A Doutrina Católica sobre o Suicídio
O suicídio, para além de ser um
pecado, é o pecado. É o mal definitivo
e absoluto; é a recusa em interessar-se pela existência; é a recusa em fazer um
juramento de lealdade à vida. Quem mata um homem, mata um homem. Quem se mata a
si próprio, mata todos os homens; tanto quanto lhe é possível, elimina por
completo o mundo. É um acto pior (simbolicamente falando) do que qualquer
violação, do que qualquer atentado à bomba. Porque é um acto que destrói todos
os edifícios e insulta todas as mulheres. O ladrão fica satisfeito quando deita
as mãos aos diamantes; mas o suicida não fica satisfeito – e esse é o seu
crime. O ladrão presta homenagem às coisas que rouba, ainda que insulte o
proprietário dessas coisas. Mas o suicida insulta tudo que existe à superfície
da terra, pelo facto de nem sequer o querer roubar. Não existe criatura no
cosmos, por minúscula que seja para quem a morte dele não seja um esgar de
desprezo. Quando um homem se enforca, numa árvore, é estranho que as folhas
dessa árvore não caiam todas, de fúria, que os pássaros não levantem voo de
raiva; é que todos eles foram pessoalmente insultados.
Claro que pode haver desculpas
emocionais, sempre patéticas, para esse acto. Também há, muitas vezes,
desculpas para a violação, e há quase sempre desculpas para um atentado à
bomba. Mas, se procedermos a uma clarificação de ideias e a uma discussão
inteligente das coisas, a verdade é que é perfeitamente compreensível que um
suicida não seja sepultado junto das outras pessoas. É que o crime deste homem
é diferente dos outros crimes; porque é um crime que torna impossível os
próprios crimes.
Recentemente um livre-pensador concebeu a ideia peregrina de que um suicida mais não seria do que um mártir. A falácia é manifesta. Como é óbvio, um suicida é o contrário de um mártir. Um mártir é uma pessoa que ama de tal maneira uma coisa que está fora dele, que se esquece da própria vida. Um suicida é uma pessoa que ama tão pouco tudo que está fora dele, que quer pôr fim a tudo. O primeiro quer que algo comece, o segundo quer que tudo acabe. Por outras palavras, o mártir é uma pessoa nobre, exactamente porque – por muito que renuncie ao mundo ou que considere a humanidade execrável – confessa a sua ligação definitiva á vida, pondo o coração fora de si mesmo; o mártir morre para que algo viva. O suicida é uma pessoa ignóbil, porque não tem esta ligação com o ser: o suicida é um mero destruidor; espiritualmente falando, destrói o universo inteiro.
Daí, a
aparente contradição de o cristianismo se mostrar tão inexoravelmente severo
com o suicida enquanto encoraja vivamente o martírio.
A atitude cristã relativamente ao mártir e ao suicida não é, certamente, aquela que a moral moderna afirma que é. Não se trata duma questão de grau; não se trata de traçar algures uma linha de separação, de tal maneira que aquele que se matasse com exaltação calhasse de um lado da linha, e aquele que se matasse com desespero calhasse do outro lado. A tese cristã não é evidentemente que o suicida tenha levado o martírio longe de mais. O ponto de vista cristão é o de furiosa aprovação de um dos actos e de furiosa reprovação do outro; estes dois actos – que parecem assemelhar-se tanto entre si – situam-se em extremos opostos, um no céu, o outro no inferno.
E
tanto assim é que, um renunciava á própria vida e era considerada uma pessoa
tão boa que os seus ossos conseguiam sarar cidades inteiras devastadas pela
peste, e o outro renunciava à vida e era considerado uma pessoa tão má que até os seus ossos tinham de ser
ostracizados para não contaminarem os dos seus irmãos.
Qualidade alguma, perturba tanto os
cérebros dos materialistas e lhes baralha tanto as definições, como a coragem. Porque,
a coragem é quase uma contradição nos seus próprios termos; consiste num forte
desejo de viver que assume a forma duma disposição para morrer - sendo este aparente
paradoxo a sua própria essência. Assim, o “o que perder a sua vida há-de
salvá-la” evangélico, não é apenas uma frase mística dirigida a santos e
heróis; é, também um conselho prosaico, dirigido a soldados e alpinistas. Um
soldado que se encontre rodeado de inimigos terá de combinar um forte desejo de
viver, com uma estranha indiferença pela morte, para conseguir romper por entre
eles; não pode, apenas, ficar agarrado à vida, como um cobarde; nem pode ficar,
somente, à espera da morte como um suicída. Tem de procurar defender a própria
vida com um espírito de furiosa indiferença relativamente à morte.
O materialismo é incapaz de expressar,
sequer, este enigma, para ele insolúvel. Mas o cristianismo assinalou-lhe os
limites nas terríveis sepulturas do suicida e do herói, mostrando a diferença
que existe entre aquele que morre para viver e aquele que morre para morrer -
afirmando assim que a coragem cristã é um desdém pela morte, que nada tem a ver
com a coragem oriental, que é, apenas, um desdém pela vida.
G.K.Chesterton. Ortodoxia (1908)
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