol, a terra girando sobre si mesma e a inclinação do seu eixo, o que explicaria as estações do ano.

No entanto esta concepção não se impôs e, no século II D.C., Ptolomeu (de Alexandria) estabelece firmemente a teoria geocêntrica, que havia de permanecer quase sem alterações até ao século XVII.

Ptolomeu afirma explicitamente que o seu sistema não pretende descobrir a realidade mas apenas ser um método de cálculo: Com base no cúmulo de observações até então registadas, criou um sistema cuja formulação matemática lhe permitia justificar a posição dos astros no passado e predizê-la para o futuro.

No século XIII, São Tomás de Aquino adverte que os epiciclos e excêntricas com que Ptolomeu teve de modificar as órbitas circulares dos astros no seu sistema, para poder explicar certos fenómenos, “são somente uma hipótese para salvaguardar a aparência dos movimentos celestes, porem não são evidências, pois poderiam salvaguardar-se com outras hipóteses”; ou seja tanto para o seu autor como para qualquer mente perspicaz, o sistema de Ptolomeu era mais uma hipótese que uma realidade.

À medida que as medições astronómicas se tornaram mais precisas, com a introdução de aparelhos especializados, certas observações já não podiam ser explicadas pela teoria geocêntrica. Tal foi o caso dos cometas sobre os quais Galileu erraria completamente, como veremos adiante.

 

2. Sistema heliocêntrico de Copérnico.

Nicolau Copérnico, sacerdote polaco, foi designado, em 1514 pelo Concílio de Latrão (Papa Leão X) como conselheiro duma possível reforma do calendário.

Respondeu que os movimentos do sol e da lua ainda não eram suficientemente conhecidos para se proceder a tal reforma. No entanto este incidente serviu de impulso, como escreveu mais tarde ao Papa Paulo III, para fazer observações mais exactas, as quais vieram a servir, setenta anos mais tarde, para completar o calendário gregoriano.

Escreveu, como testemunho de incansáveis observações “Sobre a rotação dos corpos celestes” obra em que, muitos anos antes da sua morte, já aventava a hipótese de que o sol estava imóvel e todos os planetas, incluindo a terra, giravam em torno dele. Todavia, não se atreveu a publicar tal obra, por ter receio de ser ridicularizado.

Limitou-se a transmitir esta sua hipótese, oralmente, a alguns “discípulos”.

Um destes, Alberto Widmanstadt, fez uma exposição ao Papa Clemente VII, em 1533, sobre o sistema solar coperniciano. Sua Santidade ficou tão agradada, que o recompensou com um raríssimo códice grego que ainda hoje pode ser encontrado na biblioteca estatal de Munique.

Três anos mais tarde, Copérnico foi instado, pelo Cardeal Schonberg, Arcebispo de Cápua, mediante uma carta endereçada de Roma e datada de 1 de Novembro de 1536, a publicar as suas descobertas ou ao menos fazer uma cópia a ser paga pelo próprio Cardeal, mas tudo isto foi inútil.

Finalmente, em 1541, Copérnico, sentindo o peso dos seus sessenta e oito anos, cedeu à pressão do Cardeal Schonberg, do Bispo Giese de Culm e de outros homens de ciência (como relatou em carta dirigida a Paulo III) e entregou os seus manuscritos para publicação.

Porém, devido a uma férrea oposição por parte dos protestantes, o livro só foi publicado poucos dias antes da morte de Copérnico. Era dedicado a Sua Santidade, o Papa Paulo III, que aceitou tal dedicatória.

A Igreja mostrou-se assim aberta à teoria heliocêntrica desde que fosse apresentada como uma hipótese até estar plenamente provada. Pelo contrário, foi do lado protestante que choveram as condenações de heresia. Um texto luterano da época diz:

“Há gente que dá ouvidos a um astrónomo improvisado que tenta provar, a qualquer preço, que o céu não gira mas sim a terra. Com o fim de alardear a sua própria inteligência ele afirma como certo o primeiro disparate que lhe vem à cabeça. Este Copérnico, na sua loucura, quer negar princípios comprovados de astronomia”.

E o protestante Melanchton acrescentava: “Não toleraremos semelhante fantasia!”

Em síntese, o primeiro livro que defende a teoria heliocêntrica foi publicado a instâncias do Papa e de alguns Bispos e com forte oposição luterana.

