“Os homens imaginaram que o reconhecimento da divindade de Cristo os isentava da obrigação de levar a sério as suas palavras. Torceram certos textos do Evangelho de modo a tirar deles o sentido que queriam, enquanto conspiraram para passar em silêncio outros textos que não se prestam a tal tratamento. O preceito “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” é constantemente citado para sancionar uma ordem de coisas que dá a César tudo e a Deus nada. O ditado “O meu Reino não é deste mundo” está sempre a ser usado para justificar e confirmar o paganismo da nossa vida social e política, como se a sociedade cristã estivesse destinada a pertencer a este mundo e não ao Reino de Cristo. Por outro lado, nunca é citada a frase “Foi-me dado todo o poder no Céu e na Terra”. Os homens estão prontos a aceitar Cristo como Sacerdote sacrificador e Vítima expiatória; mas não querem Cristo Rei. A Sua dignidade real tem sido destituída por toda a espécie de despotismo pagão, e os povos cristãos têm tomado para si o grito da ralé judaica: “Não temos outro rei senão César!” Assim, a história testemunhou, e ainda está a testemunhar, o curioso fenómeno de uma sociedade que professa o cristianismo como a sua religião, mas permanece pagã não apenas na sua vida, mas na própria base dessa vida.

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A verdade fundamental e a ideia distintiva do cristianismo é a união perfeita entre o divino e o humano, realizada individualmente em Cristo, e que encontra a sua realização social na humanidade cristã, na qual o divino é representado pela Igreja centrada no Sumo Pontífice, e o humano pelo Estado. Esta relação íntima entre a Igreja e o Estado implica o primado da primeira, uma vez que o divino é anterior no tempo e superior no ser ao humano.

A heresia atacou a unidade perfeita do divino e do humano em Jesus Cristo precisamente para minar o vínculo vivo entre a Igreja e o Estado e conferir a este último uma independência absoluta. Assim, fica claro por que os imperadores da Segunda Roma, com a intenção de manter na cristandade o absolutismo do Estado pagão, foram tão parciais

de todas as heresias, que não eram mais do que múltiplas variações de um único tema: - Jesus Cristo não é o verdadeiro Filho de Deus, consubstancial ao Pai; Deus não se encarnou; a natureza e a humanidade permanecem separadas da divindade e não estão unidos a ela; e, por conseguinte, o Estado humano pode manter a sua independência e a supremacia intactas. Constâncio e Valente tinham, de facto, boas razões para apoiar o arianismo.

Vladimir Solovyev, Russia and the Universal Church


(Curiosidade: O Filósofo Vladimir Solovyev serviu de inspiração a Dostoiévsky para formar a personagem Aliócha karamazov, da sua novela Irmãos Karamazov.)

 

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