Technê
Tanto
a ideologia comunista como a ideologia liberal têm a pretensão de mudar a
realidade para melhor; ambas querem, no jargão contemporâneo, ser projectos de modernização. Acreditam que
o mundo, tal como está, é intolerável e deve
ser profundamente alterado, substituindo-se tudo que é antigo por algo de novo.
Os dois sistemas intervêm fortemente no tecido social, justificando tal
intrusão com a intenção de melhorar o status
quo, “modernizando-o”.
A
palavra “modernização” tem uma óbvia conexão com a palavra “tecnologia”: ambas apontam
para um desenvolvimento constante e ambas vêm o mundo como algo que deve ser
melhorado através da engenharia, da técnica, duma constante inovação, como se
tratasse duma máquina a ser constantemente aperfeiçoada com novos dispositivos
e optimizada com novas invenções.
A palavra “tecnologia” provem, como é sabido, do grego, technê que, segundo os antigos, tinha tal poder que podia transformar os homens em deuses. Foi Prometeu que ofereceu a technê à raça humana, habilitando-a, não só a sobreviver, como a melhorar exponencialmente as suas condições de vida.
Os
antigos, sabiam, no entanto, que este maravilhoso presente tem um lado negro: o
seu miraculoso potencial criador, quase divino, comporta o risco de induzir o
homem ao pecado da hubris (arrogância,
sobranceria.)
A
humanidade moderna, no entanto, esquecendo esse lado negro, fez de Prometeu o
seu herói preferido considerando a technê a melhor das dádivas e acreditando que será veículo dum progresso infinito.
O conceito de modernização traz também consigo uma ideia de corte com o passado e de início de algo de novo pois que, embora em sentido estrito aluda a um processo gradual e infindável – nada estando para sempre modernizado, tudo tem constantemente de ser modernizado – na sua significação mais profunda, anuncia uma era completamente nova, nascida quando os seu fundadores decidiram rejeitar tudo que os precedera e recomeçar tudo do princípio.
Os arautos da modernidade –Maquiavel, Descartes,
Hobbes, Hume, Bacon, et caterva – viam-se, a si próprios, como pioneiros do novo voltando corajosamente as costas ao
passado. Pelas épocas que os tinham precedido, sentiam apenas desprezo, como o
que se tem por algo que é simultaneamente tolo e nocivo e que, embora possa ter
alguma nobreza e charme, deve inelutavelmente desaparecer.
Modernitas significa, portanto, saltar uma
fronteira, atravessar o Rubicão, cortar o cordão umbilical, crescer e deixar a
infância para traz, dar um salto em frente. Significa também experimentar algo de
refrescante e revigorante nas relações
humanas e instituições sociais e políticas: maior liberdade, abertura e leveza
de vida.
E,
embora num mundo modernizado a tecnologia seja cada vez mais intricada e as
instituições cada vez mais complexas, diz-se, paradoxalmente, pretender fazer voltar
a vida humana ao elementar, ao simples e ao natural. As pessoas procuram
desembaraçar-se de espartilhos, máscaras, posturas e costumes tidos por desnecessários;
querem ser jovens, optimistas, simples, directas e livres como um adolescente.
Procuram afastar qualquer sentimento de
culpa, metafísico ou religioso, assim como as barreiras morais, psicológicas e
racionais que dele derivavam. Uma vez esbatidas as antigas obrigações o homem
moderno pretende agir cada vez mais por iniciativa própria, com um sentimento
crescente de orgulhosa independência e soberania individual.
Se
olharmos, o comunismo e a democracia-liberal, por este ponto de vista,
apercebemo-nos que ambos são alimentados por esta ideia de modernização. Em
ambos, o culto da tecnologia leva a que a engenharia social seja aceite
como método preferencial para reformar a
sociedade, alterar o comportamento e o pensamento humano e resolver todos os
problemas sociais.
