Curiosamente,
Aristóteles já havia, com dois milénios de antecedência, advertido contra os
riscos de uma aplicação indiscriminada do método matemático à filosofia da
natureza.
Aristóteles
julgava, com efeito, existir na natureza um resíduo irracional e incognoscível,
inerente à constituição da própria matéria —, no que a evolução posterior da
ciência não cessou de lhe dar razão, embora a contragosto e sem o admitir em
público; e ele concluía que o método demonstrativo-matemático só podia dar
conta de realidades imateriais (de puras relações lógico-ideais, diríamos hoje
em linguagem husserliana), e não da realidade sensível. Ao rejeitar
aparentemente Aristóteles, a ciência renascentista deu-lhe razão no fundo, na
medida em que, para poder matematizar a física, teve de se afastar cada vez
mais da realidade sensível até a substituir totalmente por modelos matemáticos.
A
substituição do mundo da experiência por modelos matemáticos trouxe consigo a
mania da uniformização, da simplificação geométrica que, para sustentar a
ilusão do mecanismo perfeito, necessitava excluir, apagar ou pelo menos
esconder tudo o que fosse diferente, divergente, irregular ou estranho.
O espírito matemático geométrico marca o início idade moderna em todas as suas dimensões: da filosofia científica à moral
religiosa, da jardinagem à medicina. Nos jardins de Versalhes, a natureza
multiforme é substituída pela regularidade de um tabuleiro de xadrez, ao mesmo
tempo que se espalham por toda a Europa os hospícios e prisões, destinados a
excluir da visão humana os comportamentos desviantes que arriscassem macular a
perfeição matemática da nova ordem.
Data dessa
época — e não da Idade Média, como diz a calúnia consagrada em mito
historiográfico — o gosto europeu de queimar bruxas e supostas bruxas. É só
acompanhar a ascensão do número de processos e condenações, desde a fundação do
Santo Ofício em 1229 até os grandes autos de-fé dos séculos XVI e XVII, para
verificar que aquilo que era um punhado de brasas na Idade Média veio a
tornar-se, sob o sopro dos novos tempos, um incêndio devastador em plena Idade
Moderna. A liquidação das bruxas deriva muito menos da pura e simples defesa da
ortodoxia do que de uma nova maneira — geométrica e purista — de compreender a
ortodoxia, onde já não há mais lugar para a incerteza nem para o pecador.
Sim, porque
as novas ideias exerceram tanta influência dentro da Igreja Católica como fora dela. Dos fundadores do racionalismo, por exemplo, os principais —
Descartes, Malebranche, Arnauld & Nicole — todos eram católicos fervorosos
empenhados em fundar numa construção racional perfeita a conversão dos
descrentes. O introdutor da nova astronomia na Península Ibérica foi o chefe
local da Inquisição, Juan de Zuñiga. Um dos primeiros humanistas da Renascença,
Enéas Sílvio Piccolomini, tornou-se nada menos que Papa. Os exemplos poderiam
multiplicar-se ad infinitum. É preciso ser cego para não ver no seio da própria Contra-Reforma (que uma simplificação burra toma unilateralmente como uma reacção
conservadora) o influxo das novas concepções racionalistas.
A Companhia de Jesus afirma-se desde o início como um utopismo reformista, que vai varrer do mundo o pecado e instaurar a ordem social racional. A racionalização do dogma, que se anuncia no concílio de Trento, completa-se alguns séculos mais tarde na Teologia Moral de Sto. Afonso de Ligório. Aí, pela primeira vez na história do Cristianismo, dezoito séculos após a vinda do Salvador, os cristãos recebem o formulário completo dos seus deveres e direitos, segundo uma hierarquia lógica rigorosa que não admite excepções, dúvidas ou nuances de qualquer espécie: a moral cristaliza-se num sistema axiomático, a salvação torna-se um problema de lógica jurídica, resolvido por métodos matemáticos.
Mas, se uma perfeita discriminação e catalogação dos deveres morais fosse absolutamente necessária à salvação, como teria podido esperar tantos séculos para vir à luz? Que teria sido de tantas gerações de cristãos dos séculos anteriores, vivendo na incerteza de um mero empirismo bem-intencionado? A resposta é: a racionalização do código moral não é necessária à salvação, mas é necessária à economia interna da mentalidade racionalista (não vai nisto o menor intuito de depreciar a obra de Sto. Afonso, criação absolutamente genial pela qual os filósofos demonstram um desinteresse verdadeiramente patológico. Apenas digo que ela atende menos a uma necessidade intrínseca da fé cristã do que a uma necessidade extrínseca imposta pelas condições da época).
Depois
disso, o espírito de formalismo legalista vai tomando posse da religião cristã
em tal medida, que hordas de almas oprimidas sob o peso dos regulamentos
encontrarão mais tarde alívio no protestantismo romântico. A redução, pelo protestantismo, da
religião a um mero sentimento interior, jamais teria encontrado eco se não fosse
precedida pela redução da religião a um juridicismo racionalista.
Por toda
parte, a substituição da realidade sensível pelos seus equivalentes racionais e
matemáticos foi sendo imposta; assim, como um sucedâneo mundano da ascese
espiritual. A fuga do mundo real para o dos esquemas ideais matemáticos tem, de
facto, alguma coisa de ascético, no sentido de um esforço de oposição à
natureza. Mas é uma ascese puramente cerebral, sem verdadeiro sentido moral,
espiritual ou religioso. Nela está a raiz da perversão moderna que atribui à
ciência natural a tarefa de guiar espiritualmente a humanidade, em substituição
à espiritualidade religiosa. O equívoco funda-se numa visão estereotipada — e
bem materialista — do ascetismo religioso como mero empobrecimento sensorial. A
matematização da natureza é empobrecimento sensorial, apenas sem qualquer ganho
espiritual. A falta do ganho espiritual é de seguida compensada pela riqueza
das aplicações técnicas advindas da ciência, o que aumenta ainda mais, aos
olhos da multidão, o prestígio sacerdotal da casta dos cientistas. O processo
iniciado por Nicolau de Cusa encontrará sua culminação quatro séculos depois
com Augusto Comte, que fará explicitamente da ciência natural uma religião, e
da casta científica um clero.
Olavo de Carvalho, in O Jardim d as Aflições
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