Materialismo e Transubstanciação
Um dos leitmotiv, da revolta dos primeiros
filósofos modernos contra a filosofia escolástica[1],
consubstanciou-se na substituição da concepção aristotélica hilemorfista[2]
da natureza das substancias físicas, por uma das várias concepções defendidas
pelo mecanicismo[3]
Acontece
que, quando bem estudada, esta mundivisão mecanicista defendida por Galileu,
Descartes e Newton, veio a revelar-se necessariamente incompatível com a Doutrina Cristã, sob diversos aspectos.
Tomemos o exemplo da doutrina cristã da Transubstanciação[4];
enquanto, esta, à luz do hilemorfismo, é perfeitamente aceitável fazendo todo o
sentido, se olhada pelo prisma da filosofia mecanicista transforma-se em pura irracionalidade.
Vejamos
porquê:
Se bem
atentarmos, o hilemorfismo está inteiramente de acordo com o senso comum quanto ao modo de distinguirmos,
entre as coisas da nossa experiencia diária, quais constituem substancias
distintas entre si, quais são partes diferentes da mesma substancia e quais não
são verdadeiras substancias mas agregados de várias substancias.
Por exemplo,
todos diríamos que uma pedra, uma arvore e um cão, constituem substancias distintas,
diferentes umas das outras; mas, pelo contrario, todos diríamos que o nariz do
cão e a sua perna dianteira direita são partes diferentes da mesma substancia
(o cão) e não diferentes substancias; e que uma pilha de pedras é um agregado de
várias substancias (as diferentes
pedras) e não uma substancia de pleno direito.
Ou, seja, o
mero senso comum, que advém da nossa percepção, através dos sentidos, das
coisas que nos rodeiam, nos diz que uma pedra, uma árvore ou um cão são coisas
ou objectos diferentes; que o nariz ou a
perna dum cão são partes duma mesma coisa ou objecto (o cão) e não coisas ou
objectos separados; e que uma pilha de pedras é um conjunto de coisas ou
objectos e não uma única coisa ou objecto.
Poder-se-ia
afirmar, sem erro, que o hilemorfismo e
o senso comum, pelo menos quanto ao aspecto referido, são concordantes.
Ora, a
mundivisão mecanicista, rejeitando o modelo hilemorfista e reduzindo os
objectos físicos, ou a simples agregados de partículas, ou a meras partes dum
todo maior, veio a contrariar frontalmente o mais elementar senso comum.
Para
Descartes e Espinosa existiria apenas uma substancia no universo, sendo os
diferentes objectos meras modificações dessa mesma substancia.
Segundo este
ponto de vista, uma pedra, uma árvore e um cão não constituiriam diferentes
substancias, mas seriam apenas diferentes aspectos duma mesma substancia.
Por seu
lado, a versão atomista ou corpuscular do mecanicismo, entende que
a verdadeira substancia são os átomos ou corpúsculos, sendo que, os objectos da
nossa experiencia, não passariam de agregados dessas supostas substancias – tal
como uma pilha de pedras não é uma substancia mas um conjunto de substancias. Sendo
assim, uma pedra, uma árvore, ou um cão não passariam de colecções de
partículas - as quais seriam as
verdadeiras substancias - não passando de
arranjos superficiais dessas entidades mais fundamentais.
Ora, segundo
a Doutrina da Transubstanciação ,
durante a Eucaristia, embora os
aspectos acidentais do pão e do vinho se mantenham inalterados, as respectivas
substancias[5] são
miraculosamente substituídas pela substancia de Cristo.
Se
adoptarmos a versão do mecanicismo, defendida por Descartes e Espinosa, segundo
a qual, todos os objectos da nossa experiencia são constituídos por uma mesma
substancia universal, a substancia constitutiva do pão e do vinho consagrados
na Eucaristia seria a mesma substancia constitutiva das
pedras, das árvores, dos cães, dos
gatos, da lua, do sol e de todas as coisas que vemos, ouvimos, saboreamos,
tocamos e cheiramos.
Mas, nesse
caso, quando se desse a Transubstanciação
, não seria apenas a substancia subjacente ao pão e ao vinho que seria substituída
pela substancia de Cristo mas a substancia subjacente a todas as coisas. Uma
vez ocorrida a Transubstanciação , essa
substancia subjacente a todas as coisas passaria a ser o Corpo e Sangue de
Cristo. Tudo, no mundo físico, seria transubstanciado.
Tudo no mundo físico teria de ser tratado com a mesma reverencia com que
tratamos a Eucaristia. Estaríamos perante uma estranha forma de panteísmo.
E,
bizarramente, a Transubstanciação, só
poderia ocorrer uma vez pois, uma vez ocorrida aquela única substancia
constitutiva de todas as coisas seria substituída, para sempre, pela substância
de Cristo.
Por outro
lado, segundo a vertente corpuscular ou atomista da filosofia mecanicista, o
pão e o vinho, tal como as pedras, as árvores, e os cães, não seriam
verdadeiras substancias mas apenas colecções acidentais de inumeráveis
substancias (os átomos). Nesse caso, estaríamos perante o problema de saber
qual a substancia substituída aquando da
Transubstanciação. Não poderão ser as substancias do pão e do
vinho pois, segundo este ponto de vista, estes nem chegam a ser verdadeiras substancias.
Mas se for transubstanciado cada um dos átomos constitutivos do pão e do vinho,
será impossível determinar quais deles fazem parte dos agregados – pão e vinho
– e quais não fazem, uma vez que a delimitação dum agregado é muito mais
problemática que a delimitação duma substancia (se uma pedra estiver a 2mm duma
pilha de pedras, faz parte da pilha ou não?)