É preciso notar que na obra de Copérnico não há uma demonstração cabal do sistema heliocêntrico (apresentado como mera hipótese explicativa), demonstração essa que só viria a acontecer muitos anos mais tarde, graças a Kepler-Newton.

 

3. Tycho, Olhos de Águia.

Astrónomo dinamarquês, nascido em 1564 (pouco depois da morte de Copérnico) foi o último cientista que observou as estrelas sem a ajuda de aparelhos ópticos.

Em Agosto de 1563, com apenas 16 anos, Tycho observou uma conjugação entre Saturno e Júpiter que, segundo as tabelas afonsinas então vigentes, só deveria ocorrer um mês mais tarde.

Começou então a fazer medições sistemáticas, noite após noite, utilizando instrumentos mais precisos por si concebidos.

Observou assim o céu durante mais de 22 anos, anotando todas as informações obtidas. Em 1600, durante uma estadia em Praga, conheceu o brilhante matemático Juan Kepler, com quem passou a trabalhar e a quem, antes de morrer, em 1601, entregou as anotações que tão sistematicamente registara.

 

4. Juan Kepler, rei das matemáticas.

Nascido em 1571 na Alemanha, no seio de uma família protestante, era um homem de profundo espírito religioso, que tinha decidido ser teólogo.

Contudo, por defender a teoria heliocêntrica de Copérnico, foi expulso do colégio teológico protestante de Tubinga e, abandonando a Alemanha, refugiou-se em Praga, na Universidade Pontífica (católica), onde conheceu Tycho Brahe.

Utilizando a copiosa informação que tinha herdado, tentou demonstrar a circularidade das órbitas planetárias (influenciado pelo conceito aristotélico e pitagórico de que a forma mais perfeita é o círculo) mas rapidamente chegou à conclusão de que os dados obtidos por Tycho só podiam ser conciliados com órbitas elípticas, o que por fim se viu obrigado a aceitar.

Formulou então (1609-1619) as Três leis do movimento planetário de Kepler, que revolucionaram o conhecimento científico e permitiram predizer, com assombrosa precisão, o movimento dos astros.

 Por isso, as autoridades protestantes, excomungaram-no, em 1612.

No entanto Kepler apenas sugeria um modelo que confirmava as observações existentes, ainda que apoiado numa exacta formulação matemática.

 

5. Isaac Newton, a síntese.

Todos os astrónomos de que falámos até agora estudaram o movimento dos astros sem saberem a causa que os produz. Foi Issac Newton, nascido em Inglaterra em 1643, poucos meses depois da morte de Galileu, quem descobriu e quantificou esta causa, na sua Lei da Gravitação Universal (1685).

Unificando as leis dos movimentos dos astros com as que regem os movimentos sobre a terra, Newton como que uniu, no que diz respeito à física, a esfera celeste com a terrestre.

 

Conclusão:

Esta breve resenha histórica mostra que, na época de Galileu, a Igreja não condenava as teorias de Copérnico, considerando-as como o que na realidade eram – uma possibilidade ainda sem fundamento científico seguro.

Só no final do século XVII é completada a formulação matemático-causal do sistema heliocêntrico. E só em 1748 se comprova experimentalmente a rotação da terra.

 

 

 

II. O caso Galileu.

 

1.   Introdução.

 Pode parecer estranho que na nossa breve resenha histórica, não tenhamos mencionado o nome de Galileu. Mas, na realidade, os seus principais méritos científicos foram no campo da mecânica, tendo sido a sua participação na edificação da astronomia muito exagerada pelos detractores da Igreja. Neste último campo o seu principal contributo foi o desenvolvimento do telescópico, mas cometeu grandes erros (mesmo para a época) afirmando, por exemplo, que os planetas Vénus e Mercúrio eram transparentes e que a luz do sol passava através deles.

Galileu nasceu em Pisa em 1564 e morreu em Florença em 1642. Ensinou matemática na sua cidade natal, desde1589 a 1592 e, depois, em Pádua, até 1610. Ensinou também astronomia aderindo ao sistema de Ptolomeu.

Um rasgo característico da sua personalidade era a veemência que punha nos seus debates, pois não se contentava em refutar os seus adversários, antes tentando confundi-los e ridicularizá-los. A este propósito Sir David Brewster disse que “a audácia e imprudência com que insistia em convencer os seus adversários só conseguia afastá-los da verdade”.

