O  Admirável Mundo Antigo

 

As situações que hoje se deparam a um cidadão da classe  média urbana são muito diferentes das que se apresentavam à maioria das pessoas na antiguidade clássica e na Idade Média.

Em primeiro lugar, a pressão social aumentou terrivelmente. Hoje não conseguimos se quer conceber a atmosfera de liberdade  que as pessoas desfrutavam na antiguidade e na idade média.

Um estereótipo característico da nossa cultura acredita no mito de que a História é a história duma liberdade crescente e imagina que,- como estamos hoje inundados de liberdades civis, direitos civis, etc.,  que as pessoas de então não tinham - somos imensamente livres, enquanto elas viviam oprimidas.

Mas, a verdade é que esse mito da liberdade crescente reflecte a história jurídica e não a social: efectivamente, do ponto de vista jurídico, conquistámos uma legião de direitos; mas, o jurídico, é apenas aquilo que vale nos tribunais e não aquilo que determina a nossa conduta no dia a dia.

 Por exemplo, a estrutura física das cidades onde vivemos, determina imensamente a nossa conduta no dia a dia; não podemos esquecer que até determinada época (até á revolução industrial) as pessoas trabalhavam em casa ou muito perto de casa, sendo inconcebível que existissem problemas como a dificuldade ou demora em  chegar ao local de trabalho, ou engarrafamentos de trânsito, etc.

A Revolução industrial, ao mesmo tempo que criou uma quantidade enorme de riquezas e disponibilidade de serviços impensáveis até então, também criou um conjunto de pressões e exigências que fariam qualquer habitante da antiguidade ou da idade média morrer de terror:

Em primeiro lugar a pressão dos horários: é bom não esquecer que até recentemente só havia um horário rigoroso para os religiosos e monges; só eles tinham horas certas para fazer as coisas; para todos os outros o horário era altamente flexível – a que horas um camponês tinha de se levantar para trabalhar o solo?; variava conforme a época do ano e as suas conveniências e se lhe desse na real gana um dia não se levantar e não ir trabalhar, tal facto não faria a menor diferença. A pressão dos horários só existia para os monges mas era de ordem disciplinar e moral, fazia-lhes bem e eles mesmo a desejavam; não era uma necessidade de ordem prática ou económica mas de disciplina religiosa e moral.

 Todos os outros seres humanos, até há bem pouco tempo, não tinham qualquer pressão de horário.

Hoje, todos sabemos, que uma desobediência ao relógio pode destruir a nossa vida. Se se chegar atrasado ao local e trabalho umas poucas de vezes é provável que se perca o emprego e que,  num breve espaço de tempo, se esteja  a passar necessidades .

 Isto constitui uma pressão monstruosa e destrutiva que pesa sobre todos nós: vivemos com medo do relógio imaginando ingenuamente que tal situação é uma consequência inelutável do devir humano,  esquecendo que se trata apenas duma experiência recente da espécie humana, de algo que foi inventado, que apareceu num dado  momento, e, prouvera a Deus, desaparecerá noutro momento qualquer.

Por outro lado, a separação rígida entre os momentos de trabalho e de lazer, tal como vemos hoje, não existia, durante a maior parte da História, na maioria  das civilizações; o elemento trabalho e o elemento lúdico estavam tão indistintamente misturados  que não era  necessário determinar datas específicas para o lazer:  Os camponeses, por exemplo, trabalhavam cantando. Só  o simples acto de imaginar os operários, numa fábrica moderna,  ou os funcionários numa repartição pública, ou numa multinacional qualquer, a cantarem de felicidade enquanto trabalham, é simplesmente hilariante: se, por absurdo alguém tivesse vontade de o fazer e o fizesse passaria por louco varrido, um original que rapidamente seria remetido à procedência.

 E, no entanto, gerações sobre gerações de camponeses trabalharam cantando. Por isso mesmo, não teria, para eles, qualquer sentido pensar em parar de trabalhar para se divertirem porque  eles já se estavam divertindo.

Ou seja, existem, hoje, uma série de elementos, que provêm da própria organização física da sociedade, que pesam sobre as pessoas com inúmeras exigências que se podem tornar bastante angustiantes,  não só pelo facto de existirem mas também por estarem ausentes:  se alguém perde o emprego, perde os horários e fica completamente perdido na sociedade, sentindo-se isolado, desamparado e perseguido, podendo até ficar paranoico, não só por razões económicas, mas porque com o emprego perde-se toda uma rede de conexões sociais.

