Parecia que a guerra entre os deuses e os demónios tinha acabado, e que os deuses estavam mortos. As águias perderam-se, as legiões estavam dispersas, e nada restou de Roma, a não ser a honra e a fria coragem do desespero.

Em todo o mundo, a única coisa que podia ainda ameaçar Cartago, era a própria Cartago. É que, um elemento preponderante em todos os estados comerciais bem sucedidos, continuava nela activo. Continuava a existir a robusta sensatez e a astúcia  dos homens habituados a gerir grandes empresas; continuavam a existir os conselhos dos melhores especialistas financeiros; continuava a existir a visão ampla e salutar dos homens de negócios, dos homens pragmáticos – e em todas estas realidades podiam os romanos depositar as suas esperanças.

À  medida que a guerra se ia aproximando  daquilo que parecia ser o seu fim trágico, foi crescendo gradualmente a vaga e estranha possibilidade de que, mesmo então, essas esperanças não fossem vãs.

Os homens de Cartago, positivos como eram, pensavam como pensam os homens de negócio: em termos de relações custo benefício; e perceberam claramente que Roma não estava moribunda, estava morta. A guerra tinha acabado, era inútil continuar a resistir; e, era-lhes inconcebível que alguém continuasse a resistir quando tal se revelava completamente inútil.

 Assim sendo, era necessário ter em consideração um conjunto de saudáveis princípios económicos. As guerras são travadas com dinheiro, e consequentemente custam dinheiro; talvez no fundo, os comerciantes cartagineses acabassem por achar que afinal a guerra era um pouco perversa, porque, vendo bem, custava dinheiro. Tinha, portanto, chegado o momento de pôr fim à guerra e dar início à economia. Era  preciso avançar para coisas  bem mais importantes - apesar de um cônsul qualquer ter feito uma derradeira sortida, matando Asdrúbal, irmão de Aníbal, e lançando a cabeça do homem, com fúria latina, para dentro do acampamento dos cartagineses. Esse género de acções desesperadas eram apenas mais uma prova  de que os latinos estavam convencidos de que a sua causa estava perdida e, nem um povo excitável  como os latinos podia ser tão louco, que se agarrasse para sempre a uma causa perdida.

Assim argumentavam os melhores especialistas em finanças, desprezando as cartas cheias de estranhos relatórios alarmistas. O preconceito sem sentido, essa maldição dos estados comerciais, levou-os a abandonar Aníbal, o grande guerreiro que Moloc lhes tinha concedido em vão.

O espírito comercial tem em si uma visão cósmica muito própria, um equívoco verdadeiramente mortal, que acabou por levar à destruição de Cartago: o poder púnico ruiu porque o materialismo alberga em si uma absurda indiferença para com o pensamento; não acreditando na alma, deixa de acreditar na inteligência. Sendo excessivamente pragmático para se deixar prender por valores morais, ignora aquilo a que qualquer soldado chama a moral de um exército.  Julga que,  quando os homens deixarem de combater, o dinheiro travará os combates.

Foi o que aconteceu aos mercadores púnicos:

 A sua religião era uma religião de desespero, mesmo quando a fortuna lhes sorria; por isso, eram absolutamente incapazes de compreender que os romanos tivessem esperança, mesmo contra toda a esperança.

 A sua civilização era uma civilização  da força e do medo; por isso não podiam compreender que  os homens fossem capazes de desprezar o medo, mesmo quando submetidos ao poder da força.

A sua filosofia tinha no centro uma enorme fadiga; por isso, eram incapazes de compreender aqueles que continuam a lutar,  mesmo quando estão cansados de combates.

 Numa palavra, eram incapazes de compreender a alma humana, eles que toda a sua vida se haviam inclinado sobre coisas sem sentido, como o dinheiro, o sucesso prático e a força bruta.

Acabaram, pois, por ser  subitamente surpreendidos pela notícia de que as brasas que tanto haviam desprezado tinham voltado a irromper em chamas.

 E, Cartago caiu como, antes dela, tinha caído satanás.

 

G. K. Chesterton, in “ O Homem Eterno”

 

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