A FEIRA DOS HORRORES

 

Lord Howard de Walden era um grande aristocrata inglês, neto ou bisneto do Howard de Walden, embaixador em Lisboa entre 1834 e 1846, que por cá fez e desfez governos, organizou golpes de Estado e serviu de árbitro em guerras civis.

Em 1906, participou nos Jogos Olímpicos de Atenas, como chefe da equipa inglesa de esgrima. Na equipa, cuja média de idades andava pelos quarenta e três anos, entravam também outro lord e um cavalheiro ornamentado com o título de sir.

A equipa saiu de Londres de comboio, com destino a Nápoles. Em Nápoles, depois de ver as vistas, embarcou no iate de Lord de Walten e em quatro dias estava em Atenas, onde ficou surpreendidíssima quando descobriu que os indígenas não percebiam palavra do grego de Eurípedes. Nas memórias de um dos seus membros (a propósito de Atenas, da Acrópole e dos Jogos) fala-se em Byron, Chateaubriand, Mounet-Sully, Homero e são Paulo; há citações em grego (clássico), latim, francês; longos comentários sobre técnicas antigas e modernas de lançar o disco e o dardo; e um pequeno ensaio sobre o Édipo Rei. Nem a erudição nem a idade impediram os ingleses de ganhar a medalha de prata em esgrima (florete, sabre e espada). Ou de se divertirem com a maratona, tanto mais que corria o boato de que os americanos se tinham treinado várias semanas.

O Barão de Coubertin ressuscitou os Jogos para pessoas como Howard de Walden …, mantendo à margem a vasta margem dos miseráveis, capazes de tudo por dinheiro, até de se profissionalizar no desporto.

A democratização que resultou das duas guerras massificou o desporto. Mas, no processo, ele mudou de natureza. A pequena burguesia e a classe média, importaram para o desporto os repulsivos valores do esforço e do êxito pessoal, uma ética eminentemente bárbara, como bárbaros tinham sido os verdadeiros Jogos Olímpicos.

O Barão de Coubertin desejava que competir fosse prazer bastante. Pelo menos a partir de Berlim, em 1936, ganhar foi o único propósito. Ganhar de qualquer maneira e a qualquer preço.  As monstruosas consequências disso são hoje patentes. Os atletas profissionais, “profissionalizam-se” para carreiras que acabam aos trinta anos e, com frequência, antes dos vinte. Imagine-se a sorte de uma daquelas infelizes crianças da ginástica feminina, amestrada desde que nasceu em habilidades de circo; imagine-se uma pobre miúda de trinta quilos transformada nelas, possuída por elas, reduzida a elas. Na adolescência, ganha uma medalha olímpica. Chegou ao ponto mais alto a que jamais chegará. Dali em diante, vai descer sempre para a mediocridade e o anonimato. Há direito de tratar assim uma pessoa, ainda por cima menor e, portanto, irresponsável? Não está o caso previsto no Código Penal?

Não está. Em Atenas, Howard de Walden e os amigos contemplaram o Parténon e pensaram em Homero, Byron e Chateaubriand. Em Seul, as ginastas e as nadadoras, os corredores e os halterofilistas não pensaram em coisa alguma, excepto nos dez pontos,  nos dez segundos, ou dez quilos, em que a vida para eles se converteu. Nada de mais brutal e mutilante. Domingos Castro chorando depois dos cinco mil metros e José Regalo pedindo desculpas ao “povo português”, apertavam o coração. Que horror se, de facto, tudo acabou por ser aquele vácuo.

Não admira que os países comunistas, alguns países africanos e os segregados do Ocidente democrático (a título de ilustração, contem-se os pretos, os árabes e os asiáticos nas equipas dos Estados Unidos, da Inglaterra e da França) tenham dominado os jogos de Seul. Para que uma pessoa exerça ou aceite que se exerça sobre si uma tão grande violência é preciso que não haja outra maneira de escapar da miséria ou outra via de promoção social, excepto aquela espécie de desporto.

 O nacionalismo, contemporâneo, (entretanto), contabiliza as medalhas com um zelo nojento, como se o seu número medisse a grandeza e a civilização de um país.

O desporto olímpico é um sacrifício humano aos valores mais sórdidos e perversos do mundo contemporâneo. É uma demonstração ritual de que a barbárie existe. Como se nós não soubéssemos.

Vasco Pulido Valente

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