Hoje, num meio social onde as redes familiares são cada vez mais reduzidas e os poderes públicos constantemente legislam com o fim de as enfraquecer e onde, cada vez mais, as pessoas se vêm obrigadas a trabalhar longe dos seus familiares (o que juridicamente constitui - por exemplo, segundo a U.E - um Direito à Livre Circulação e Instalação de Trabalhadores, mas que na   vida real, corresponde a mais um ónus  que  as novas gerações têm de suportar, para não caírem na tragédia do desemprego), alguém privado de emprego, fica privado da grande maioria dos seus contactos sociais, ficando numa situação verdadeiramente terrível porque ao perder o emprego, simultaneamente perde a rede de amigos.

Antigamente cada pessoa tinha a sua rede de conexões e contactos no local onde tivesse nascido e não havia como perdê-los a não ser que cometesse um crime e fosse expulso da cidade; o problema do ostracismo, da solidão moderna, não existia.

Naturalmente que existiam outros problemas de doenças e insegurança, mas eram problemas que pesavam sobre o conjunto da sociedade, sobre toda a comunidade e não opunham o indivíduo à comunidade como acontece com os referidos problemas modernos.

 A maior parte das pressões que pesam hoje sobre o indivíduo são pressões que o isolam da sociedade; é muito mais fácil ser-se marginalizado e ostracizado, hoje, que em qualquer outra época da história. O número de pessoas que numa grande cidade se sentem marginalizadas, separadas, solitárias é enorme. Este fenómeno nunca existiu em nenhuma época anterior da história humana; é um factor novo que contraria a natureza humana, que não está habilitada a lidar com este tipo de situações e, como tal, todos estes novos elementos, são forças de alienação - que no entanto, podem ser um desafio que só poderá ser enfrentado mediante um esforço individual extra no sentido dum restauro  da unidade da própria consciência.

Olavo de carvalho (transcrito duma gravação audio no youtube)


 

.                                                    RANCHOS

(Trecho do livro Viagem à Roda de Mação, de Francisco Serrano, editado pela Câmara Municipal de Mação, em que o autor conta, no fim do século XIX , como era a vida das gentes de Mação, durante a sua infância, sessenta anos antes.)

Existe uma grande diferença entre o modo de viver do povo de hoje e o de há sessenta anos.

Na época da colheita da azeitona, os proprietários davam aos seus ranchos- varejadores e apanhadeiras – alimentação e salário. Cada proprietário tinha o seu rancho que ficava falado e ajustado de ano para ano.

Todos os dias, uma ou duas horas antes do sol nado, vinham os ranchos para casa dos patrões, depois do respectivo “búzio” tocar para se juntarem, pois que em cada rancho havia um encarregado de fazer o toque do búzio. Ao chegarem a casa dos patrões encontravam uma grande fogueira na lareira, onde, em grandes panelas, aquecia a comida para o almoço, feita no serão anterior.

Almoçavam e depois punham-se em ordem de marcha para o campo, antes da manhã romper, indo as mulheres adiante a tocar adufe e a cantar, e os homens atrás, a tocar os búzios - a “buzinar”- nos intervalos, com um pífaro a acompanhar o canto. A primeira cantiga, ao saírem de casa dos patrões, era invariavelmente esta:

                               

                                 “ Vamos apanhar azeitona,

                                     Que tem azeite dentro,

                                    P´rá alumiar toda a noite

                                    O Santíssimo Sacramento.”

 

Seguiam-se outras cantigas, com o acompanhamento do pífaro e “buzinadelas” nos intervalos, costumando as cantadeiras, ao passarem pelas portas de pessoas de maior representação da vila, fazerem alusões elogiosas a essas pessoas, continuando a cantar até saírem da povoação.

Como quase todos os ranchos saiam a cantar, e os búzios com os seus estridentes sons faziam um barulho ensurdecedor, não deixavam dormir ninguém sossegadamente na cama naquele período de tempo.

O jantar no campo era “às sécas”, como diziam, isto é, não se compunha de cozinhados. Ia uma criada, ou uma mulher do rancho, com um cesto cheio de  boroas, azeitonas, queijo, sardinhas assadas ou bacalhau assado, com uma almotolia de azeite, que se deitava sobre as sardinhas ou o bacalhau, dentro de um alguidar, onde todos molhavam o pão e donde todos comiam. Quando o molho (que era só azeite) se extinguia, e o bacalhau não estava a nadar em azeite, diziam logo alguns do rancho para a encarregada da comida: “Não sabes a razão porque o bacalhau veio para Portugal?”. E dava também a resposta: “É porque estava farto de nadar em água, e veio para cá nadar em azeite; por isso faz-lhe a vontade, deita mais azeite no alguidar”.

