O COMPLEXO
DE JUDAS
Judas Iscariotes será eternamente conhecido como o homem que
entregou Jesus Cristo aos seus inimigos. Pelo menos em vinte línguas o seu nome
é sinónimo de “traidor”. Pensar em Judas, ou mencionar o seu nome, é invocar a
imagem do traidor total. O protótipo do traidor. No entanto, não há nenhuma
razão para supor que no início quando foi chamado por Jesus para ser um dos
seus mais íntimos discípulos – um dos Apóstolos iniciais - Judas já estivesse preparado para a traição, ou
tivesse menos devoção a Jesus, ou fosse menos merecedor desse chamamento, ou
estivesse menos decidido a segui-Lo, até
ao fim, do que os outros onze eleitos.
Tão pouco podemos supor que Jesus não tenha concedido a Judas algumas das Divinas
Graças que conferiu aos outros Apóstolos. Hoje quando se tornou claro que, de
maneira semelhante e numa escala alarmantemente ampla, houve uma grosseira
traição à Igreja, por parte da hierarquia católica moderna, não há nenhuma
razão para supor que qualquer dos seus membros, culpados dessa traição, tenha
começado com menos boas intenções ou menor devoção à Igreja do que aqueles que se
mantiveram fieis à sua vocação. Tão pouco podemos supor que àqueles, que agora
estão entregues à traição, se lhes tenha negado as graças divinas que são
necessárias para o exercício dos seus deveres eclesiásticos.
Judas deve ter participado plenamente do Carisma de um
Apóstolo prefigurando, deste modo, o que um Bispo da igreja Católica é hoje.
Vivendo com Jesus dia e noite, viajando com Ele, escutando Suas palavras e
vendo Suas acções, colaborando com Ele em Seus trabalhos, enviado por Ele para
pregar o Reino de Deus, para curar os enfermos, exorcizar demónios, exercer Sua
autoridade, confiar nas armas espirituais e nos meios sobrenaturais, Judas não
pode ter começado sendo mais mundano, mais cobarde, menos iluminado que os
demais membros desse grupo especial.
Porem desse grupo selecto, só Judas traiu Jesus. Não era um
dissidente, não tinha a intenção de romper a unidade do grupo nem de arruinar
Jesus e os doze. No entanto acabou desempenhando um papel clássico: o do anti
herói que insiste em levar por diante o seu próprio plano (no qual, como é bom
de ver, desempenharia um papel importante e auto – satisfatório). Pensou que
podia reconciliar Jesus com os seus inimigos; podia, mediante uma negociação
decente, assegurar o êxito de Jesus no mundo, ao celebrar um acordo com os
líderes desse mesmo mundo.
Os mesmos comentários, com as devidas diferenças, podem
aplicar-se, hoje, à hierarquia da Igreja Católica: foram chamados para viver
intimamente com Jesus através da plenitude do Sacerdócio, para exercer a Sua
autoridade espiritual, para confiar no poder e na Graça do Seu Espírito, para
serem pastores de almas, curando, exorcizando, pregando, reconciliando; para prosseguir
o plano de salvação que Jesus indicou claramente quando estabeleceu Pedro como
chefe da sua Igreja e como seu representante pessoal no “único verdadeiro
redil” no qual se pode assegurar a salvação das almas individuais.
Porem, numa forma estranhamente reminiscente do erro que
Judas cometeu, a quase totalidade da hierarquia da Igreja Católica actual constituiu-se
como uma anti-igreja dentro da Igreja. Não querem deixar a Igreja. Não
pretendem ser dissidentes. Não pretendem acabar com a Igreja. Apenas pretendem transformá-la
de acordo com o seu próprio plano. Agora já não lhes pesa que o seu plano seja
irreconciliável com o plano de Deus. Porque ao estilo da miopia espiritual de
Judas, já não crêem na Doutrina Católica, como o Traidor já não cria na
divindade de Jesus. Estão convencidos que podem reconciliar a Igreja com os
seus inimigos através de “negociações decentes”, que dominam os acontecimentos e
que podem assegurar o êxito da Igreja de Cristo celebrando um acordo com os
líderes do mundo.
