DIGNIDADE[1]

                                      

 

Tanto a democracia-liberal como o comunismo têm uma visão minimalista da natureza humana. Prometendo libertar o Homem das exigências excessivas duma metafísica clássica e medieval, segundo eles, ultrapassada, irrealista e própria de uma cultura de cariz aristocrático, procuram legitimar o rebaixamento das aspirações humanas,  afastando da sua esfera a prossecução de grandes desígnios, a prática das virtudes clássicas, a procura da sabedoria e da santificação pessoal. A noção de grandeza deixa, assim, de estar inscrita na essência do ser humano.

A esta nova visão tacanha da humanidade, subjaz o princípio da igualdade, segundo o qual todo o julgamento de objectivos e modos  de vida,  é proibido pois, todos eles são, a priori, igualmente válidos.

John Stuart Mill e T.H. Green, dois ideólogos do liberalismo, aperceberam-se dos perigos inerentes a esta  tendência da democracia-liberal para promover a mediocridade, mas, em vão; o processo de diminuição dos padrões de exigência uma vez iniciado, não tem fim; quando as pessoas se habituam a rejeitar determinados valores - por serem demasiado elevados, pouco práticos ou desnecessários - é uma mera questão de tempo até que a inercia natural as faça considerar inaceitáveis, até os mais leves valores.

A história da modernidade pode, assim, ser vista como um deslizamento inexorável do mais elevado para o mais vulgar, do mais refinado para o mais grosseiro - muito embora cada degrau descido, seja, celebrado, como uma libertação, natural e  saudável.

Como seria de esperar este processo de simplificação crescente veio a dar origem à mais  baixa vulgaridade de que há memória na história da humanidade - na  linguagem, na educação, nas regras morais - tendo destruído paulatinamente, qualquer tipo de sofisticação e decoro.

Desprezando, os valores que guiaram a humanidade durante milénios, por lhe parecerem artificiais, estranhos, duvidosos e inúteis –pura perda de tempo -  o homem moderno acredita que, sem eles, terá uma vida mais fácil e agradável.

 Em sua substituição estabeleceu  novos critérios - facilidade, practibilidade, utilidade, prazer, conveniência e gratificação imediata - que, no seu conjunto, formam uma formidável arma letal contra todas as instituições tradicionais, desvanecendo gradualmente costumes milenares, o senso de decoro e  o respeito pelas hierarquias.

Alguns pensadores imputaram a responsabilidade de tal descalabro à burguesia que, diziam,  resumia em si toda a vulgaridade da nova era.

Mas outros, mais argutos, como Ortega y Gasset, aperceberam-se que as causas eram bem mais profundas: verificaram, eles, que o próprio sucesso da tecnologia, da produtividade e da mecanização – o alter ego   da modernidade - conduzia a um esterilização do pensamento e ao progressivo triunfo duma pequenez humana obtusa e auto-satisfeita.

Não deixava de ser paradoxal que a explosão sem precedentes da tecnologia e da industria, que trouxe prosperidade e segurança a milhões de seres humanos e que não teria sido possível sem algum grau de criatividade, tivesse sido o factor preponderante na redução das aspirações humanas, conferindo à mediocridade um insuspeito estatuto de respeitabilidade.

O Homem sentindo-se seguro e disfrutando dos abundantes e sempre  crescentes benefícios da civilização moderna, libertou-se gradualmente da  exigente pressão das estritas regras da religião  e da ética clássica, já não estando disposto a percorrer o incerto e doloroso caminho que conduz a mais altos fins.

Num trecho famoso do seu Utilitarism, John Stuart Mill, ainda conjecturava  que, embora o Homem, tivesse a natural tendência para o prazer e para satisfazer os seus apetites, preferiria sempre ser, antes, um Sócrates insatisfeito, do que um suíno satisfeito; argumentava ele que, tendo o Homem a capacidade de reconhecer os dois estados – o Socrático e o porcino – em hipótese alguma,  a sua consciência e a sua razão, o deixariam optar pelo segundo.

O argumento presumia inequivocamente, na esteira dos clássicos, a existência de formas de vida objectivamente superiores; assumia que o modelo socrático era claramente superior ao do homem comum e que a natureza humana não permitia que o homem pudesse deixar de  ter, disso mesmo, nítida consciência.

 Mas esta assumpção foi, desde o início dos tempos modernos, liminarmente rejeitada. Tanto nos regimes de democracia-liberal como nos socialistas uma directiva “moral” universalmente aceite, proíbe que se julguem as prioridades morais das pessoas porque a norma fundacional, que lhes subjaz, é a igualdade.

Assim, a mediocridade passou a ser vista como não problemática e até como o modelo a prosseguir. O modelo Socrático, pelo contrário, embora nominalmente considerado igual a todos os outros, não só perdeu o seu apelo como foi, até, rejeitado como demasiado aristocrático e elitista.

Isto é, em teoria, para a modernidade, o modelo Socrático é tão bom como o modelo porcino (assumpção que, já de si, é uma  aberração) mas, na prática, opõe-se-lhe irreconciliavelmente preferindo, indubitavelmente, o suíno, a Sócrates.

