nº 5 da série aborto
De volta à caverna de Platão
A narrativa padrão sobre o Iluminismo é a seguinte: como a religião se baseia numa fé cega, os fundadores do pensamento ocidental moderno procuraram libertar a ciência e a filosofia do seu abraço irracional, reduzir ou eliminar a sua influência na vida pública e reorientar, até a vida privada dos cidadãos, para a luta por um mundo melhor, em vez de gastarem tempo a prepararem-se para uma ilusória vida depois da morte.
Ora, isto é exactamente o contrário do que realmente
aconteceu. De facto, os modernos não rejeitaram a religião por se basear numa fé
cega; seria mais correcto dizer que acusaram falsamente a religião de se basear numa fé
cega para poderem justificar a sua rejeição e elaboraram uma nova concepção do
que deveria ser considerado "racional" na esperança de conseguirem manter essa acusação.
Mais
precisamente, o seu desejo de reorientar a vida humana para este mundo e de
reduzir a influência da religião, levou os primeiros pensadores modernos a
abandonarem as categorias filosóficas tradicionais e a redefinirem o método
científico, de modo a que a razão deixasse de poder dar à religião o apoio que
sempre lhe tinha conferido.
As bases para esta revolução foram
inadvertidamente lançadas por pensadores medievais como Ockham e pela Reforma
Protestante. Ora, os pressupostos filosóficos aí originados a que os pensadores
modernos vieram unanimemente a aderir, em particular, a hostilidade para com as
doutrinas metafísicas fundamentais da filosofia clássica em geral e do
aristotelismo em particular, tinham uma tendência inerente para minar a
argumentação filosófica tradicional a favor da existência de Deus, da imortalidade
da alma e da lei natural.
Na verdade, embora os fundamentos racionais da religião sejam óbvios e inegáveis quando interpretados em termos clássicos e, especialmente, aristotélico-tomistas, tornam-se altamente problemáticas quando olhados através da visão filosófica moderna.
E os modernos tiveram até a desfaçatez de insinuar que esta nova visão é a única existente, alegando que a ciência moderna de alguma forma "refutou" a metafísica aristotélica.
Esta falsidade transformou numa "descoberta" o que, na realidade, era apenas uma estipulação metodológica altamente
contingente, controversa e problemática, e tornou o que era e é uma disputa
entre visões metafísicas rivais do mundo numa
"guerra entre ciência e religião".
Como qualquer mentira muitas vezes repetida e em voz suficientemente alta acaba por parecer verdade, a convicção geral contemporânea sobre a religião é a de que sempre foi desprovida de um fundamento intelectual sério, ou pelo menos de qualquer fundamento que ainda seja viável.
Este mito baseia-se, pois, num mero truque de rectórica, apenas aceite devido a uma ignorância geral da história das ideias, mesmo entre
filósofos, cientistas e outros intelectuais, a maioria dos quais não sabe nada
sobre o que os pensadores clássicos e medievais realmente disseram e pensaram, baseando-se
em caricaturas que não têm qualquer fundamento em factos históricos.
Os custos
desta fraude de séculos foram enormes pulverizando completamente as
fundações intelectuais, não só da religião, mas de qualquer hipótese de existência dum sistema moral e até
da própria ciência (embora esta última pulverização passe muitas vezes
despercebida precisamente porque foi feita em nome da própria ciência); e conduziu a um
rebaixamento da concepção do ser humano cujas consequências mais brutais foram o
nacional-socialismo e o marxismo, mas que também é evidente, embora de uma
forma mais subtil e sedutora, no consumismo crasso do Ocidente liberal e nas
variedades de psicologia reducionista.
E, quer se prefira o reducionismo económico e darwinista com botas de cano alto (à la Estaline e Hitler) ou com fato e gravata ou camisolas de gola alta (à moda dos economistas, académicos e psicólogos evolucionistas), os seres humanos são, em ambos os casos, reduzidos a congéneres de forças mecânicas.
Como veremos, esta visão não só é repugnante e desumanizante, como é totalmente incoerente. E tem sido acompanhada, no Ocidente, por uma inversão quase completa do sistema de moralidade natural/tradicional, um sistema que, nos seus aspectos essenciais, a quase totalidade dos seres humanos jamais existentes sempre compreendeu em absoluto e tomou por óbvio.
Estes resultados tiveram de surgir lenta e
gradualmente, ao longo dos séculos, precisamente porque são radicalmente
contrários ao senso comum.
O século XX viu as implicações do iluminismo/secularismo moderno florescerem plenamente, através da ascensão de ideologias políticas totalitárias e da "Grande Perturbação" na moral (como lhe chamou Francis Fukuyama).
