Não é coincidência fortuita que, nos países do
Primeiro Mundo, a vitória esmagadora das economias capitalistas tenha vindo a
par com a crescente intromissão do Estado na vida privada dos cidadãos, tanto
nas economias neoliberais como nas social-democráticas.
Nos EUA e no Reino Unido, por exemplo, a autoridade pública regulamenta hoje da
maneira mais directa e ostensiva todas as relações humanas, mesmo as mais
íntimas e informais, nada deixando para a livre decisão do indivíduo, da
família e das pequenas comunidades.
O poder
paternal, por exemplo, deixou de ser um direito natural inerente à condição
humana, para se tornar uma concessão do Estado, revogável à menor suspeita de
abuso.
A educação e a comunicação social — dois sectores
entregues ao império de intelectuais activistas que, um tanto
inconscientemente, são os mais dóceis colaboradores do Estado modernizante —
atacam por todos os meios as velhas relações comunitárias fundadas no costume,
na religião ou na natureza das coisas, para acelerar a sua substituição por
relações criadas artificialmente pela administração estatal ou pela dinâmica do
mercado.
A expansão do olhar fiscalizador do Estado (e da
intelligentzia) para dentro da esfera privada tem como uma de suas mais graves
consequências a redução da diferença entre o moral e o jurídico — diferença
que, resguardando da intromissão oficial áreas vitais do comportamento humano,
sempre foi uma das garantias básicas da liberdade civil.
O Estado torna-se, assim, cada vez mais o mediador
de todas as relações humanas, mesmo as mais espontâneas e informais — um galanteio,
um olhar, uma piada, a simples descortesia de acender um cigarro num ambiente fechado.
Uma prova de que a intromissão do Estado visa
menos a proteger as supostas vítimas de abusos do que a suprimir as velhas
formas de associação, é o facto de que as novas legislações de direitos dão sistemática
preferência às reivindicações que separam as pessoas sobre aquelas que as unem.
A protecção
oficial ao aborto, por exemplo, faz da mulher uma unidade autónoma, que decide
ter ou não ter filhos sem a menor necessidade de consulta ao marido. A
procriação deixa de ser uma decisão familiar, para se tornar um trato em
separado entre a mulher e o Estado: o divide ut regnes invade o quarto nupcial.
O Estado moderno utiliza-se das reivindicações de autonomia dos indivíduos — reivindicações particularmente fortes nos jovens, nas mulheres, nos discriminados, nos ressentidos de toda a sorte —, como de um isco para os prender na armadilha da pior das tiranias.
“Libertando” os homens de
seus vínculos com a família, a paróquia, o bairro, protegendo-os sob a imensa
rede de serviços públicos que os livra da necessidade de recorrer à ajuda de
parentes e amigos, oferecendo-lhes o engodo de uma garantia jurídica contra todos os
preconceitos, antipatias, sentimentos e até olhares dos seus semelhantes — uma
garantia jurídica contra a vida, em suma —, o Estado na verdade divide-os,
isola-os e enfraquece-os, cultivando susceptibilidades neuróticas que os
infantilizam, tornando-lhes impossível, por um lado, criar ligações verdadeiras
uns com os outros, e, por outro, sobreviver sem o amparo estatal e a
professional help de um exército de assistentes sociais.
Niveladas
todas as diferenças, cada ser humano torna-se uma unidade abstracta e amorfa, o
“cidadão”, nem homem nem mulher, nem criança nem adulto, nem jovem nem velho,
cuja soma compõe a massa atomística dos protegidos do Estado — tanto mais
inermes e impotentes quanto mais carregados de direitos e garantias.
Daí o fenómeno alarmante da adolescência
prolongada — hordas de cidadãos, biológica e legalmente adultos, devidamente
empregados e no gozo de seus direitos, mas incapazes de assumir qualquer
responsabilidade pessoal nas ligações mais íntimas; perpetuamente à espera de
que alguém faça algo por eles; cheios de autopiedade e indiferentes aos
sofrimentos alheios; sempre trocando de namoradas, de amigos, de terapeutas, de
planos e objectivos de vida, com a leviana desenvoltura de quem troca de
camisa.