A sociedade e o mundo em geral, são vistos como algo que deve ser sujeito a um contínuo processo de construção e reconstrução; esta obsessão levou ao extremo ridículo de, no sistema soviético, alterarem os cursos dos rios da Sibéria e, no ocidente, à criação de modelos familiares alternativos.
A intensão, em ambos os casos,
é melhorar a natureza que, para ambos os
sistemas, não passa dum substracto a ser moldado segundo a forma pretendida
pela ideologia em voga.
Curiosamente,
a componente ambientalista, comum a ambas as ideologias, convive bem, nos dois
regimes, com esta propensão para actuar duma
forma perigosamente tecnológica, sobre a natureza, a sociedade e, até, a natureza
humana, propondo solucionar os problemas ambientais através de… sempre mais
tecnologia.
Ambos os regimes se querem libertar do passado e abraçar o ideal do progresso; tudo que sucede é avaliado em função da sua relação com o novo ou o velho. Se é novo é sempre melhor; se é velho é sempre suspeito. As expressões de condenação apontam sempre para o antigo: “supersticioso”, “medieval”, “atrasado” e “anacrónico”; pelo contrario, o maior elogio é ser-se “moderno”.
Tudo deve ser
“moderno”: o pensamento, a família, o ensino, a literatura, a filosofia…. Se
uma coisa, uma qualidade, uma actitude ou uma ideia não é moderna, deve ser
modernizada ou, então, deve ser atirada para o caixote do lixo da história
(expressão com igual relevância em ambas as ideologias).
Estas semelhanças, explicam o facto dos membros
dos partidos comunistas e funcionários dos regimes de leste, após a queda do
muro, se terem adaptado tão facilmente, à democracia-liberal e de terem sido tão bem
recebidos nas instituições europeias (veja-se o caso de Ângela Merkel): tendo durante décadas lutado pelo
progresso contra as forças da reacção, sentiram-se em casa num regime onde a
luta pelo progresso anima todos os aspectos da vida social e pessoal, onde a
palavra progresso significa sensivelmente
a mesma coisa, e onde as forças que se lhe opõe são exactamente as mesmas.
Ambos
os regimes geram uma sensação de libertação em relação a antigos vínculos uma
vez que, um cidadão, sendo membro, tanto duma sociedade comunista como duma sociedade liberal, fica livre duma série de compromissos e obrigações religiosas,
familiares, morais e tradicionais que
antes prendiam as pessoas; fica com uma sensação de recomeço e força e cheio de pena dos atrasadinhos que, por vontade própria, continuam agarrados, a
regras há muito ultrapassadas e a restrições sem sentido.
Mas
há uma obrigação de que ninguém se pode libertar: nos regimes comunistas, a
obrigação de ser comunista e pensar segundo a linha oficial do partido; nos
regimes de democracia-liberal, a obrigação de se ser democrata, liberal,
aberto, inclusivo, tolerante, diversitário, não-xenófobo, não-sexista,
não-homofóbico, etc., etc, etc. (a lista é virtualmente infindável) – ou seja,
a obrigação de pensar segundo os ditames
do politicamente correcto.
E,
isto não é negociável.
Tendo
rejeitado todas as obrigações e compromissos do passado, tanto os comunistas
como os liberais, lhes perdem o respeito e os esquecem rapidamente.
Ambos desejam que o passado seja totalmente erradicado, ou pelo menos que seja
tornado impotente, relativizado e escarnecido.
Sendo sistemas que pretendem apagar ou reescrever toda a história pregressa e começar tudo de novo, sempre foram, na essência e na prática adverso à memória.
Os que combatiam os regimes comunistas combatiam também o esquecimento, porque tinham a noção que a perda da memória fortalecia o sistema tornando as pessoas indefesas e maleáveis.
Nas democracias-liberais a
memória também é encarada como um dos principais inimigos pois dificulta o esforço em direcção à modernidade, apegando as
pessoas ao passado.
No entanto, nessa cruzada comum contra a memória, as tradições, os costumes e ordem moral do passado, as democracias liberais têm sido bem mais eficazes que os seus congéneres comunistas.
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