Esta característica da sua personalidade foi uma das razões que o levaram a granjear tantos inimigos e lhe suscitaram tantos problemas.

Foi influenciado pelas ideias de Aristóteles sobre a simplicidade do círculo e por isso defendeu a hipótese (que também obcecara Kepler) de que os astros seguiam uma órbita circular.

Isto levou-o a cometer um grave erro, quando negou a existência de cometas descritos por Tycho e pelo Padre Grassi (sacerdote jesuíta do observatório romano) que estudaram três deles, aparecidos em 1618. Galileu afirmava que os cometas eram simples fenómenos meteorológicos, para não ter de admitir as suas órbitas elípticas, que eram por demais evidentes.

No início de 1609, Galileu soube que um óptico holandês chamado Lippershey, tinha construído um instrumento que permitia ver ampliados objectos distantes.

Estudou os princípios e processos envolvidos e conseguiu construir um telescópio que aumentava três vezes a visão dos corpos celestes e logo um que aumentava trinta e duas vezes.

As observações que fez com o telescópico (satélites de Júpiter, fases de Mercúrio e Vénus, evolução das manchas solares) apoiavam a teoria de Copérnico, a qual tinha abraçado uns tempos antes, segundo confessou a Kepler, mas em segredo, com medo de ser ridicularizado.

No entanto, sentindo-se apoiado nas suas novas descobertas, acabou por sair em defesa dos postulados de Copérnico publicando, em 1610, as suas observações, numa obra chamada “Sidereus Nuncius”.

O livro é bem acolhido e torna-o famoso. No final de 1610 o padre Cristóvão Clavius escrevia a Galileu, informando-o de que os seus colegas astrónomos jesuítas confirmavam as descobertas que tinha feito através do telescópio.

Em Março de 1611 é chamado a Roma para expor suas conclusões a vários prelados. Tendo sido recebido com enorme entusiasmo escreveu a um amigo: “Fui recebido com favor por muitos cardeais, prelados e ilustres príncipes desta cidade”.

Manteve uma prolongada audiência com o Papa Paulo V e os jesuítas do Colégio Romano organizaram um dia de actividades em sua honra. Galileu estava encantado: perante um público de cardeais, investigadores e personalidades seculares, alunos do padre Cristóvão Grienberger e do padre Clavius discursaram sobre as extraordinárias descobertas do astrónomo.

Tratava-se de investigadores de considerável categoria. O padre Grienberger, que confirmara pessoalmente a descoberta das luas de Júpiter, era um astrónomo de relevo, que tinha inventado a montagem equatorial, dispositivo que permitia fazer rodar um telescópio em redor de um eixo paralelo ao da Terra; tinha ainda contribuído para o desenvolvimento do telescópio de refracção, que ainda hoje se usa.

O padre Clavius, um dos grandes matemáticos do seu tempo, dirigira a comissão que produzira o calendário gregoriano (que entrou em funcionamento em 1582), que tinha por objectivo resolver as imprecisões que punham em causa o antigo calendário juliano. Os cálculos feitos pelo padre Clavius, relativos à duração do ano solar, foram de tal forma rigorosos que, ainda hoje, os historiadores se perguntam como conseguiu realizá-los.

Iniciou-se assim um animado debate com os partidários incondicionais de Aristóteles que consideravam que a sua física, filosofia e teologia formavam um todo, de tal maneira que entendiam os fenómenos naturais relatados na Bíblia à luz das ideias do mesmo Aristóteles e do sistema ptolomaico. Galileu já lhes havia ganho uma batalha ao demonstrar o erro aristotélico de pensar que a velocidade dos corpos ao cair depende da sua massa.

Tudo parecia favorável a Galileu. Quando em 1613 publica as Cartas sobre as manchas solares, em que defende a verdade literal do sistema coperniciano. Uma das muitas cartas entusiásticas de felicitações que então recebeu, veio nada menos que do cardeal Maffeo Barberini, que viria a ser o papa Urbano VII.

A Igreja não tinha qualquer objecção ao uso do sistema coperniciano, que considerava um elegante modelo teórico, cuja verdade literal estava longe de estar estabelecida, é certo, mas que permitia explicar os fenómenos celestes com maior fiabilidade do que qualquer outro sistema. Consideravam as autoridades eclesiásticas que não faria mal nenhum apresentá-lo e utilizá-lo como sistema hipotético.

