Carta de Santa Catarina de Siena a Beatriz della
Scala, senhora bela, orgulhosa, ávida de riquezas e esposa de Bernabó Visconti
tirano de Milão, em resposta a outra que ela lhe enviara.
Em nome de Jesus Cristo crucificado e da amável
Maria ….
Estou convencida de que, se vós tiverdes a virtude
da caridade, será impossível que o vosso marido não lhe sinta o calor. Deus
deseja que sejais duas pessoas num só espírito, num só anseio e desejo santo.
Vós me perguntais: “Se eu não tiver amor e se sem ele nada puder fazer, de que
modo o encontrarei?”. Respondo dizendo que se adquire o amor amando! Quem
deseja ser amado deve antes amar, deve querer amar. Munida de tal desejo, a
pessoa aplicará o seu pensamento para achar o lugar onde o amor está e qual o
modo de o encontrar. Como o realizar? Reconhecendo o próprio nada. Consciente
de que por si mesma nada é, a pessoa convence-se de ter recebido de Deus a
existência e todos os demais favores, isto é, a graça e os bens espirituais e
materiais. Sem o “ser”, nenhum outro favor poderíamos receber. Tudo o que a
pessoa tem e descobre em si é dom da inestimável bondade do Criador. Ao
compreender isso, a alma eleva-se e vê crescer em si o amor; mas não o amor por
si mesma ou pelos amores do mundo, que despreza. Eu compreendo bem! É condição
do amor que, sentindo-se amada, a criatura humana, imediatamente ame. Ama,
preferindo morrer a ofender o objecto amado. O sentimento de ser amado nutre na
alma a chama do amor. O homem compreende que ficou sendo o solo e o rochedo,
onde foi fincado o estandarte da Cruz. Vós sabeis que não foi a terra nem a
rocha que mantiveram a Cruz em pé; e que não foram os cravos nem o madeiro que
retiveram o Verbo, Filho de Deus, mas o amor. Foi o amor que Deus tem por nós
que constituiu o rochedo e os pregos que fixaram Cristo no madeiro.
Tal é a maneira de encontrar o amor! Sabemos agora
onde ele está. Mas, como devemos amá-lo, reverenda e querida irmã? Jesus Cristo
é a norma e o caminho. Não existe outra estrada. E o caminho que Ele ensinou, a
estrada que devemos trilhar para chegar à luz e receber a vida da graça, está
na aceitação dos sofrimentos, humilhações, escárnios, maus-tratos, ofensas e
perseguições. Com tais coisas, assemelhmo-nos a Cristo crucificado. O Cordeiro
imulado desprezou as riquezas e os poderes deste mundo. Sendo Deus e homem,
sendo a norma e o caminho, não desprezou a lei, mas observou-a. Jesus foi
humilde e manso. Jamais se ouviu um grito seu de revolta. Cristo abriu-se em
plenitude ao amor. Apaixonado pela nossa salvação, Jesus não pensou em si, mas
na Glória do Pai e na salvação dos homens. Não recusou a dor. Até a procurou.
Como é impressionante ver o bondoso Jesus, que governa e sustenta o mundo
inteiro, vivendo Ele mesmo em grande necessidade. E nisto ninguém jamais o
igualou. Tão pobre foi que, ao nascer, Maria nem possuía um cueiro para O
envolver. E ao morrer estava nu, para vestir a humanidade cobrindo-lhe a nudez
(espiritial). De facto, o pecado desnudara o homem, despojando-o da veste da
graça. Cristo desfaz-se da vida e põe-na sobre nós.
