Ario propôs
uma versão do cristianismo que se orientava, de forma mais ou menos vaga, no
sentido daquilo a que hoje chamamos unitarismo (Deus uno, não trino), embora
não fosse exactamente a mesma coisa, porque conferia a Cristo uma posição
curiosamente intermédia entre o divino e o humano.
Mas, a
questão é que, na altura, muitos consideraram tratar-se de uma versão mais
razoável e menos fanática do cristianismo; entre estes contavam-se muitos
membros da classe culta, que protagonizavam uma espécie de reacção contra a
primeira aventura da conversão cristã.
Os arianos
eram uma espécie de moderados e uma espécie dos actuais modernistas. Tinham
chegado à conclusão de que, após as primeiras questiúnculas, esta era a forma
definitiva de religião racionalizada, na qual a civilização acabaria por
assentar.
Tratava-se duma forma religiosa que era aceite
pelo próprio Caeser, e que veio a ser a ortodoxia oficial; generais, príncipes,
homens de futuro, as pessoas que interessavam, apoiavam-na fortemente.
No entanto, o
mais importante foi a sua sequela. Assim como o modernista passa sem
dificuldade do modernismo para o agnosticismo total, assim também o maior
imperador ariano acabou por abandonar Ario e regressar a Apolo.
Se houve de facto um cristianismo oficial –
como afirmam os liberais – que começou com Constantino, ele terminou com
Juliano.
Mas houve
uma coisa que não terminou. Naquela hora da história, erguendo-se provocatório
acima do tumulto, Atanásio opôs-se ao mundo.
Se há
assunto que os iluminados e os liberais têm o costume de ridicularizar e de
apresentar como terrível exemplo do dogma estéril e do combate sectário
desprovido de sentido, é a questão atanasiana da co-eternidade do Filho divino.
Por outro lado, se há coisa que esses mesmos liberais nos apresentam com
frequência como exemplo de um cristianismo puro e simples não perturbado por
disputas doutrinais, é a frase “Deus é Amor”. E, contudo, as duas afirmações
são quase idênticas; pelo menos a última é um disparate sem a primeira. O
“dogma estéril” é apenas uma maneira de afirmar o belo sentimento.
Porque, se
há um ser desprovido de começo, que existe antes de todas as coisas, o que amaria
Ele quando nada havia para amar? Se Ele tivesse permanecido solitário ao longo
dessa impensável eternidade, que sentido tem afirmar que Ele é amor? A única
justificação para tal mistério é a concepção mística de que, na Sua natureza,
havia algo análogo à auto-expressão, algo que gera e contempla o que foi
gerado. Sem essa ideia, torna-se completamente ilógico complicar a essência
radical da divindade com uma ideia como o amor.
Se os modernistas querem realmente uma
religião simples, apenas de amor, só podem encontrá-la no credo atanasiano. A
verdade é que a essência do verdadeiro cristianismo, o desafio da caridade e da
simplicidade de Belém e do dia de Natal, nunca soou de forma tão arrebatadora,
nem tão certeira, como no desafio lançado por Atanásio às frias cedências dos
arianos. Era ele indubitavelmente que estava de facto a lutar por um Deus de
Amor, contra um Deus sem cor, de remoto controlo cósmico, que era o Deus dos
estóicos e dos gnósticos. Era ele que estava indubitavelmente a lutar pela
Sagrada Criança, contra a divindade cinzenta dos fariseus e saduceus. Ele
estava a lutar por aquele equilíbrio de bela independência e intimidade,
existente na própria Trindade da natureza divina, que atrai o nosso coração
para a Trindade da Sagrada Família. O dogma de Atanásio – e espero que esta
frase seja correctamente entendida – transforma o próprio Deus numa Sagrada
Família.
Que este
dogma puramente cristão se tenha rebelado contra o Império, que tenha refundado
a Igreja apesar do Império, é só por si uma prova de que havia algo positivo e
único em funcionamento no mundo, para além duma fé meramente oficial – fosse
ela qual fosse – que o império decidisse adoptar.
Este poder
destruiu por completo a fé oficial que o império de facto adoptou. Seguiu o seu
próprio caminho como tem continuado sempre a seguir o seu próprio caminho.
Alguns anos
mais tarde, a Igreja viu-se forçada a defender a mesma Trindade, que mais não é
do que o lado lógico do amor, contra outra aparição da divindade isolada e
simplificada, desta vez na religião do islão – uma reacção bárbara contra a mui
humana complexidade tipicamente cristã: a ideia do equilíbrio da divindade,
paralela ao equilíbrio da família, que confere a este credo uma espécie de
sanidade que é alma da civilização.
G.K.
Chesterton
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