O
MAIOR PERIGO, O ESTADO
(in
A Rebelião das Massas, Ortega e
Gasset)
Este é o
maior perigo que hoje ameaça a civilização: a estatização da vida, o intervencionismo do Estado, a absorção de
toda espontaneidade social pelo Estado; isto é, a anulação da espontaneidade
histórica, que sustenta, nutre e impele os destinos humanos. Quando a massa sente uma desventura, ou
simplesmente algum forte apetite, tem sempre a grande tentação de conseguir
tudo — sem esforço, sem luta, sem risco — pondo em funcionamento a portentosa
máquina do Estado. A massa diz a si mesma: "o Estado, sou eu", o que
é um perfeito erro. O Estado contemporâneo e a massa só coincidem no facto de serem ambos anónimos. O homem-massa
crê, com efeito, que ele próprio é o Estado, e tenderá cada vez mais a utilizá-lo,
sob qualquer pretexto, para esmagar toda a minoria criadora que o perturbe - na
política, nas ideias, na economia.
O resultado
desta tendência será fatal. A espontaneidade social será constantemente
violentada pela intervenção do Estado; nenhuma nova semente poderá frutificar.
A sociedade terá de viver para o Estado; o homem para a máquina do Governo. E
como, por fim, o Estado não é senão uma máquina cuja existência e manutenção
dependem da vitalidade circundante que a mantenha, o Estado, depois de sugar a
medula da sociedade, ficará héctico, esquelético, morto com essa morte
ferrugenta da máquina, muito mais cadavérica que a do organismo vivo.
Este foi o destino lamentável da civilização clássica.
Não há dúvida que o Estado imperial criado pelos Júlios e os Cláudios foi uma
máquina admirável, incomparavelmente superior como artefacto ao velho Estado
republicano das famílias patrícias. Mas, curiosa coincidência, assim que chegou
ao seu pleno desenvolvimento, logo começou a decair o corpo social. Já nos
tempos dos Antoninos (século II) o Estado dominava com uma letal supremacia
sobre a sociedade começando a escraviza-la de modo a que não pudesse viver senão
ao seu serviço. A vida toda se burocratizou. Que aconteceu? Produziu-se a
diminuição absoluta da vida — a todos os níveis: a riqueza diminuiu, a
natalidade diminuiu. Para subvencionar as suas próprias necessidades, sempre
crescentes, o Estado não tardou a implementar ainda uma maior burocratização da
existência humana. Os Severos, de origem africana, acabaram militarizando todo
o mundo conhecido. Em vão! A miséria aumentou, a sociedade estiolou, as
mulheres deixaram de dar à luz. Faltavam até soldados. Depois dos Severos, o
exército teve de ser recrutado no estrangeiro.
Viu-se bem, então, qual é o devir paradoxal e
trágico do estatismo: a sociedade, para viver melhor, cria, como um utensílio,
o Estado. Depois, o Estado domina a sociedade que tem de começar a viver para o
Estado. Mas o Estado é composto de homens recrutados naquela mesma sociedade. Com
o aumento da sua complexidade, a dada altura, os nacionais não bastam para o
sustentar e torna-se preciso recorrer a estrangeiros: primeiro, dálmatas,
depois, germanos. Com o tempo os estrangeiros tornaram-se donos do Estado tendo,
os restos da sociedade e do povo inicial, de viver como escravos de gente com a
qual não têm nada a ver.
A isso conduz o intervencionismo do Estado: o
povo converte-se em carne que alimenta a máquina do Estado.
O esqueleto come a carne que o rodeia.
O andaime
torna- se o proprietário da casa.
Comentários
Enviar um comentário