“Tinha-se estabelecido um conveniente acordo entre os mitos e as religiões multitudinárias do Império: cada grupo teria liberdade para desenvolver o respectivo culto, prestando apenas uma espécie de floreado oficial de agradecimento ao imperador – que era aliás tolerante - lançando-lhe de vez em quando algum incenso sob o título oficial de Divus. Naturalmente que tal situação não levantava qualquer dificuldade; ou antes, só algum tempo depois o mundo se apercebeu que tinha havido uma ou outra dificuldade trivial. É que os membros de uma seita, ou talvez fosse uma sociedade secreta do oriente, tinham feito uma cena qualquer, ninguém percebeu bem porquê. O incidente repetiu-se uma ou duas vezes, e começou a suscitar uma irritação que não era proporcional ao respectivo significado. O problema não estava propriamente no que esses provincianos afirmavam; embora, o que eles afirmavam fosse, evidentemente, bastante bizarro. Diziam que Deus tinha morrido e que eles próprios o tinham visto morrer. Podia tratar-se de uma das muitas manias produzidas pelo desespero dos tempos, mas eles não se mostravam especialmente desesperados. Pelo contrário, mostravam-se estranhamente jubilosos, explicando que devido à morte de Deus, podiam agora comê-lo e beber o seu sangue. De acordo com outros relatos, Deus afinal não estava propriamente morto; num frenesi de imaginação, eles contavam que tinha havido uma fantástica procissão no funeral de Deus, durante a qual o sol se tinha ocultado no céu, mas que terminara com a omnipotência morta a ressurgir do túmulo e a ressuscitar como o sol. Não se tratava porém do tipo de história a que as pessoas prestassem especial atenção; naquele mundo, já se tinham ouvido histórias bem mais bizarras do que esta. O que impressionava era o tom daqueles loucos e o tipo de formação que apresentavam. Constituíam eles um grupo de bárbaros e escravos, de pobres e gente sem importância, mas tinham uma formação quase militar; andavam juntos e eram muito rigorosos na apreciação das pessoas e das doutrinas que faziam efectivamente parte daquele sistema; e o que diziam, ainda que o expressassem com suavidade, tinha a segurança do ferro. Um povo habituado a muitas mitologias e muitas moralidades não tinha capacidade para analisar este mistério, a não ser que fizesse a curiosa conjectura de que esta gente falava muito a sério. Todas as tentativas de os chamar à razão naquela questão tão simples da estátua do imperador pareciam ser dirigidas a surdos. Era como se um novo metal, um metal meteórico, tivesse caído na terra; era uma diferença de substância que se sentia ao toque. Aqueles que lhe tocavam os fundamentos tinham a impressão de ter tocado uma rocha.

Era com estranha rapidez, como mudam as coisas nos sonhos, que as proporções das coisas se alteravam na sua presença. Antes de a maioria das pessoas se aperceber do que se estava a passar, já esta mão-cheia de homens se tornava palpavelmente presente. Eram demasiadamente importantes para serem ignorados. Em seu redor, fazia-se um súbito silêncio; as pessoas passavam por eles em passo rígido. Assistimos, então, a uma cena inédita, em que o mundo se afasta destes homens e mulheres, que assim se apresentam no centro de um grande espaço onde se encontram rodeados por uma nuvem de testemunhas, por intermináveis socalcos de rostos que os olham com intensidade, porque estão a acontecer-lhes coisas estranhas. Foram inventadas novas torturas, para aplicar aos loucos que traziam a boa nova. Aquela sociedade, cansada e entristecida, parecia descobrir uma nova energia só para montar aquela primeira perseguição religiosa. Ainda ninguém sabe muito bem porque foi que o mundo perdeu a cabeça com e aquela gente que se encontrava no seu seio; eles, porém, deixaram-se estar, estranhamente quietos, contrariando a natureza, enquanto a arena e o mundo pareciam girar em seu redor. E, naquela hora de escuridão, brilhou sobre eles uma luz que nunca mais se extinguiu; aquele grupo ateou a si um fogo intenso, com uma fosforescência etérea, que iluminou o crepúsculo da história, minando todos os esforços destinados a confundi-lo com as névoas da mitologia e da teoria. E, aquela seta de fogo, aquele relâmpago pelo qual o mundo o atingiu, o isolou e o coroou, pelo qual os seus inimigos o tornaram mais ilustre e os seus críticos o tornaram mais inexplicável, é a auréola de ódio que sempre rodeia a Igreja de Deus.”

 

G.K. CHESTERTON, O Homem Eterno.

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