A prevalência do aborto e o reconhecimento
do "casamento entre pessoas do mesmo sexo" são exemplos deste
fenómeno combatido pelos crentes religiosos tradicionais, por razões que são
inteiramente racionais, do ponto de vista da visão do mundo da filosofia
clássica e da religião.
Uma dessas razões é o facto de estas práticas
constituírem ataques directos à família, tal como sempre foi tradicionalmente
entendida e, por conseguinte, àquela que é instituição social central e o mais
elevado fim não religioso da vida humana.
Mas, uma
razão ainda mais profunda, é o facto de essas práticas constituírem ataques
desferidos à própria possibilidade de existência da moral e da razão, de uma forma ainda
mais grave do que um simples roubo ou até homicídio
Tradicionalmente,
a sodomia tem sido classificada, juntamente com o assassínio, a opressão dos
pobres e a atribuição de um salário injusto ao trabalhador, como um dos quatro
pecados que "bradam ao céu por vingança".
Os liberais
e secularistas acham tudo isto uma loucura. Isso deve-se, em parte, à sua
tendência para reduzir a moralidade a uma mera resolução de conflitos entre diversas
preferências egoístas e, em parte, porque se esqueceram completamente do que
significa a existência de uma ordem natural e do papel insubstituível que essa
noção desempenha na compreensão e justificação da moral.
Ora, é sem
dúvida muito pior cometer um assassínio do que cometer um acto de sodomia. Mas
o assassínio é, na maior parte dos casos, essencialmente um meio horrivelmente
injusto de satisfazer desejos e impulsos que podem ser inócuos ou perfeitamente naturais:
raiva, ciúme, desejo de possuir algo, amor por um determinado homem ou
mulher, ou pela própria justiça.
A sodomia,
pelo contrário, decorre de um desejo positivamente antinatural - sendo que "antinatural", convém
sempre lembrar, deve ser entendido no sentido realista clássico (platónico,
aristotélico ou escolástico).
E o aborto, ao contrário de outras formas de
homicídio, acrescenta à injustiça desse crime algo ainda mais gravemente
antinatural e irracional, nomeadamente a vontade de destruir a sua própria
descendência.
É por esta razão que estas práticas têm sido tradicionalmente encaradas com tanto horror - não porque sejam, em si mesmas, as piores ofensas, mas porque, na sua própria anti naturalidade, constituem uma afronta aos fundamentos da moralidade e da racionalidade que nem mesmo um vulgar assassínio constitui.
Na verdade, se se deixar de reconhecer a
existência duma ordem natural (mais uma vez, no sentido realista clássico),
então deixa de existir qualquer base racional para a moralidade.
Por isso, qualquer
pessoa que seja conhecedora da mundivisão tradicional da filosofia clássica e cristã, não
pode deixar de considerar a civilização ocidental moderna - ou pelo menos
a sua "corrente dominante" liberal-progressista – uma asquerosa cloaca, pútrida e infecta, cheia de perversão e irracionalidade.
Houve uma altura em que até os liberais teriam concordado com este juízo. Se alguém dissesse a um William Gladstone ou até mesmo a um John F. Kennedy que o liberalismo do futuro seria definido pelo aborto a pedido e pelo "casamento entre pessoas do mesmo sexo", e que a vanguarda dessa ideologia estaria a tentar normalizar a pedofilia, a bestialidade e a necrofilia, eles tê-lo-iam achado louco. Certamente que, se os tivéssemos convencido de que este é o tipo de coisas a que os princípios liberais conduzem, teriam sido levados a repensá-los seriamente.
Mas já passámos o tempo
em que valia a pena usar argumentos baseados na exibição das consequências para
tentar fazer um liberal ou um secularista abandonarem a sua loucura.
Já nem vale a pena tentar a argumentação por reductio ad absurdum com esta gente,
porque eles estão dispostos a aderir com entusiasmo a qualquer loucura que
decorra das suas premissas e até ficarão agradecidos por lha termos sugerido.
A sua mente
e a sua sensibilidade moral estão de tal modo corrompidas que para eles é óbvio
que o preto é branco, que o alto é baixo, que a sodomia é casamento e que
estraçalhar dum bebé no ventre da mãe é compaixão.
Depois de uma subida de séculos em direcção à luz, começada pelos gregos antigos e culminada na filosofia de São Tomás de Aquino, o homem moderno iniciou uma queda que terminou com os secularistas contemporâneos perdidos outra vez nas entranhas da Caverna de Platão, tão cegos como os patéticos habitantes descritos na República e igualmente convencidos da sua bondade própria e certos da maldade daqueles que os tentam libertar das suas ilusões.
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