Galileu, por seu turno, estava convencido de que o sistema coperniciano não era uma simples hipótese, mas que era literalmente verdadeiro. Faltavam-lhe contudo provas que permitissem sustentar, minimamente que fosse, esta convicção. Assim, argumentava, por exemplo, que o movimento das marés era uma prova do movimento da Terra, sugestão que os cientistas consideram hoje pitorescamente divertida. Não conseguia responder às objecções dos geocentristas segundo as quais, se a Terra se movesse, observar-se-iam paralaxes quando se olhassem as estrelas – o que de facto não acontecia.

Embora não dispondo de provas científicas rigorosas, Galileu continuava a insistir na veracidade literal do sistema heliocêntrico recusando-se a aceitar um acordo, que consistia em ensinar esse sistema como hipótese, enquanto não fossem produzidas provas conclusivas em seu favor.

Segundo a doutrina da Igreja, ao interpretar-se um texto bíblico, deve-se aceitar primeiro o seu sentido literal, desde que não seja absurdo. Só se tal não for possível é que se deve interpretar em sentido simbólico ou alegórico (por esta ordem). Assim sendo, a seguinte passagem de Josué 10: 12, 13, era interpretada literalmente, de acordo com o sistema de Ptolomeu:

Então Josué disse a Yahveh, no dia em que Yahveh entregou o amorreo aos israelitas: “detém-te, sol, em Gabaão e tu lua no vale de Ayylão”. E o sol se deteve e a lua parou até que povo se vingou dos seus inimigos. Não está escrito no livro do justo: O sol parou no meio do céu e não teve pressa de se pôr durante um dia inteiro?

Uma vez que o sistema de Ptolomeu era bastante exacto (com uma precisão de um quarto de grau no cálculo da posição dos astros) enquanto o heliocêntrismo não estava suficientemente provado, pareceu à Igreja que ainda não seria razoável alterar a interpretação deste texto, para a adequar a uma hipótese ainda não demonstrada.

Apesar dos seus amigos o aconselharem a restringir-se ao debate científico, Galileu comprometeu-se numa campanha em prol da sua interpretação da Bíblia; ou seja, pôs-se a fazer exegese, coisa para a qual não tinha qualquer qualificação, apoiando-se em passagens de S. Agostinho referentes à interpretação não necessariamente literal da Bíblia.

Embora do ponto de vista científico estivesse certo, o que a Igreja lhe pedia era que provasse cabal e cientificamente a veracidade da teoria heliocêntrica e só então alteraria a interpretação da dita passagem de Josué, de literal para simbólica ou alegórica, como imediatamente fez quando, no final do século XVII, finalmente se conseguiu provar a dita teoria.

Jerome Langford, um dos mais judiciosos investigadores contemporâneos desta questão afirma:

Galileu estava convencido de estar na posse da verdade. Objectivamente, porém, não dispunha de qualquer prova que lhe permitisse conquistar o apoio de homens de espírito aberto. É totalmente injusto afirmar, como fazem alguns historiadores, que ninguém prestava atenção aos seus argumentos e que não teve hipótese de fazer valer os seus pontos de vista. Os astrónomos jesuítas tinham confirmado as suas descobertas e esperavam ansiosamente pela apresentação de novas provas que lhes permitissem avançar, com fundamentos sólidos, para a defesa do sistema coperniciano. Eram muitos os clérigos influentes que estavam convencidos que Galileu tinha provavelmente razão, mas estavam à espera de provas concludentes.

É obvio que Galileu não foi uma vítima inocente dos preconceitos e da ignorância da época. O próprio Galileu foi parcialmente responsável pelos acontecimentos uma vez que se recusou a fazer qualquer cedência e avançou para o debate sem provas suficientes e recorrendo a argumentos de natureza teológica.

 

 

 

2.   Primeiro processo (1616)

Em 1616 saíram a público as obras dos padres Foscarini (carmelita) e Zúñica (agostinho) que interpretavam a Bíblia do ponto de vista heliocêntrico, gerando-se uma grande confusão de ideias que obrigou o Santo Ofício a intervir em Fevereiro desse ano.