E, se uma
partícula da Hóstia se separar da mesma: faz ainda parte do agregado ou não? Se
considerarmos a Hóstia como um substancia
segundo a concepção aristotélica, certamente que essa partícula é parte da
Hóstia. Mas se virmos a Hóstia como um agregado de partículas a resposta já
será mais problemática.
Segundo a
Teologia Católica, não é qualquer substância que pode ser consagrada na
Eucaristia, mas somente o pão e o vinho. Se o ponto de vista mecanicista fosse
correcto e o pão e o vinho não fossem verdadeiras substancias mas apenas agregados de partículas (átomos ou
grupúsculos), então, seriam estes a ser consagrados. Mas os átomos e
grupúsculos que constituem o pão e o vinho são essencialmente iguais aos que constituem
todas as outras coisas (tal como as pedras que constituem uma pilha de pedras
podem ser iguais às constituem uma parede) e, sendo assim, será difícil
perceber o que poderá existir de tão especial no pão e no vinho para que só
eles possam ser consagrados e não qualquer outra coisa física, uma vez que
todos não passam de vários agregados das mesmas substancias.
Segundo a
Lei Canónica, um católico só pode comungar uma vez por dia, ou, em condições especiais,
duas. Mas, a ser verdade a visão atomista das coisas físicas da filosofia
mecanicista, cada vez que comungasse estaria a receber milhões de hóstias
consagradas correspondentes a cada uma das partículas constitutivas daquilo a
que o senso comum entende por uma única Hóstia consagrada.
S. Tomás, afirmava
que “uma concepção errada da Criação
leva, necessariamente, a uma errada concepção de Deus”[6].
E, na verdade, como acabamos de ver, uma concepção errada da estrutura
constitutiva das substancias físicas que nos rodeiam, torna ininteligível e
racionalmente inaceitável, um dos mistérios
essenciais da Fé Cristã.
Um dos grandes problema que se deparam
à Igreja Católica, nos nossos dias, é o facto de as pessoas serem levadas,
desde a mais tenra infância e há já várias gerações, a acreditarem piamente -
por meio da escolaridade obrigatória, dos media,
da industria do espectáculo, da
narrativa oficial de todas as instituições - que o mundo é apenas constituído
por matéria, constituída por átomos, surgidos do nada e a caminho do nada, não
sendo, por isso, os homens, mais que robots
de carne e sangue, sem alma e condenados há extinção eterna.
Tais pessoas, dominadas por essa
mundividência claustrofóbica e mesquinha, não conseguem encontrar qualquer
sentido racional, para a visão Católica do mundo.
Até poderão julgar-se sinceramente
religiosas e crentes e irem à Missa
aos Domingos. Mas, a sua Alma, estará
de tal forma materializada e, por
assim dizer, empedernida que tudo não passará duma vontade superficial de ser bonzinho, de ser bom cidadão, solidário
e cumpridor das obrigações sociais. A sua religião não passará de mero
sentimentalismo, dum vago anseio a uma espiritualidade vaga - não será mais que
uma convenção contingente
No íntimo, estas pessoas, não poderão deixar de achar que coisas como a Incarnação e a Ressureição de Cristo, os milagres que realizou em vida e ao longo
da História, a Concepção Imaculada da
Santíssima Virgem, a Comunhão dos Santos
e o Mistério da Santíssima Trindade,
não passam de crendices medievais a que o homem moderno, esclarecido, e iluminado
pela verdade científica, não poderá
dar grande crédito.
Sem primeiro, com o auxílio da
Filosofia Escolástica, combater e expor como falsas, perversas e incompatíveis com
o senso comum, com a ordem
das coisas, e com a Ordem Divina, as assumpções que respaldam a moderna visão
materialista do mundo, a Igreja Católica não poderá pedir, aos seus fieis, mais
que uma fé cega e irracional, à maneira da que é exigida aos muçulmanos.
Porque, como
bem viu Wolfgang Smith, a ser verdade o que afirmam as ideologias
materialistas, a Fé Católica e a sua Sagrada
Liturgia não passariam de amargas ilusões.[7].
João Faria de Morais, a partir de um artigo de Edwarde Feser - ao primeiro dia
do mês de Novembro do ano da Graça de NSJC de 2019 (Dia de Todos os Santos).
[1] É a
escola de pensamento, com origem nos mosteiros cristãos, que concilia a Fé
Cristã com o pensamento de Aristóteles cujo exemplo maior foi a Summa Theologica de S. Tomás de Aquino.
[2] Hilemorfismo:
doutrina elaborada por Aristóteles e desenvolvida pela Escolástica, segundo a
qual todos os seres corpóreos são compostos por matéria e forma.
[3]
Mecanicismo: teoria filosófica segundo a qual todos os fenómenos no universo se
explicariam por causalidades mecânicas, sendo que o universo não seria mais que
um imenso mecanismo comparável ao dum
relógio.
[4] Transubstanciação:
transformação da substância do pão e vinho no Corpo e Sangue de N.S.J.C.
durante a Eucaristia.
[5] Substancia, forma substancial, ou
simplesmente, forma, significam o
conjunto de características que fazem um determinado objecto ser o que é - a sua essência;
por contraste com características acidentais
que não são determinantes para esse efeito. Por exemplo, uma bola de jogar,
para ser uma bola, tem de ser esférica, ter elasticidade, etc. Mas pode ser, ou
não ser, acidentalmente, vermelha ou de outra cor, não deixando, por esse facto, de ser ou deixar
de ser, uma bola.
[6] S. Tomás, Summa Contra Gentiles II. 3
[7] Wolfgang
Smith, The plague of scientistic belief.
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