Se a bête
noire visada por todas as campanhas de protecção dos direitos é sempre o macho
adulto heterossexual, isto não ocorre por casualidade nem por mera birra
feminista, mas por uma exigência intrínseca da dialéctica do poder: numa
sociedade onde todo cidadão pertencente a esse grupo é estigmatizado como um
virtual espancador de mulheres e sedutor de incautas, não espanta que ninguém
queira amadurecer para ingressar nele e que todos prefiram permanecer
adolescentes e, no mínimo, sexualmente indecisos — o que é uma condição sine
qua non para a dissolução dos caracteres na sopa entrópica da “cidadania”.
Evoluímos,
assim, para uma sociedade onde não haverá mais a diferença entre adultos e
crianças, pois todos serão menores de idade; onde já não haverá pais e filhos —
somente a multidão inumerável dos órfãos de todas as idades, reunidos num
imenso colégio interno sob a tutela do Estado protector, cada um com um luzente
crachá de “cidadão”.
E a
situação assim criada terá o dom da auto-multiplicação: após ter infantilizado
os cidadãos, o Estado alegará a deficiência de seu juízo moral para se meter
cada vez mais em todas as suas decisões privadas.
O Estado só foi protector da família enquanto teve
de atender à pressão de poderes sociais mais antigos, como a Igreja e os
remanescentes da aristocracia. Mal se livrou desses aliados incómodos, revelou
ser menos o protector da família que o protector do divórcio, do aborto e do
sexo livre.
E, isto, porque a família e todas as comunidades
tradicionais — religião, círculos de amizade, lideranças e lealdades
territoriais — são por natureza os mais fortes oponentes da autoridade estatal,
que diluem numa hierarquia de poderes sociais diferenciados e
numa complexa rede de associações informais. A sociedade moderna caminha
decisivamente para a destruição desses poderes intermediários e das associações
humanas que os sustentam, de modo a que o indivíduo fique sem conexões orgânicas
em seu redor, impotente e solitário no oceano do mercado livre, e ligado
directamente apenas ao Estado.
Os movimentos de direitos, chefiados como
geralmente são por pseudo-intelectuais de miolo mole, nunca se dão conta de que
as suas conquistas são obtidas à custa da inflação do poder estatal, do
definhamento das relações humanas, da extinção de todas as virtudes morais
básicas que tornam a vida digna de ser vivida.
A prova mais contundente é a proliferação da burocratização, da legislação, da regulamentação, da monotorização, de novas secções da polícia e de tribunais especializados, que se segue a cada nova proclamação de direitos: da mulher, do menor, da terceira idade, dos gays; em seguida virão as dos deficientes físicos, dos loucos, dos gordos, e talvez até dos esquisitões como o autor destas linhas.
Nenhuma
avaliação séria da relação custo-benefício deixará de mostrar que, em cada um
desses casos, a protecção que essas entidades recém- criadas darão aos novos
direitos é apenas uma possibilidade teórica, ao passo que a ampliação do poder
estatal é o resultado imediato, líquido e certo de sua mera existência.
Esta
existência aliás terá de ser financiada por todos aqueles que, jamais tendo
abusado de uma donzela, de um menor de idade ou de quem quer que seja, pagarão
para ver sua autoridade familiar contestada por funcionariozinhos semiletrados
e arrogantes, imbuídos da missão de proteger, em princípio, todas as crianças
contra todos os pais e todas as mulheres contra todos os homens.
E quando, por fim, se
verificar que todo esse crescimento canceroso da legislação e da burocracia não diminuiu
em nada as violências que lhe serviram de pretexto, isto só será usado como um novo
pretexto para verberar a irresponsabilidade moral dos cidadãos e justificar a
criação de mais e mais órgãos policiais, judiciais, assistenciais e assim por
diante.
O Estado
moderno promove a irresponsabilidade moral dos cidadãos para depois se alimentar dela.
Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições
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