DA ARTE DE BEM MORRER
Embora o que dissemos sobre a fé, esperança e caridade possa parecer suficiente para
viver e morrer bem, ocorre que, para atingir esses dois objectivos de modo
fácil e perfeito, o próprio Cristo nos legou três preceitos nos Evangelhos.
Assim, Ele diz em São Lucas:
Ficai de
prontidão, com os rins cingidos e nas vossas mãos as lâmpadas acesas. Sede como
homens que estão esperando que o seu senhor volte das bodas para lhe abrir a
porta logo que ele chegar e bater. Bem-aventurados os servos, a quem o senhor achar
vigiando, quando chegar. (Lc 12, 35-37).
Esta parábola pode ser entendida de duas maneiras:
como uma preparação para a vinda do Senhor no dia do Juízo Final, ou para a Sua
vinda na morte particular de cada um. Esta última explicação parece ser a mais adaptada
ao nosso assunto, como nos diz, por eemplo São Gregório (São Gregório Magno, Homiliae in evangelia), pois, a “ vinda
do Senhor”, tantas vezes repetida nos Evangelhos, significa que Ele virá “como
um ladrão”, ou seja, quando menos se espera.
Expliquemos, pois, esta parábola para dela
aprendermos que, a preparação para a morte, acima de todas as outras coisas,
nos é extremamente necessária.
Nosso Senhor ordenou a todos que observássemos
três coisas: primeiro que estivéssemos “com os rins cingidos”, ou seja, “com os
cintos amarrados”; segundo que estivéssemos “com as lâmpadas acesas”; e,
terceiro, que ficássemos “de prontidão”, esperando a vinda do Juiz, a qual é
tão oculta aos homens quanto a vinda do ladrão, do qual não se sabe nem como
nem quando virá.
Vejamos a explicação destas palavras: Ficai de prontidão, com o cinto ammarrado. O
significado literal dessas palavras é que devemos estar prontos para partirmos
e encontrarmos o Senhor quando a mrte nos chamar para o nosso julgamento
particular. A comparação do cingir dos rins é retirada de costumes de nações
orientais , onde se utilizavam roupas longas. Quando estavam prestes a partir
em uma jornada a pé, recolhiam suas vestes e cingiam-nas aos seus rins para que
não atrapalhassem e não lhes atrasassem o percurso. Por isso é dito do Arcanjo
Rafael, que veio como um guia para o jovem Tobias:
Tendo saído,
Tobias encontrou um jovem de belo aspecto, equipado como para uma viagem (Tb
5, 5).
De acordo com o mesmo costume dos orientais, São
Pedro escreve:
Cingi,
portanto, os rins do vosso espírito, sede sóbrios e colocai toda avosa
esperança na graça que vos será dada no dia em que Jesus Cristo aparecer (1Pd
1,13)
E São Paulo, na Epístola aos Efésios, diz:
Ficai
alerta, à cintura cingidos com a verdade (Ef 6,14).
Além disso, ter os “rins cingidos”, significa duas
coisas: primeiro a virtude da castidade; segundo, a prontidão para se encontrar
com o Senhor na hora do juízo, seja o juízo particualar, seja o juízo geral.
Sobre a primeira significação comentam os Santos Padres, São Basílio – na sua
explicação do décimo quinto capítulo do Livro do Profeta Isaías ( São Basílio, Enarratio in Isaiam Prophetam) – Santo
Agostinho – no seu livro sobre a Continência (Santo Agostinho, De Continentia) – e São Gregório, na décima
terceira Homilia sobre os Evangelhos (São Gregório Magno, Homiliae in evangelia). Se dentre as perturbações da alma a que
mais impede a prontidão é a concupiscência da carne, não há, portanto, virtude
que torne o homem mais pronto e ágil para seguir a Jesus Cristo do que a
castidade virginal e a mortificação dos apetites sensuais. Lemos no Apocalipse
que as virgens seguiam ao Cordeiro onde quer que fosse (Ap 14), e São Paulo,
exortando a esta virtude, diz:
O homem não
casado é solícito pelas coisas do Senhor e procura agradar-Lhe. O casado
preocupa-se com as coisas do mundo e procura agradar à sua mulher; e, assim,
está dividido (1Cor 7, 33).