O espírito da Igreja é bem visível numa carta que o Cardeal Roberto Bellarmino (S. Roberto Bellarmino, eminente teólogo mais tarde elevado aos altares por suas virtudes) enviou ao padre Foscarini em Abril de 1615, na qual diz o seguinte:

“A astronomia coperniciana é verdadeira? fundamenta-se em provas reais e verificáveis? Ou, pelo contrário, baseia-se somente em conjecturas e aparências? as teses copernicianas são compatíveis com os enunciados das Sagradas Escrituras? Afirmo que se se encontrar uma prova real de que o sol está fixo e que não se move à volta da terra mas ao contrário é esta que gira ao redor do sol, então será necessário, muito cuidadosamente, proceder à explicação das passagens das Escrituras que parecem contradizê-lo e deveremos proclamar que fomos nós que as interpretámos mal e não dizer que é falso o que está demonstrado. ”

 Ou seja, segundo S. Belarmino, até que fossem proporcionadas provas da rotação da terra em torno do sol era necessário interpretar com muita circunspecção as passagens da Bíblia que declaravam a terra imóvel. Porém, se se demonstrasse que a rotação da terra era certa, então os teólogos deviam, segundo ele, rever as suas interpretações das passagens da Bíblia, aparentemente em desacordo com as teorias copernicianas.

E ainda que Galileu intuitivamente estivesse certo, as provas que deu da rotação da terra eram absolutamente falsas e até retrógradas para a época, porque defendia que as marés eram causadas pela rotação terrestre, quando alguns coetâneos atribuíam-nas já à influencia do sol e da lua (mais tarde Newton provaria que só dependiam desta última).

Ou seja, Galileu não convenceu por falta de provas e, portanto, teria sido imprudente, tanto do ponto de vista exegético como do ponto de vista científico, alterar a interpretação literal das passagens bíblicas em discussão.

O Cardeal Belarmino pediu a Galileu, através de um Monitum (advertência) que apresentasse a teoria de Copérnico somente como uma hipótese, o que ele aceitou, tendo sido recebido por Paulo V antes de regressar a Florença.

Em 1620 o mesmo Papa autoriza a leitura do livro citado, uma vez realizada a dita correcção.

 

3. Segundo processo (1633)

Restabelecida assim a paz e confinada a discussão ao âmbito da ciência (donde não devia ter saído) a situação estabilizou até que o Cardeal Maffeo Barberini (amigo pessoal e admirador de Galileu) chegou ao trono de S. Pedro, como Urbano VII, em 1623.

Enquanto Cardeal, tinha-o animado a escrever a sua “Carta sobre as manchas solares” e chegou a escrever uma ode de apoio a Galileu (“L’adulatio Perniciosa”), sendo a este pontífice que Galileu vai dedicar a sua obra “Il Saggiatore”.

Galileu vê, nesta circunstância, a oportunidade para que se levante a proibição de 1616, que o obrigava a falar do heliocêntrismo apenas como uma hipótese, demonstrando uma certa teimosia e quiçá soberba, pois não tinha conseguido demonstrar tal teoria.

Começa assim, em 1624, uma obra sobre os distintos sistemas astronómicos, na qual trabalhará durante seis anos. Para publicá-la procura obter o imprimatur, ainda que não fosse necessário para obras científicas, antecipando-se assim a possíveis objecções dos seus adversários.

É recebido de novo em Roma, com grande entusiasmo, discutindo questões científicas com vários cardeais. O Papa oferece-lhe diversos presentes significativos, nomeadamente duas medalhas e uma declaração em que solicita patrocínios para as suas investigações, referindo-se-lhe como um homem “cuja fama brilha nos céus e se difunde por todo o mundo” e afirmando que a Igreja nunca tinha considerado que o sistema coperniciano fosse uma heresia e que nunca o faria.

Viaja a Roma em 1630 e apresenta o seu livro, que havia intitulado “Diálogo sobre o fluxo e refluxo do mar”. O livro é aprovado pelas autoridades eclesiásticas, porém aconselham-no a que mude o título da obra e que fale da sua hipótese explicativa para as marés (que estava errada) de forma hipotética, pois que não estava provada.

Galileu muda o título para “Diálogo sobre os principais sistemas do mundo, de Ptolomeu e Copérnico”; porém, continua a falar daquilo que ainda são hipótese, como se de certezas se tratassem.

