O EXERCÍCIO DO PODER NAS DEMOCRACIAS LIBERAIS MODERNAS, SEGUNDO BYUNG-CHUL HAN

 

 Hoje, o exercício do poder não precisa de assumir uma forma coerciva pois o facto de se ter de recorrer a alguma forma de violência, é, já de si, a admissão da existência de um contrapoder - uma fraqueza incompatível com um poder absoluto. Na verdade, nem necessita de recorrer à exclusão, à proibição, ou à censura; nem de se opôr à liberdade: usa a liberdade. Reveste-se duma forma permissiva, amável, subtil, flexível e inteligente escapando a toda a visibilidade. O sujeito submetido não tem sequer consciência da sua submissão e supõem-se livre.

As suas técnicas de exercício do poder são radicalmente mais eficazes do que as clássicas, pois procuram que os homens se submetam de livre vontade. O seu propósito é motivar, activar, optimizar, e não obstar ou submeter. A sua eficácia particular deve-se ao facto de não agir proibindo ou subtraindo, mas consentindo e satisfazendo os desejos que previamente criou; em vez de tornar os homens submissos, pretende infantilizá-los e torná-los dependentes. Não lhes impõem qualquer forma de silêncio: pelo contrário, exige que partilhem, que participem, que comuniquem as suas opiniões, necessidades, desejos e preferências – ou seja, que contem as suas vidas até aos mínimos pormenores. Não nega ou submete a liberdade: explora-a. Procura a construção - orientada pelos engenheiros sociais - de consensos a que todos se quererão juntar.

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Este novo tipo de poder inteligentemente, lê e avalia os nossos pensamentos conscientes e inconscientes; aposta na organização e na optimização, de nós próprios, realizadas de modo voluntário; visa dominar agradando e gerando dependências e o seu objectivo é, não só explorar o tempo de trabalho, mas explorar a totalidade da pessoa, toda a sua atenção e toda a sua vida, criando uma sociedade onde não é preciso escravizar os corpos porque as almas foram escravizadas. As estruturas do poder moderno, com a sua indústria da consciência, visam, destruir a alma.

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 Ao contrário do que concluiu Marx, o capitalismo industrial não se transformou em comunismo, mas sim em neoliberalismo ou capitalismo financeiro, com os seus modos de produção pós industriais, imateriais.

O neoliberalismo, transformou os trabalhadores em empresários. Hoje, cada um de nós é um trabalhador que se explora a si próprio na sua própria empresa. Cada um de nós é senhor e escravo na mesma pessoa e a luta de classes transforma-se numa luta interna de cada um consigo próprio. O modo de produção presente é a solidão do empresário isolado, em confronto consigo próprio, explorador voluntário de si próprio.

O proletariado definia-se literalmente pela condição de ter os filhos como única posse. A sua auto produção limitava-se unicamente à reprodução. Hoje, pelo contrário, alastra a ilusão de que cada um, enquanto projecto livre de si mesmo, é capaz de uma auto-produção ilimitada. Hoje, todos continuamos, assim, sob a dominação de uma ditadura do capital. Acontece apenas, que o regime neoliberal, transformou a exploração alheia numa auto-exploração que afecta todas as classes, tornando impossível a revolução social assente na distinção entre exploradores e explorados. Através do isolamento do sujeito do rendimento, explorador de si próprio, nunca se chega a formar um nós político com capacidade de acção comum.

Aquele que fracassa na sociedade neoliberal do rendimento responsabiliza-se a si próprio e envergonha-se, em vez de pôr em questão a sociedade ou o sistema. É aqui que reside a inteligência característica do regime neoliberal. Não permite que surja resistência alguma frente ao sistema. No regime da exploração de outrem, pelo contrário, é possível que os explorados se solidarizem e se levantem unidos contra o explorador. No regime neoliberal da auto-exploração, cada um orienta a agressão  em direcção a si próprio. E, esta auto-agressão transforma o explorado, não em revolucionário, mas em depressivo.

A psicopolítica neoliberal descobre formas cada vez mais refinadas de exploração. Numerosos seminários e Workshops de management pessoal e de inteligência emocional, bem como jornadas de coaching empresarial e de liderança, prometem uma optimização pessoal e o aumento sem limites da eficácia. Todos somos controlados pela técnica de dominação neoliberal, cujo fim não é só explorar o tempo de trabalho, mas também a totalidade da pessoa, toda a sua atenção e até mesmo a sua própria vida.