Mas há ainda outra explicação, segundo a qual o
“cingir de rins” não se restringe apenas à continência, mas inclui a pronta
obediência a Cristo emtodas as coisas. Tal é a interpretação dada por São
Cipriano (São cipriano, Liber de Laude
Martyrii) no seu livro sobre a exaltação do martírio, o qual é seguido
pelos antigos comentadores de São Lucas. Segundo esta interpretação, quando o
Redentor nos manda cingir os rins , não fala somente do cíngulo da mortificação
e continência, mas da preparação de ânimo que devemos ter sempre para O receber
e Lhe prestar contas da nossa vida a qualquer momento, quando bater à nossa
porta e nos chamar para o juízo. Nesse instante presteremos contas das nossas
obras, pensamentos e palavras, de cada ideia e palavra vã que tenhamos
proferido. Quando a morte sobrevier subitamente, que farão agora aqueles que
estão totalmente imersos nos cuidados do mundo e que não pensaram porum só
instante sobre as contas que deveram prestar a Deus de todas as suas obras,
palavras, pensamentos, desejos e omissões? Seriam eles capazes de se encontrar
com Cristo com os seus rins cingidos? Ou estariam eles tão emaranhados nos seus
pecados e apetites sensuais que cairiam em desespero? Que dirão ao Juiz quando
Ele lhres disser: “ Desgraçados! Porque não escutastes o conselho que tantas
vezes vos admoestei dizendo:
“Buscai em primeiro
lugar o Reino de Deus e a sua Justiça, e todas estas coisas vos serão dadas por
acréscimo”? (Mt 6, 33). Porque
não atendeste àquelas palavras tantas vezes repetidas no Evangelho:
“Marta ,
Marta! Tu te preocupas e andas agitada com muitas coisas. No entanto, uma só é
necessária. Maria escolheu a melhor parte e essa não lhe será tirada” (Lc
10, 41-42). Se repreendi a solicitude de Marta que estava tão ansiosa para me
servir, como posso satisfazer-me com a vossa ansiedade em acumular riquezas supérfluas, obter honras perigosas,
satisfazer paixões criminosas e, nesse meio tempo, esquecer o Reino de Deus e a
Sua justiça, que é a coisa mais necessária de todas as coisas do mundo?”
Explicaremos agora outro dever do servo diligente
e fiel: ficai “com as lâmpadas acesas”. Para o servo fiel não basta estar com
os “rins cigidos”, de modo a ir livre e facilmente ao encontro do Senhor; uma
Lâmpada acesa também é necessária na noite em que espera o Senhor, para Lhe
mostrar o caminho quando retornar do banquete nupcial. A lâmpada acesasignifica
a Lei de Deus, a qual mostra o bom caminho: A
Tua palavra é luzpara os meus pés (Sl 118, 105); e: A Tua Lei é luz (Pr 6), diz Salomão nos Provérbios, porque ilumina
e mostra onde devemos pôr os pés e os passos que devemos dar para caminhar em
direcção ao Céu. Mas essa lâmpada não poderá iluminar e apontar o caminho se
for deixada num aposento ou dentro da casa, pois devemos tê-la sempre nas mãos,
para que nos possa mostrar o caminho certo. Muitos conhecem as leis divinas e
humanas e mesmo assim cometem muitos pecados e omitem muitas obras boas e
necessárias, porque não têm a lâmpada nas mãos, ou seja, o sei conhecimento da
Lei não se estende para as obras.
Quantos dos homens mais doutos não cometem pecados graves por não consultarem a
Lei de Deus ao agir, mas a sua própria ira, luxúria, ou outra paixão? Se o Rei
David, quando viu Betsabé nua, se tivesse lembrado do mandamento divino “não
cobiçarás a mulher do próximo”, não teria cometido um tão grave crime; mas como
se deixou levar pela beleza daquela mulher, esquecendo a Lei Divina, aquele
homem outrora tão justo e santo, acabou cometendo adultério. Portanto, devemos
sempre segurar a lâmpada da Lei, não escondida nos nossos aposentos, mas em
nossas mãos, a fim de obedecer às palavras do Espírito Santo, que nos ordena
meditar a Lei do Senhor dia e noite (Sl
1), de modo a que possamos dizer com o Profeta: Impusestes vossos preceitos para serem observados fielmente; oxalá se
firmem os meus passos na observância das vossas leis (Sl 118, 4). Aquele
que sempre mantém diante dos olhos a lâmpada da Lei, sempre estará pronto para
encontrar o seu Senhor quando Ele chegar.