A enormidade deste erro e a sua similitude, quase importuna,
com o erro de Judas – noutras palavras: o “complexo de Judas” da hierarquia
moderna – torna-se muito evidente quando se examina a conduta do Traidor. Judas
traiu Jesus. Porem é preciso notar as “boas” intenções com que começou a andar
pelo caminho retorcido que terminou no Campo de Sangue, onde morreu sufocado com
um laço à volta do pescoço e com as entranhas espalhadas cruelmente pelo chão.
Nas páginas do Novo Testamento, o perfil de Judas é confuso
em todos os pontos excepto no que respeita à sua horrível traição.
Compreensivelmente os autores não podiam contar nada de bom ou sequer
interessante sobre Judas excepto a sua traição. À luz da ressurreição de Jesus
e da posterior descida do Espírito Santo sobre os restantes Apóstolos, tudo o
que importava, era essa brutal traição e tudo que podiam expressar pelo traidor
era o mais completo desdém e aborrecimento. Não há paralelo em todo o Novo
Testamento a essa condenação total e implacável. Não há o mais pequeno
vislumbre de perdão, nem sequer um rasto de pesar. Quiçá por Judas ter cometido
o único pecado que, nas palavras de Jesus, não tinha perdão: o pecado contra o
Espírito Santo.
Esta condenação total de Judas inclinou os cristãos a vê-lo
com maus olhos desde o começo da sua relação com Jesus, como uma espécie de
infiltrado, admitido por Ele à sua intimidade porque, por assim dizer, alguém
tinha de O trair. Porem, de acordo com a lógica, esta não pode ter sido a
verdadeira história de Judas. Do ponto de vista divino e humano Judas deve ter
sido inicialmente um dos candidatos mais prometedores para a direcção da futura
Igreja de Cristo. Judas era, por assim dizer, o único funcionário público do
grupo e, aos olhos dos outros apóstolos, era certamente considerado um alto
funcionário. A ele Jesus confiou a conservação e administração dos fundos
reunidos para gastos imediatos e todos os “negócios”que surgissem nas suas deslocações.
De facto tratava-se de um grupo de homens jovens, sãos e fortes, no auge da
vida, que não estavam empregados regularmente e que viajavam constantemente.
Tinham de ter uma “bolsa” comum para alimentos, alojamento, roupas e demais
necessidades.
Podemos pensar, com um certo grau de razoabilidade, que Judas
começou com grande entusiasmo e grande devoção a Jesus e com grande confiança
no seu êxito final. Para os demais companheiros, sabemos que, até bastante
depois da Ressurreição, o êxito significava a restauração política do reino de
Israel, com os Apóstolos ocupando doze tronos de jurisdição e juízo. Judas
certamente não pensou de outro modo e não terá esperado menos. Até disputavam,
entre si, quem teria maior autoridade. Dois deles fizeram suas mães abordar
Jesus para que lhes assegurasse os postos principais junto do trono real que
Jesus ocuparia quando governasse Israel e o mundo. Por que, sem dúvida, Jesus
seria rei.
Aqui é onde a desilusão se apoderou de Judas. Estando mais
em contacto com os assuntos práticos, mais consciente da política da sua terra,
só podia crescer a sua desilusão, quando Jesus repudiava, umas a seguir às
outras, propostas para o coroarem chefe ou rei e, em vez de as aceitar,
expressava sentimentos, muito pouco terrenos, de sofrimento e morte. Alem
disso, de cada vez que os choques intermitentes com as autoridades abriam uma
brecha mais profunda entre Jesus e o poder político de Israel – concentrado no
conselho de estado, o Sinédrio - , o sentimento de desilusão era cada vez mais
profundo em Judas. Poderia então ter deixado Jesus, “não ter caminhado mais com
ele”como, sem dúvida, fizeram muitos outros. Mas Judas queria ficar. Queria um
Jesus à sua maneira. Só queria que Jesus e os demais se adaptassem às
realidades políticas e sociais; que seguissem o seu plano e não o plano de
Jesus. Podemos estar seguros que a última coisa em que pensava era deixar o
grupo. Mas tinha forjado as suas próprias ideias sobre a maneira sensata de
como Jesus devia proceder para ter êxito. Na embriagante atmosfera de
colaboração com as autoridades, via o seu caminho abrir-se para amanhãs de
grandeza, para uma posição dirigente no futuro reino de Israel, uma vez os
odiados Romanos expulsos pela acção conjunta das autoridades judias e de Jesus.
Até mesmo, quando Jesus na última ceia disse que ele o atraiçoaria, não alterou
sua resolução. Provavelmente não compreendeu o uso que Jesus deu à palavra “trair”.