O imperativo neoliberal da optimização pessoal serve unicamente o funcionamento perfeito no interior do sistema. Bloqueamentos, fraquezas e erros têm de ser eliminados terapeuticamente a fim de aumentar a eficácia do rendimento. Tudo se torna comparável e mensurável, tudo se submete à lógica do mercado. Nunca é a preocupação com a vida boa que impele à optimização pessoal, mas apenas as coacções sistémicas, a lógica do êxito mercantil quantificável.

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A técnica de poder do regime neoliberal não é proibitiva ou repressiva, mas prospectiva, permissiva e projectiva. O consumo não é reprimido, mas maximizado. Não se gera escassez mas abundância, ou até mesmo excesso de positividade. Somos encorajados a comunicar e a consumir. O princípio da negatividade, que é constitutivo do Estado  vigilante de Orwell, cede lugar ao princípio da positividade. As necessidades não são reprimidas mas estimuladas. Em vez de confissões extraídas por meio de tortura, tem lugar uma exposição voluntária. O smartphone substitui a câmara de tortura. O Big Brother tem uma aparência amável. A eficácia da sua vigilância  reside na sua amabilidade.

Os reclusos do pan-óptico benthaniano eram isolados com intuitos disciplinares e não se lhes permitia que falassem uns com os outros. Os residentes do pan-óptico digital, em contrapartida, comunicam intensamente uns com os outros e expôem-se por sua própria iniciativa. Participam activamente na construção do pan-óptico digital.

A sociedade de controlo digital do regime neoliberal procede a um uso intensivo da liberdade que só é possível graças a uma exibição e uma exposição própria, de carácter voluntário. O Big Brother digital trespassa o seu trabalho aos reclusos.  A transmissão dos dados não ocorre devido a coacção, mas por necessidade interior. Tal é a eficácia do pan-óptico digital.

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 Também a transparência é reclamada em nome da liberdade de comunicação. A transparência é, na realidade, um dispositivo neoliberal. Volta violentamente tudo para o exterior a fim de o transformar em informação. No actual modo de produção imaterial, mais informação e mais comunicação significam mais produtividade, aceleração e crescimento. A informação é uma positividade que pode circular sem contexto por ser desprovida de interioridade. Passa a ser possível acelerar, cada vez mais, a circulação de informação.

O segredo, a estranheza, a ponderação, o juízo ou a alteridade representam obstáculos para uma comunicação ilimitada. Daí que sejam desarticulados em nome da transparência. A comunicação acelera quando se nivela o terreno – ou seja, quando todas as barreiras, muros e abismos são eliminados. Também as pessoas são desinteriorizadas, uma vez que a interioridade obstaculiza e abranda a velocidade de comunicação. Trata-se de uma desinteriorização que não tem lugar de maneira violenta. Tem lugar de forma voluntária.

Uma consequência adicional do dispositivo da transparência é uma conformidade total. Reprimir desvios é um traço constitutivo da economia da transparência. A rede e a comunicação totais  têm já enquanto tais um efeito nivelador. Geram um efeito de conformidade, como se cada um vigiasse o outro, e isso anteriormente a qualquer vigilância e controlo por serviços secretos. Hoje, também a vigilância tem lugar sem vigilância. Como que por acção de moderadores invisíveis, a comunicação é nivelada e reduzida ao acordo geral, ao consenso. Esta vigilância primária, intrínseca, é muito mais problemática  do que a secundária, da qual se encarregavam os serviços secretos.

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O neoliberalismo transforma o cidadão em consumidor. A liberdade do cidadão cede ante a passividade do consumidor. O votante, enquanto consumidor, não tem interesse real pela política, pela configuração activa da comunidade. Não está disposto nem capacitado para a acção política comum. Limita-se a reagir de forma passiva à política, protestando e queixando-se, do mesmo modo que o consumidor perante as mercadorias e os serviços que lhe desagradam. Os políticos e os partidos também seguem esta lógica do consumo. Têm de fornecer. É assim que se degradam em fornecedores que têm de satisfazer os votantes enquanto consumidores ou clientes.

A transparência que se exige hoje dos políticos é tudo menos uma reivindicação política. Não se exige transparência perante os processos políticos de decisão, cada vez mais opacos, pelos quais nenhum consumidor se interessa. O imperativo da transparência serve sobretudo para expor os políticos, para os desmascarar, para os transformar em objecto de escândalo. Não se trata duma reivindicação de um cidadão com iniciativa, mas de um espectador passivo. A participação tem lugar sob a forma de reclamação e de queixa. A sociedade da transparência, habitada por espectadores e consumidores, funda uma democracia de espectadores.


Byung-Chul Han, Psicopolítica, 2014

 

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