Para conseguir o imprimatur, evitando reconhecer que fala apenas em hipóteses, recorre a um estratagema. Apresenta à censura a sua obra truncada das partes comprometedoras e com um prólogo onde se disfarça de inimigo das ideias de Copérnico. A autorização é-lhe concedida em 1631 e o livro aparece em Fevereiro de 1632, mas já com as partes que tinha omitido aquando do pedido do imprimatur.

O Papa, sentindo-se enganado pelo seu amigo pessoal, confia ao embaixador da Toscânia em Roma: “Tratei-o melhor do que ele me tratou a mim, pois ele enganou-me”.

 

A Igreja poderia, quem sabe, consentir no engano pessoal, mas não na mentira, como meio de obter a autorização, nem na transgressão ao monitum de Bellarmino. E havia outra razão para actuar rapidamente: o livro foi publicado em italiano e não em latim (o idioma da ciência) com o fito de atingir o grande público.

Mais uma vez fica patente a temeridade de Galileu, que pretende arrastar um debate sobre ciência e Fé para a praça pública, domínio das paixões. Impõem-se, pois, medidas mais duras que as de 1616.

 

O Papa tenta evitar que Galileu compareça ante o Santo Ofício, designando uma comissão para analisar o ocorrido. As conclusões são terminantes: “Galileu foi longe de mais e deve ser julgado”.

 

No ano de 1633 Galileu chega a Roma para enfrentar duas acusações:

1º- Ter transgredido a ordem de 1616.

2º- Ter obtido o imprimatur com malícia e engano.

Porem, Galileu, em vez de assumir as suas ideias, surpreende os juízes dizendo, sob juramento, e sustentando-o durante todo o julgamento que, ele, pessoalmente, não crê na teoria de Copérnico e que no seu livro demonstra a falsidade da mesma. Isto, que manifestamente não é verdade, afirma-o na presença do Papa que presidiu a uma sessão em 16 de Junho.

Finalmente foi condenado a:

- Recitar salmos penitenciais uma vez por semana durante três anos.

- Abjurar solenemente os seus erros.

- Reclusão num cárcere escolhido pelo santo ofício.

 -Proibição do seu livro, que é posto no Índex.

Porém, esta sentença acaba por ser cumprida da seguinte forma:

- Obtém permissão para que os salmos sejam recitados por uma sua filha, monja carmelita.

 -A abjuração é pronunciada em privado perante os juízes.

- Jamais esteve na prisão: durante o processo e até finais de 1633, alojou-se em casa de Nicollini, seu amigo, embaixador da Toscânia e mais tarde em casa do Arcebispo de Siena.

É autorizado a viver na sua Villa Arceti, perto de Florença, onde recebe os seus discípulos e amigos e continua os seus estudos de matemática – data dessa época a sua obra mais importante – até à sua morte, em 1642, com 78 anos. Morreu com a bênção pontifícia, recebendo indulgência plenária e sendo sepultado na Igreja de Santa Cruz de Florença.

Em 1741, logo que foi demonstrada cientificamente a rotação da terra, o Papa Benedicto XIV fez o Santo Ofício conceder o imprimatur às obras completas de Galileu.

Dos dez elementos que constituíam o tribunal que julgou Galileu três não validaram a condenação com a sua assinatura.

Não há registo, na época, de que Galileu tenha proferido a famigerada frase: “e no entanto move-se”, aquando da assinatura da abjuração. Esta frase é inventada por um periodista, em 1757, mais de 120 anos depois dos factos, e logo foi repetida por outros (entre os quais se destaca Giuseppe Baretti).

 

Sua Santidade o Papa Bento XVI afirmou recentemente que Galileu tinha recebido um juízo justo da parte da Igreja.

 

                                                                           João Faria de Morais     

Bibliografia:

- Vittorio Messori, Lendas Negras da Igreja.

- Jerome J.langford, Galileu, Science and Church, Nova Iorque, Desclée.

- Joseph MacDonnell Jesuit Geometers , St. Louis Institute os Jesuit Sources.

- Jacques Barzun From Dawn to Decadence, Nova york, HarperCollins.

- James Brodrick The life and work of blessed Robert Francis Cardinal Belarmine, Londres.

- James J. Walsh, The Popes and science, Nova Yorque, Fordham University.

- Edward Grant, Science and Theology in de Middle Ages. Berkeley Uniersity of Califórnia.

- Thomas E. Woods, Jr. O que a civilização ocidental deve à Igreja Católica

                                                                     

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