No passado já ele havia muitas vezes “traído” Jesus no sentido de haver feito o
oposto da vontade de Jesus e as coisas sempre tinham corrido bem. Esse plano de
negociação parecia perfeito a Judas. A cegueira final fechava-se sobre a sua
alma como um armadilha de aço. O Evangelho diz: “Satanás entrou em seu
coração”. Judas estava agora debaixo do controlo da personagem que mais tinha a
perder com qualquer êxito que Jesus pudesse ter. E Judas, sem nenhum escrúpulo
e sempre persuadido que seu plano era bom, pôde ir buscar as autoridades ao
templo – os seus “contactos de alto nível” – assinalar-lhes os lugar onde Jesus
estaria a determinada hora e identificá-lo perante a força armada enviada para
trazê-lo atado e acorrentado como um animal acabado de caçar.
Cada acontecimento que se seguiu foi possível e directamente
provocado por essa má decisão de Judas - o apóstolo eleito por Jesus para seu
funcionário de confiança. Tudo foi responsabilidade de Judas. A terrível agonia
no Jardim das Oliveiras, a violência com que Jesus foi aprisionado, os falsos
testemunhos, as horas passadas na prisão e os abusos dos soldados romanos, a
coroação com espinhos, o escárnio de que foi alvo, sua acusação perante Pilatos
e Heródes, a flagelação, o doloroso caminho do Calvário, a dor excruciante da
crucificação, seguida por três horas de mortal agonia, entre esforços
debilitantes para não sufocar. Tudo isto e ainda o resultado final: a morte de
Jesus. Tudo aquilo que, de tão mau e sacrílego, se torna difícil de traduzir em
palavras, foi consequência directa do “complexo de Judas”: o seu pecado
específico foi a negociação… que lhe parecia sábia e prudente, atendendo à
situação. Na mente prática e mundana de Judas, Jesus e a sua doutrina devem ter
sido classificadas como completamente inadequados ao consenso social e à
mentalidade política (ao politicamente correcto) do seu tempo. Inadequados e
inaceitáveis.
Esta é então a essência do “complexo de Judas”: a negociação dos princípios básicos para
que nos possamos adaptar ao pensamento e à conduta que o mundo considera correctos.
O princípio essencial era Jesus, Seus ensinamentos, Sua doutrina, Sua
autoridade. Judas foi persuadido, pelos seus tentadores, de que tudo que representava
Jesus tinha de ser modificado por uma negociação decente e sensata.
Temos assim uma norma segura com a qual podemos identificar
os membros da anti-igreja que estão agora firmemente sentados dentro da
organização institucional católica romana: São aqueles que consciente ou
inconscientemente pretendem adaptar a Igreja ao mundo e aos tempos através de
compromissos, negociações e se necessário for estabelecendo, a confusão, no que
respeita às crenças chaves do catolicismo, entre os fieis. Tratou-se de um
desvio perpetrado por teólogos modernos (que, na prática, dirigiram o Concílio
Vaticano II) e tolerado pelos Bispos.
O primeiro e
fundamental dever de toda a função eclesiástica consiste no ensino claro e
inequívoco da Doutrina e na aplicação das regras básicas que dela decorrem, que
a Igreja preserva e declara fundamentais para a salvação eterna. Não pode haver
negociação em nenhum desses pontos. É direito primordial e fundamental dos
católicos receber esse ensino inequívoco, por parte da Igreja e de estar
sujeitos à sua aplicação directa, sem vacilações.
É assim relativamente fácil identificar as quatro áreas
chave em que a hierarquia tolerou e propagou a maléfica confusão que afecta
hoje a grande maioria dos católicos. E estas áreas são: o Santo Sacrifício da
Missa, a unicidade e verdade da Igreja Católica Apostólica Romana, o Ofício Apostólico
do Bispo de Roma e a moralidade da actividade reprodutiva humana.
Vemos, pois, como é possível trair Cristo e a sua Santa
Igreja, qual outro Judas, sem ter aspecto violento, agressivo ou degenerado,
com boa cara e aparência de bem, tal como hoje está sucedendo visível pública e
oficialmente desde o nefasto Concílio Vaticano II.
P. Malachi Martin.
Las Llaves de esta Sangre. Ed. Lasser Press, México 1990.
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