Quem descobre o amor na orientação de Cristo,
envergonha-se de querer segui-lo por outro caminho que não seja o da Cruz. Já
não procurará prazeres, posições sociais, ostentação. Preferirá levar uma vida
de peregrino e viandante, até que ela chegue ao termo. Qual bom caminhante, por
nenhuma prosperidade ou dificuldade retardará sua marcha, mas prosseguirá
vigorosamente com o amor e o afecto direccionados para o termo da caminhada que
espera alcançar. Oh! Minha boníssima irmã no doce Cristo Jesus! Quero que
caminheis assim. Quero que não olheis para a alta posição que ocupais, nem para
grandes riquezas e satisfações. Nem para dificuldades e tribulações que possam
surgir. Não vos retenha o prazer, não vos retenha a dor. Mas correi por tal
caminho com o coração viril, alegrando-vos em praticar a virtude e em tolerar
os sofrimentos, como Cristo nos ensinou. Usai as coisas do mundo conforme as
necessidades da natureza , não por desordenado apego. Desagradaria a Deus, se
amásseis as realidades inferiores a vós; seria perda de dignidade pessoal. A
alma nivela-se às coisas que ama. Se amo o pecado, que é negação, reduzo-me ao
nada. A maior vileza ninguém poderia descer. O pecado consiste no amar aquilo
que Deus odeia, e no odiar aquilo que Deus ama. Erra quem ama as realidades
transitórias do mundo e a si mesmo com amor desregrado, pois Deus detesta tal
coisa e dela fez justiça, descontando sobre o corpo de Cristo. Jesus foi a
bigorna em que o Pai consertou as nossas maldades. Como é grande a miséria humana.
Bem sabe o homem que Deus o criou à sua imagem e semelhança; que foi
restabelecido em graça, a qual perdera pelo pecado; que no sangue de Cristo
recuperou a imagem da divindade. Apesar disso, com muita cegueira, despreza a
dilecção e o amor com que Deus o engrandeceu e põe-se a amar coisas contrárias
a Deus; põe seu amor bem distante do Senhor; ama as criaturas, ama a si mesmo,
deixando Deus de lado. Sem nenhuma dúvida, as posições sociais, os prazeres e
todas as realidades humanas não são condenáveis em si mesmas. Mas é condenável
o amor que o homem lhes dedica, desprezando o mandamento de Deus.
Mas quando o amor e a afeição se superam e se
fixam em Cristo crucificado, o homem atinge a sua maior dignidade, pois
torna-se uma só coisa com o Criador. De facto, pode haver algo mais sublime que
estar unido a Deus, plenitude do bem? E
ninguém pode atribuir a si mesmo a realização dessa união, mas somente ao amor.
Compara-se a uma escrava que se torna esposa de um rei, vindo a ser alguém
importante, porque unida a ele, e rainha. Tal mudança acontece, não por suas
forças, escrava que era, mas pela dignidade do imperador. Irmã caríssima no
doce Cristo Jesus! Pensai que por semelhante maneira a alma enamorada de Deus, de
escrava e serva redimida pelo sangue do Filho de Deus, é elevada a uma
dignidade sublime; já não mais é chamada de escrava, mas de rainha e esposa do
eterno rei. Em plena concordância com a palavra de Jesus: “Servir a Deus é
reinar” (São Bernardo de Claraval e São Pedro Damião), Deus retira do homem a
sua servidão e torna-o livre.
Essa prefeita união com Deus é mais sublime que a
dignidade da criação, pois o amor e as virtudes a aperfeiçoam. Apessoa é
despojada do velho homem (cf. Ef 4,22.24) e revestida do homem novo em Jesus
Cristo. A sua alma torna-se apta a colher a graça, pela qual saboreia Deus
nesta vida. Então entrará na Paz , no perfeito repouso e na quietude, e seus
anseios serão todos satisfeitos. Durante esta vida não alcançamos a paz
(total). O motivo é o seguinte. É porque neste mundo não chegamos à união com a
essência divina. Durante a caminhadsa ea peregrinação desta vida, apenas temos
o desejo de seguir o recto caminho e a sede de atingir o termo, o fim. Esse
desejo faz-nos trilhar a estrada de Jesus, como ficou dito antes. Quem não amar
o seu fim, que é Deus, jamais conhecerá o caminho.
