Humanismo e totalitarismo

É um facto reconhecido que a civilização ocidental moderna foi a primeira, em toda a história da humanidade, a “afastar Deus da equação” e a construir um sistema apenas subordinado a factores históricos materiais. 

Esse seu materialismo pode, por isso, ser visto, ainda que talvez só parcialmente, como o principal traço diferenciador desta civilização. Exactamente por ter eliminado os factores supra-humanos e posto a tónica no papel exclusivo da humanidade na criação do novo padrão de universalidade, esse traço recebeu o nome de “humanismo.”

Entre as consequências desta aposta no meramente humano, existe uma que tem passado despercebida. É que o humanismo, para se manter, teve de substituir o dogmatismo autoritário das antigas tradições por uma nova forma de tirania muito mais abrangente e invasiva que, por não deixar nada da conduta humana, mesmo nos aspectos mais íntimos e secretos, escapar ao seu controlo, se denominou, com muita propriedade, “totalitarismo”.

As relações íntimas e recíprocas entre o humanismo e totalitarismo são o tabu em que se assenta, a cultura moderna.

 Dois factores contribuem para manter esse tabu. Por um lado, o prestígio, quase mágico, que a palavra “humanismo” adquiriu: pois, embora originariamente designasse apenas uma aposta na autonomia da humanidade em relação a tudo considerado para-além do-humano, o termo humanismo, tardiamente, veio a ser usado para designar, na retórica e na propaganda política, a defesa dos seres humanos contra as tiranías desumanas, obscurecendo assim aos olhos das massas o facto, historicamente inegável, de que nenhuma das grandes tiranías modernas assentou na devoção ao supra-humano, mas, pelo contrário, todas elas nasceram da adesão professa ao humanismo materialista.

 Por outro lado, toda a história moderna tem sido constituída por um confronto entre duas facções humanistas: os adeptos duma doutrina universalmente válida (v.g. marxistas e nacional socialistas) e os adeptos do diálogo em aberto (v.g. liberais e social-democratas).

Como os primeiros representam a opção totalitária ostensiva, a vantagem dos segundos e a hegemonia de que desfrutam actualmente, dão a impressão de que o ciclo moderno se foi desenrolando em direcção à vitória sobre o totalitarismo e de que portanto, este, não seria intrínseco à própria natureza do humanismo mas apenas um “resíduo” de épocas passadas.

E, assim, uma invenção tipicamente moderna, o totalitarismo, é atribuída a épocas que o desconheceram por completo, que nem poderiam sequer imaginá-lo, nem, muito menos, dispunham de meios para o implementar; enquanto a época moderna que lhe deu origem passa por o combater. 

Embora só a modernidade tenha conhecido regimes totalitários, a sua imagem aparece limpa, ao passo que épocas que não o conheceram são sacrificadas como bodes expiatórios no altar da boa consciência moderna. 

 O totalitarismo não é a sombra de épocas passadas que obscurece as luzes da civilização humanista: é, a sombra da própria civilização humanista, que obscurece injustamente a nossa visão das épocas passadas.

A queda do muro de Berlim não inaugurou no mundo a anunciada era de liberdade, mas sim um estado crónico de intervenção burocrática e policial exactamente porque totalitarismo faz parte do ADN de qualquer versão do humanismo.

E, não será que a vertente liberal do humanismo, não passe de algo mais do que pura ideologia com que o humanismo encobre sua face totalitária.

Olavo de Carvalho


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