A cena seguinte com Polus é uma obra-prima da arte platónica da comédia. No entanto, o tom sombrio, bem como as nossas experiências contemporâneas, recordam-nos constantemente que, numa sociedade decadente, o intelectual ridículo é um dos principais inimigos do espírito.
Polus está indignado. Como não consegue compreender a diferença entre a
honestidade existencial e a argumentação intelectual, não compreendeu que é ele
o motivo do embaraço do seu mestre, Gorgias e acredita que, a causa desse
embaraço, é Sócrates, com as suas discussões sobre definições.
Sócrates, de
início, formula as condições para entrar em discussão com Polus. A condição envolve
uma questão existencial: Polus terá de conter a prolixidade do discurso
(makrologia) a que se entregou anteriormente, porque o interminável fluxo de
clichés da sua retórica impossibilita a discussão.
A condição
imposta por Sócrates toca num problema, familiar a todos nós que já tivemos experiências
com intelectuais de direita ou de esquerda. A discussão é, de facto, impossível
com um homem que é intelectualmente desonesto, que usa mal as regras do jogo, que,
com uma loquacidade irrelevante, procura evitar ser apanhado e que obtém a
aparência de vitória esgotando o tempo que inevitavelmente estabelece um limite
para a discussão. A única defesa possível contra tais práticas é a recusa de
continuar a discutir; mas essa recusa é socialmente difícil porque parece
violar as regras da cortesia e da liberdade de expressão.
A revelação nítida do carácter de Polus surge, no entanto, quando Sócrates afirma que um homem que faz o mal não faz aquilo que verdadeiramente quer. Porque um homem só pode querer verdadeiramente o que é bom; se comete actos injustos, age contra o seu verdadeiro interesse. Se se entrega a actos maus na convicção errada de que estes servem o seu interesse revela, assim, que é impotente para fazer o que realmente quer.
Logo, todo o tirano é um impotente.
Quando se chega a esta aparente contradição, Polus não
consegue conter-se. Deixa de argumentar, sai da discussão e começa a zombar:
- Como se tu, Sócrates, não gostasses de ter o poder para
fazer na polis o que te parecesse
bom; como se não tivesses inveja quando vês alguém matar, saquear ou prender
pessoas a seu bel-prazer! (468e).
Com esta
zombaria, Polus expõe o seu próprio nível existencial. Ele, é o tipo de homem
que louva piamente o Estado de Direito e a Democracia, condena veementemente os
tiranos e o corruptos mas que, no entanto, os inveja fervorosamente e adoraria ser
ele próprio um tirano e um corrupto no poder.
Numa
sociedade decadente Polus é o representante do grande reservatório de cidadãos
comuns que paralisam todos os esforços de ordenar as coisas e contribuem em
massa para a ascensão dos tiranos e corruptos ao poder.
Além disso,
Pólus expõe uma causa subtil da paralisia política que ocorre inevitavelmente na
fase avançada da decomposição social. O seu escárnio para com Sócrates implica
que a sua vileza pessoal é a medida da humanidade que o rodeia. Ele está
firmemente convencido de que todos os homens se entregarão a actos vis se
tiverem a oportunidade de o fazer sem serem apanhados.
O seu ataque
contra Sócrates é motivado por uma indignação honesta contra um homem que ousa romper
a camaradagem dos canalhas e se pretende superior a eles.
E Polus pode
ser persistente porque sabe que as pessoas mais proeminentes da polis estão do seu lado. Ele continua a
apostar no mesmo argumento porque está sinceramente convencido que ninguém de boa-fé
pode manter proposições tão absurdas como as socráticas. Com algo parecido ao
desespero, acusa Sócrates de não querer concordar com ele, "porque
certamente deves pensar como eu" (471e).
As linhas de
combate estão agora mais claramente traçadas. Sócrates assegura a Polus que
vai ter, de facto, a maioria dos cidadãos do seu lado, e oferece uma lista de
nomes das melhores famílias atenienses, incluindo a de Péricles, que estarão
todos de acordo com ele.
Sócrates
ficará sozinho; mas recusar-se-á a ser privado do seu património, a verdade,
por falsas testemunhas (472a-b).
No entanto,
ainda não chegámos ao ponto do homicídio. Trata-se de uma discussão e Polus
aceitou as condições de Sócrates. A sua tentativa de derrotar Sócrates,
apelando ao consenso do que toda a gente pensa, falhou.
Os dois grandes golpes utilizados normalmente pela vulgaridade para silenciar o espírito - o argumento do "sou mais virtuoso do que tu" e o do "isso é o que tu pensas" - revelaram-se ineficazes.
Eric Voegelin, Order
and History, capítulo II, The Gorgias
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