Nova deita de azeite, que era consumido pelos nacos de boroa, engolidos sofregamente por todos! À noite, ao regressarem para casa dos patrões, se não vinham molhados das chuvas, faziam a entrada na vila como haviam saído – a cantar e a buzinar.

Seguia-se a seia, que em grandes panelões os esperava desde a tarde. Depois dela começavam a bailar, até o sono os apertar, indo depois cada um para suas casas, dormir, até que na madrugada seguinte o búzio os convidava a saírem das camas e a irem almoçar.

Cantava-se e cantava-se sempre; mas a maior festa era no fim da faina do apanho da azeitona, em que os patrões davam as “filhoses”. Era dia de festa rija, na qual toda a família e amigos tomavam parte. As moças do rancho, na semana anterior ao dia das “filhoses”, estudavam as cantigas que se haviam de cantar aos patrões e seus parentes, e confeccionavam uma bandeira bizarra, feita com os seus melhores lenços de seda, e encimada  com vergônteas carregadas de azeitonas, pendendo outras dos braços da mesma bandeira.

Guarda-se sempre pouco serviço para o dia das filhoses, de forma que vinham cedo para casa, todos em fileira, mulheres  adiante e homens e pessoas curiosas atrás, formando cortejo. Á porta das pessoas principais da terra, por onde iam passando cantavam cantigas a cumprimentá-las, cantando sempre acompanhadas a adufe e pífaro, respondendo os homens com as buzinadelas do costume, entre cada cantiga.

Ao chegarem à porta dos patrões, onde os curiosos se juntavam para ouvirem as cantigas laudatórias, começavam as cantigas aos donos da casa… e outros presentes.  Ali se avaliava do estro poético das raparigas do povo.

Começava o banquete…. Era de praxe fazerem algumas filhóses de massa iguais às outras, mas contendo bocados de estopa, não dando a perceber, depois de fritas o que continham… Faziam isto para servir de pretexto a troças e galhofas no fim do banquete. Toda a gente sabia que viriam à mesa as tais filhós “estopadas”, mas a dona da casa dizia sempre: “podem comer filhós á vontade, que este ano não puz estopa”. Ninguém acreditava, e por isso, ao comê-las, todos se punham a examinar as que tiravam do prato. Sucedia às vezes que os mais escrupulosos, por ironia da sorte, eram precisamente as primeiras vítimas a quem iam ter as “estopadas”. Levantava-se grande algazarra, a troçar da criatura que, por sua vez, troçava outro a quem sucedia o mesmo, acabando tudo em grande risada e anedotas apropriadas ao caso, com alegria e calor a que a “boa pinga” não era alheia.

Finda a ceia tudo se punha sério e de pé; rezavam em acção de graças a Deus pelos benefícios recebidos…e pelas almas das pessoas falecidas.

Finda a reza começava o baile, que durava até às duas ou três da manhã. Como as cabeças estavam esquentadas pelo vinho, os bailes eram sempre muito animados.

Nas primeiras horas só se bailava “fandango” com as suas variadíssimas modalidades. Como o fandango era uma dança muito violenta, logo que os rapazes estavam cansados de o dançar duas ou três horas consecutivas, diziam logo alguns: “ Vamos dançar uma “salteada”, Salteada era uma polca. Depois de andarem meia ou uma hora com esta serrazinha, a pular a salteada, dizia logo outro: “é melhor irmos agora a uma “raspada”. Uma raspada era uma mazurca. E cada um, cada qual com o seu par, se punha em movimento.

Depois desta havia quem se lembrasse duma “pulada”, que era a valsa. “Ainda falta uma, ainda falta uma”, diziam alguns dançantes. “Qual é?” É uma de “ir ao meio”. Ir ao meio era uma “schotice”, percursora do “pas de quatre”. Consistia em uma roda de pares, dos quais dançavam dois ou três de cada vez.

Às vezes, nos intervalos, vinham castanhas assadas e mais vinho, até que fartos de pular, e sendo já três ou quatro horas da manhã saiam para sua casas…

No meu tempo de rapaz toda a gente ia à Missa nos Domingos e dias santificados, enchendo-se o templo, chegando o povo a estar de joelhos a assistir à Missa até às paredes das casas fronteiras à da Igreja.”

 Trecho do livro Viagem à Roda de Mação, de Francisco Serrano,  , editado pela Câmara Municipal de Mação, em que o autor conta, no fim do século XIX , como era a vida das gentes de Mação, durante a sua infância, sessenta anos antes.

 

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