“Acontece, porém, que a mente humana corre perigo; mas, foi precisamente contra esse perigo que a autoridade religiosa sempre se constituiu; pois é absolutamente necessário que, contra ele, alguma barreira se erga; de outra forma é toda a raça humana que arrisca afundar-se.

O perigo consiste no facto do intelecto humano ter a liberdade de se destruir a si mesmo. Uma geração de pensadores pode acabar com o pensamento, ensinando à geração seguinte que o pensamento humano é totalmente desprovido de valor. E, isto, porque o acreditar-se na validade da razão, é uma questão de fé.

 É um acto de fé afirmar que os nossos pensamentos têm qualquer espécie de relação com a realidade que nos cerca e, até, que essa realidade é real e não uma criação da nossa mente.

Mais tarde ou mais cedo – como de facto aconteceu - qualquer céptico poderá perguntar ”porque motivo hão-de, a observação e a dedução, serem válidas? Porque motivo não há-de a lógica ser tão enganadora como a irracionalidade?”

Ora, este, é o tipo de pensamento que põe fim ao pensamento. E, é o único pensamento a que é absolutamente necessário pôr fim.

Esse é o mal definitivo a que sempre se opôs a autoridade religiosa, um mal que sempre se manifesta no termo de  épocas decadentes como a nossa.

Pondo-se em causa a validade do pensamento põem-se em causa todas as suas conclusões.

 Ora bem, foi contra esta ruína, que a Igreja Católica como um sistema militar se ergueu. Os credos e as cruzadas, as hierarquias e as perseguições, não foram organizadas – como afirmam os ignorantes – para suprimir a razão; pelo contrário, foram organizadas em prol da difícil defesa da razão. Por um instinto cego, os homens sabiam que, quando a natureza das coisas começasse a ser irreflectidamente questionada, também a própria razão seria posta em causa.

  A autoridade que os sacerdotes tinham para absolver, a autoridade que os Papas tinham para definir a autoridade, a própria autoridade que os inquisidores tinham para disciplinar – tudo isso mais não era do que defesas erigidas em torno duma autoridade central, de uma autoridade mais indemonstrável, mais sobrenatural do que todas elas - a autoridade que os homens tinham para pensar.

 Sabemos hoje que era assim; na medida em que a religião foi desaparecendo foi desaparecendo, com ela, a razão. Porque ambas gozam do mesmo género autoridade básica; ambas são métodos demonstrativos que não são passiveis de ser demonstrados. E, no processo de destruir a Autoridade Divina, aquilo que fizemos foi destruir a autoridade humana por meio da qual podíamos afirmar com segurança que dois mais dois é sempre igual a quatro. 

 Com um longo e eficaz puxão tirámos a mitra da cabeça do Pontífice; acontece que foi a nossa cabeça que veio atrás."

 

Ortodoxia (1908)

G.K.Chesterton

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