Os Branqueadores de Crimes
Lenine dizia que, quando se tira ao
adversário a vontade de lutar, já se venceu a guerra. Hoje, esta verdade ainda
é válida mas, controlar a opinião pública tornou-se bem mais decisivo do que
alcançar vitórias no campo militar. A regra leninista converteu-se na técnica
da “espiral do silêncio”: agora trata-se de extinguir, na alma do inimigo, não
só a sua disposição para a luta, mas também a sua vontade de argumentar em
defesa própria e o mero impulso de dizer umas tímidas palavrinhas contra o
agressor.
O modo de alcançar esse objectivo
implica o domínio de meios poderosos, mas é simples na sua essência: trata-se
de atacar o adversário por tantos lados, com tantos e diversos meios de
comunicação, com tamanha variedade de alegações contraditórias - com frequência
propositadamente absurdas e ridículas - de tal modo que ele, sentindo a
inviabilidade de um debate limpo, acabe por preferir recolher-se ao silêncio.
Nesse momento a vítima torna-se politicamente
defunta. O mal venceu mais uma batalha.
A técnica foi experimentada
pela primeira vez no século XVIII. Foi tão pesada a carga de aldrabices,
chacotas, lendas urbanas e arremedos de pesquisa histórico-filológica que se lançou
sobre a Igreja Católica que os padres e teólogos acabaram por achar que não
valia a pena defender uma instituição venerável e milenar contra alegações tão
baixas e maliciosas. Resultado: perderam a briga.
O contraste entre a virulência, a baixeza,
a ubiquidade da propaganda anticatólica e a míngua, a timidez dos discursos de
defesa ou contra-ataque, marcou a imagem da época, até hoje, com a fisionomia
triunfante dos iluministas e revolucionários. Pior ainda: recobriu-os com a
aura de uma superioridade intelectual que, de todo, não possuíam.
A Igreja continuou ensinando,
curando as almas, amparando os pobres, socorrendo os doentes, produzindo santos
e mártires, mas foi como se nada disso tivesse acontecido.
Para se ter uma ideia do poder entorpecente
da “espiral do silêncio”, basta notar que, durante aquele período, uma só
organização católica, a Companhia de Jesus, fez mais contribuições para a
ciência do que todos os seus detractores materialistas somados, mas foram estes
que entraram para a história — e lá estão, ainda hoje — como paladinos da razão
científica em luta contra o obscurantismo (se esta afirmação lhe parece
estranha ou — como se diz hoje — “polémica”, é porque continua a acreditar em
professores semianalfabetos e jornalistas semialfabetizados. Em vez disso,
deveria ler John W. O’Malley e Mordecai Feingold.).
Só quase um século depois desses
acontecimentos Alexis de Tocqueville descobriu por que a Igreja perdera uma
guerra que tinha tudo para vencer. Deve-se a ele a primeira formulação da
teoria da “espiral do silêncio”, que, numa extensa pesquisa sobre o
comportamento da opinião pública na Alemanha, Elizabeth Noëlle-Neumann veio,
mais tarde, a confirmar integralmente em The Spiral of Silence: Public Opinion,
Our Social Skin.
Calar-se perante um agressor
desonesto é uma actitude tão suicida como tentar rebater as suas acusações em
termos “elevados”, conferindo ao atacante uma dignidade que ele não tem. As
duas coisas atiram o agredido directamente para a voragem da “espiral do
silêncio” e são entendidas, pelo adversário, como uma confissão de derrota.
Não se pode parar um assalto à mão armada
recusando-se a reagir contra o assaltante ou fazendo-lhe ver, educadamente, que o
Código Penal proíbe o que está a fazer.
A única reacção eficaz contra a espiral do silêncio é quebrá-la — e, isso não se pode fazer sem quebrar, com ela, a imagem de respeitabilidade dos que a fabricaram.
Não é possível desmascarar
uma falsa respeitabilidade, respeitosamente!
É inútil, denunciar a malícia, a
trapaça, a mentira e o crime, sem ultrapassar as fronteiras do mero “debate de
ideias” educado e cordato! Quem mente e comete crimes não são as ideias: são pessoas.
Cristo, é verdade, mandou odiar o pecado e não o pecador. Mas referia-se ao sentimento, à motivação íntima, não à brandura ou dureza dos actos e das palavras expressas. Ele nunca disse que é possível reprimir o pecado sem magoar, contrariar e, nos casos mais obstinados, humilhar e castigar o pecador.
Quando expulsou os comerciantes do templo, chicoteou os “pecados” ou o corpo dos pecadores?
Quando chamava aos judeus “raça de víboras”, dirigia-se a noções abstractas, no ar, ou a ouvidos humanos que sentiam a dor da humilhação?
Quando disse que os molestadores de crianças deveriam
ser lançados ao mar com uma pedra ao pescoço, referia-se ao pescoço do pecado
ou ao do pecador?
Nada favorece mais o império do mal do que o medo de enveredar pelo “ataque pessoal” quando este é absolutamente necessário.
Aristóteles ensinava que não se pode debater com quem não reconhece — ou não segue — as regras da procura da verdade. Os que querem manter um “diálogo elevado” com mentirosos e criminosos tornam-se branqueadores dos seus crimes.
(A partir de vários textos de Olavo de Carvalho)
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