Quero, então, que aumente o desejo de seguir por
tal caminho, que vos conduzirá ao fim. Crede! Não é um caminho escuro,
tenebroso, cheio de espinhos. Pelo contrário, ilumina-o a verdadeira luz, o sangue
de Cristo, luz verdadeira. Por ele vai a alma, sem encontrar espinheiros. É uma
estrada perfumada, florida, com muitos frutos. E quem segue tal suave estrada
caminha feliz. Prefere morrer a abandoná-la. Por certo o caminhante verá
espinhos, que são as numerosas tribulações, os enganos do demónio e a soberba
do mundo. Mas não se ocupa disso. Faz como o jardineiro que colhe a rosa
perfumada e deixa os espinhos. Assim a alma colhe a flor perfumada da perfeita
paciência e deixa para trás as tribulações e angústias do mundo enquanto fixa o
olhar no Cordeiro, que caminha à frente de todos.
Correi, pois, minha irmã; corramos todos nós,
fieis cristãos, ao perfume desse sangue, inflamados e consumidos pela divina
caridade. Seremos uma só coisa com Deus. Comportemo-nos como o bêbado, que não
pensa em si mesmo, mas apenas no vinho que já bebeu e lhe resta beber.
Inebriai-vos no sangue de Cristo crucificado. Tendo-o diante de vós, para não
morrer de sede. Nem bebais pouco, mas inebriai-vos até perder os sentidos. Não
vos ameis por vós mesma, mas por causa de Deus. Nem ameis a Deus por vossa
causa, para vossa utilidade. Amai a Deus por causa de Deus, por ser ele
abondade infinita, digno de ser amado. Será um amor perfeito, não um amor
interesseiro. Pensai somente em Cristo crucificado, pensai no vinho do perfeito
amor que bebestes e vos foi dado e revelado já antes da criação do mundo, antes
que existísseis. Se Deus não vos amasse, não vos teria criado. Em seu
pensamento ele vos amou e vos deu a
vida. Disso nascerão vossos pensamentos sobre o amor-caridade. Exactamente!
Pensareis na bebida do amor, esperando e desejando possuir e saborear a suprema
e eterna beleza de Deus.
Vimos assim onde está a fonte do amor, onde
procurá-lo, como covém beber dele. Peço-vos, por amor de Cristo crucificado,
que não sejais negligente. Esforçai-vos por chegar atal fonte, pela estrada
acima indicada.Se o fizerdes, realizareis o desejo e avontade divina a vosso
respeito, pois Deus apenas apenas quer a vossa santificação(1TS 4,3). Realizareis
também o anseio desta mísera misrável, cheia de pecados e maldades, sedenta e
desejosa da vossa salvação. E desejosa,
por meio de vós, da salvação do vosso marido. Quero que sejais o instrumento
para o conduzir à prática da virtude, ao caminho da verdade. Quando puderdes,
convidai-o e suplicai para que seja um autêntico filho e servo de Cristo
crucificado, obidiente ao santo Padre, e não mais um rebelde.
Irmãos amantíssimos tende uma só vontade e um só
espírito! Não espereis o tempo, porque o tempo não vos espera! Vede, vede como
o olhar de Deus está sobre vós, e desse
olhar ninguém pode esconder-se. Ele é o Deus bondoso. Não precisa de vós. Mas
nos amou antes que existíssemos. Sem
merecimento, pela graça deu a si mesmo.
Não sejais ingrata a tão grande benefício. Com
reconhecimento, correspondei à graça e clemência do Espírito Santo. Procurai
nutrir e educar os vossos filhos no temor de Deus. todavia, não cuideis apenas
dos seus corpos, mas também da salvação das suas almas. Recordai-vos de que
Deus vos pedirá contas no último dia. Nada mais acrescento. Permanecei no santo
e doce amor de Deus. Perdoai a minha ignorância, se muito vos ofendi por
palavras. Pela sede e amor que tenho da vossa salvação, preferiria mais fazer
algo do que falar. Esteve comigo o vosso fiel servo, a mim enviado.
Transmitiu-me a vossa mensagem, que recebi com gratidão.
Jesus doce, Jesus amor.
Comentários
Enviar um comentário