«A fórmula do Evangelho: “muitos são os chamados, poucos os escolhidos” (Mt 20,16), vale tanto para o chamamento à vida eterna como para o chamamento à perfeição. Todos estamos  chamados tanto a uma como a outra, segundo a vontade antecedente de Deus, e a todos nos são dadas as graças suficientes para conseguirmos ambas as coisas, se quisermos. Mas Deus não tem obrigação  de nos dar , nem de facto dá, a todos, graças infrustráveis que nos levem infalivelmente à salvação eterna e aos ápices da perfeição cristã. Deus não pode nem deve (se é lícito assim falar) salvar a todos, e muito menos está obrigado a elevar-nos ao ápice da perfeição, pelo inevitável absurdo e  grande imoralidade que disso decorreria. Porque, se corresponder à graça fosse o mesmo que não corresponder, se viver castamente fosse o mesmo que revolver-se em toda a espécie de imundices, se cumprir exactamente a lei de Deus fosse o mesmo que descumprir os seus mandamentos, etc., nesse caso, Deus estaria obrigado a dar-nos a todos as graças eficazes para nos erguer dos nossos pecados voluntariamente cometidos  e para alcançarmos infalivelmente a salvação eterna, e até mesmo um posto eminente no céu uma vez que teríamos alcançado também a perfeição cristã. Disso decorreria duma maneira terrivelmente lógica, que o homem estaria autorizado a não fazer caso de Deus e, já que lhe era permitido pecar impunemente, poderia entregar-se tranquilamente a toda a sorte de desordens e violar a seu alvedrio todos os preceitos do Decálogo, que, ainda assim, chegaria o dia em que Deus lhe teria de dar as graças eficazes para que se arrependesse e em que, de facto, ele se arrependesse e se salvasse eternamente; e, assim, depois de zombar de Deus, ainda ocuparia tranquilamente um posto próximo do trono da sua infinita majestade. Quem não percebe que isto é um absurdo e é imoral e que Deus não o pode fazer sem deixar de ser infinitamente justo e infinitamente santo? É evidente que Deus não pode nem deve salvar a todos, nem muito menos fazer todos santos. Deus exige – e forçosamente tem de exigir – que o homem corresponda livremente à graça; que faça, por sua parte, tudo o que possa para, pelo menos, não colocar nenhum obstáculo à graça divina, que o quer salvar e santificar. Se assim o fizer, obterá infalivelmente todas essas coisas, conforme a promessa divina expressa nas Sagradas Escrituras. Mas se, pelo contrário, se empenhar em resistir à graça  e colocar obstáculos no caminho, ou, pelo menos, andar despreocupado e com tibieza nos caminhos de Deus, poderá por acaso surpreender-se que Deus, em justo e razoável castigo, o prive de graças eficazes em razão do mau uso das graças suficientes que tão pródiga e abundantemente havia derramado sobre ele?»

Rev. Pe. Garrigou-Lagrange, in Perfection chretienne et contemplation. (citado por Antonio Royo Marin O.P., in Teologia da Perfeição Cristã, Editora Magnificat, 2020 , pags. 257-258)

Comentários

Mensagens populares deste blogue