O terceiro e último dever do servo fiel é
“vigiar”, estando incerto quanto ao momento da vinda do Senhor: Felizes os servos que o Senhor encontrar
acordados quando chegar (Lc 12, 36). Nosso Criador não quis que o homem
soubesse a hora da sua morte, para que não se entregasse aos vícios, deleites e
sensualidades durante a vidas, deixando a penitência para o momento que
antecede a morte. A divina providência, portanto, dispôs as coisas de modo a
que não haja nada mais incerto do que o momento da morte: alguns morrem no
ventre de suas mães, outros quando mal nascem, alguns na extrema velhice,
outros na flor da juventude, enquanto que muitos definham por muito tempo ou
morrem de repente, ou recuperam de uma doença severa e quase incurável; outros
são levemente afligidos, mas quando parecem livres da morte, a doença retorna e
leva-os. Para nos admoestar quanto a essa incerteza, nosso Senhor diz nos
Evangelhos:
Se vier na
segunda ou se vier na terceira vigília e os achar vigilantes, felizes serão
aqueles servos! Sabei, porém, isto: se o pai de família soubesse a que hora
viria o ladrão, vigiaria sem dúvida e não deixaria forçar a sua casa. Estai,
pois, preparados porque, à hora em que não cuidais, virá o Filho do Homem (Lc
12, 38-40)
Para que compreendamos qual a importância de
estarmos incertos do momento em que o Senhor virá para nos julgar, seja na
morte de cada um, seja no fim do mundo, a Sagrada Escritura repete
incessantemente a palavra ”vigiar”, assim como a comparação do “ladrão”, o qual
costuma vir quando menos é esperado. A palavra “vigiar” é repetida muitas vezes
no Evangelho de são Mateus, de São Marcos e de São Lucas. A comparação feita
com o “ladrão” também é comum não somente nos Evangelhos, mas também nas
Epístolas dos Apóstolos e no Apocalipse.
De tudo isto fica evidente o quão grande é a
negligência e a ignorância, para não dizer a cegueira e loucura da maior parte
dos homens que tantas vezes foram
avisados através das Sagradas Escrituras pelo Espírito da Verdade em pessoa – o
qual não pode enganar ou mentir jamais – da importância de se preparar para a
morte. Embora a preparação para a morte seja umassunto difícil e da máxima
importância, do qual depende a bem-aventurança ou a danação eterna, poucos são
os que despertam diante dessas palavras, ou mesmo desses trovões desferidos
pelo Espírito Santo.
Mas alguém pode perguntar: “ Que conselho daria
para nos ensinar a “vigiar” como se deve, para que velando nos preparemos para
uma boa morte?”. Nada me ocorre de mais útil para nos preparar para a morte
senão o exame de consciência feito
com a devida seriedade e realizado com frequência. Muitos católicos quando
anualmente se preparam para confessar os seus pecados, falham ao não examinar
de antemão as suas consciências. Contudo
quando caem doentes, de acordo com o decreto do Papa Pio V, o médico fica
proibido de os visitar uma segunda vez até que tenham examinado as suas
consciências e expiado os seus pecados por meio de uma Confissão humilde.
Portanto, dificilmente haverá católicos que, quando estiverem perto da morte,
não confessarão os seus pecados. Mas o que diremos daqueles que são arrebatados
por uma morte súbita? E daqueles que são afligidos pela loucura ou caem em
delírio antes da Confissão? E daqueles que, afligidos por uma doença grave, não
podem sequer pensar em seus pecados? Ou daqueles que caem em pecado enquanto
morrem ou morrem em pecado enquanto estão envolvidos em uma guerra injusta, em
um duelo ou são mortos no acto do adultério?
Para evitar prudente e religiosamente todos estes
inconvenientes, bem como mil outros semelhantes, não consigo pensar em nada
mais útil para aqueles que valorizam a sua própria salvação do que o exame
diligente das suas consciências duas vezes ao dia, de manhã e à noite, Devem
examinar o que fizeram durante a noite ou no dia precedente, o que disseram,
desejaram, pensaram, em quais pecados caíram; se descobriram um pecado mortal,
que não se demorem em buscar remédio da verdadeira contrição, com a resolução
de se aproximar do Sacramento da Confissão na primeira oportunidade que surgir. Peçam
a Deus a graça da contrição, meditem sobre a grandeza do vosso pecado, detestem
os vossos pecados do fundo dos vossos corações e examinem seriamente quem é o
pecador e quem é o ofendido: o homem, um verme, ofendeu a Deus todo-poderoso;
um mero escravo inútil ofendeu ao Senhor do Céu e da terra! Não popem então as
vossas lágrimas , nem deixem de bater nos vossos peitos; façam uma resolução
firme de nunca mais ofender a Deus, nunca mais irritar por vossas ofensas o
nosso bondoso pai. Se este exame for practicado diariamente pela manhã e à
noite, ou pelo menos uma vez por dia, dificilmente morreremos em pecado, estando
loucos ou em delírio. Portanto, disso resultará que, estando bem preparados
para a morte, nem a incerteza da morte nos causará dano, nem a felicidade da
vida eterna nos faltará.
São Roberto Belarmino, in A Arte de Bem Morrer
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