Lição de teologia

Olavo de Carvalho

 

 

Jornal da Tarde, 2 de março de 2000

 

Um amigo meu, cristão devoto e estudioso, preparou uma requintada tradução dos Comentários de Ricardo de S. Vítor ao Apocalipse. Teólogos e filósofos, Ricardo e seu confrade Hugo, ambos da abadia de S. Vítor, em França, escocês o primeiro, saxão o segundo, são daqueles pensadores para os quais o qualificativo de “génios” é uma ninharia. Não há génio pessoal que explique os seus lampejos de pura sabedoria celeste. Os dois escreveram pouco. Mas, esse pouco, está entre as jóias supremas do tesouro espiritual da Igreja e da Humanidade. A tradução foi enviada a uma editora católica e daí repassada a um teólogo para apreciação. Resposta do teólogo:

 

Esta tradução tem a sua utilidade e importância como livro documentário para fins de pesquisa académica… Mas, como livro pastoral para o povo simples de hoje, infelizmente perdeu o seu valor… É produto da mentalidade do século XII…

 

E, continua no mesmo tom, recomendando, em vez de Ricardo de S. Vítor, a obra Como Ler o Apocalipse: Resistir e Denunciar, escrita por um tal Sr. José Bortolini.

Não li essa obra, mas, pelo título, actualidade não lhe deve faltar, já que a palavra “denunciar” faz vibrar a corda mais sensível dos corações mediáticos, apelando àquilo que a militância do escândalo considera ser o primeiro e mais alto dever moral do homem.

 

 

Mas, aquele parágrafo do teólogo é cheio de ensinamentos, dos quais, até onde alcançam as minhas luzes, pude apreender os seguintes:

 

1) A teologia católica moderna, em vez de se desenvolver por acumulação, somando as descobertas de hoje às dos séculos passados como fazem todas as demais teologias – muçulmana, judaica, vedantina ou budista –, evolui por substituição, colocando o moderno no lugar do antigo, exactamente como se faz na moda do pronto a vestir ou nos catálogos das gravadoras de música rock .

2) O catolicismo moderno também se distingue das demais religiões porque, enquanto estas dão maior credibilidade às interpretações mais próximas da fonte originária da revelação, aquele, inspirado pelo espírito do progresso, acha que aprofunda tanto mais a compreensão da mensagem de Jesus Cristo quanto mais se afasta d’Ele no tempo e mais se esquece do que os santos disseram d’Ele no século XII - isto para não falar do XI, do X e de outros ainda mais antigos.

 

3) Por força talvez do avanço tecnológico, os habitantes das grandes cidades de hoje tornaram-se mais “simples” do que os lavradores, vaqueiros, artesãos e fiandeiras do século XII, todos eles sofisticados e eruditíssimos leitores de Ricardo de S. Vítor.

 

4)Para o modernismo católico, as visões espirituais dos sábios, dos santos e profetas reflectem menos a luz da eternidade do que as limitações mentais da sua época histórica, sendo tão datáveis e perecíveis quanto as cotações da bolsa ou… os pareceres dos teólogos de aluguer. Por força desse implacável desgaste entrópico, as palavras dos próprios apóstolos, remotas de XII séculos em relação às de Ricardo de S. Vítor, empalidecem,

 

ainda mais do que estas, perante a majestosa actualidade evangélica do sr. Bortolini.

 

Não é maravilhoso que a moderna exegese católica da Bíblia possa ser tão refractária à acção desgastante do tempo e, no entanto, estar-se sempre a elevar para aqueles patamares mais altos de compreensão que, até ao momento, culminam na pessoa do Sr. Bortolini? Ó santíssima evolução! proclamaria, em êxtase, o pe. Teilhard.

 Joãozinho e Maria, atrasados pagãozinhos, precisaram deixar sinais no chão para se orientar na floresta. Os católicos modernistas foram abençoados com o dom de tanto mais saber onde estão, quanto mais se esquecem do caminho percorrido.

Não me perguntem como isso é possível. É um novo mistério da fé, criado pela moderna teologia, para substituir aqueles que existiam nos tempos bárbaros de Ricardo de S. Vítor.

Convém denomina-lo com a devida unção, “mistério da historicidade”, fazendo a festa da sua comemoração coincidir, no calendário litúrgico, com o aniversário natalício de S. António Gramsci, padroeiro desse género de coisas.

 

O que não é mistério de maneira alguma é que uma Igreja que se rebaixa a esse ponto diante do espírito mundano, chegando a desprezar os ensinamentos de seus mestres porque não estão a par da última versão dos Pokemons , corre o risco de terminar como aquela prostituta velha do Livro de Ezequiel , que, já não encontrando clientes que lhe paguem, tem de lhes dar dinheiro para que a possuam.


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