Este processo, no decorrer do qual, as mais elevadas aspirações da humanidade  foram sendo substituídas pelas mais desprezíveis - em que Sócrates foi sendo substituído pelo suíno - diz-nos muito da natureza humana; nomeadamente que, se não for fortemente contrariada, ou inspirada e melhorada por um objectivo superior,  tem uma natural tendência para resvalar inexoravelmente para a vulgaridade e a mediocridade. 

E, quando tudo se torna, por igual, vulgar e medíocre nada, aparentemente, é vulgar e medíocre – extinguindo-se, assim, todas as categorias, pelas quais, durante milénios, as pessoas avaliavam as respectivas conductas.

 

Particularmente admirável, neste quadro, foi a alteração semântica sofrida pela palavra dignidade.

Desde a antiguidade clássica, dignidade implicava obrigação (nobless oblige). Considerava-se que alguém tinha dignidade, quando se comportava de acordo com determinados padrões  tidos por elevados.

 Dignidade era algo que se conquistava, merecia e devia ser confirmado continuamente, actuando-se de acordo com os mais elevados padrões impostos pela comunidade – por exemplo, quando se era investido num cargo de grande responsabilidade - e aceitando-se sempre que, tendo o homem sido criado à imagem e semelhança de Deus, deveria, ao menos, tentar  comportar-se em conformidade.

A dignidade era, assim, um atributo que enobrecia aqueles que o adquiriam, constituindo-os na obrigação de prosseguir, de alguma forma, um objectivo de melhoramento pessoal que, mesmo não sendo explícito, era certamente mais próximo do modelo Socrático que do seu oposto. A dignidade não era adquirida para sempre ; podia ser perdida se o seu detentor não  actuasse de acordo com o seu estatuto.

Mas, em meados do século XX, a declaração universal dos direitos do homem   fez surgir uma nova e estranha terminologia, conferindo à palavra dignidade um sentido totalmente contrário ao que sempre fora o seu.

A ideia de que todos os seres humanos têm direitos inalienáveis é contra-intuitiva e dificilmente justificável, só adquirindo  sentido se respaldada em argumentos filosóficos sólidos, como os da filosofia clássica  ou do cristianismo.  

Se, pelo contrário, se partir duma visão minimalista da Homem –   visto, apenas, como um mero agregado celular complexo, fruto da evolução e do acaso -  atribuindo-se-lhe apenas qualidades elementares e desconsiderando-se deliberadamente a sua dimensão metafísica, a  ideia de direitos inalienáveis perde qualquer plausibilidade.

 Pode, ainda, subsistir mas apenas como um mero produto legislativo, parlamentar ou judicial, conferindo às pessoas o direito a reivindicar determinadas coisas escolhidas pelo próprio… legislador; mas estes direitos, sendo outorgados arbitrariamente por determinados grupos, de políticos ou de juízes - que os escolhem ao sabor das circunstâncias, das ideologias, das predilecções pessoais ou, até, das pressão de grupos de interesses - passam a ser pouco mais que decisões contingentes e arbitrárias.

 Direitos que para o cristianismo e a antiguidade clássica eram naturalmente inatos ao homem, passavam a depender do poder, político ou judicial.

Chega a ser  ridículo chamar inalienáveis  a direitos assim obtidos porque, por definição, a inalienabilidade,  não é susceptível de ser legislada.

Assim, em ordem a justificar o que – no quadro do conceito de direitos humanos adoptado –  era injustificável, o conceito de dignidade foi inflacionado de forma a parecer implicar mais do que efectivamente podia, criando-se a falsa aparência de  assumpção duma elevada imagem da natureza humana,  quando na verdade se estava a rebaixá-la drasticamente.

Os autores da declaração dos direitos humanos não se quiseram dar ao trabalho de a acompanhar duma interpretação filosófica séria e explícita da natureza humana e dos fundamentos e condições que justificariam atribuir-se-lhe a dita dignidade. Esta omissão – ou, mais precisamente, esta manigância – levou, assim,  a um empolamento do conceito de dignidade humana, mas com um novo significado, radicalmente contrário ao anterior.

 Uma vez que a substância do conceito de dignidade, contida na declaração universal, já não se traduzia em obrigações mas em  reivindicações e direitos, esta nova dignidade já não compelia as pessoas a um esforço pessoal para obter mais e melhores virtudes e méritos morais. Pelo contrário, permitia-lhes apresentar todas as reivindicação que lhes aprouvessem, justificando-as com uma dignidade que possuíam pelo mero facto de terem nascido, independentemente de qualquer mérito ou esforço.

Uma pessoa que mais não almejasse na vida que  cevar os seus apetites, refocilando-se em prazeres e entretenimentos espúrios, passava a ter o mesmo direito a invocar a  sua dignidade pessoal e justificar as suas reivindicações, do que uma outra que, na esteira de Sócrates, se esforçasse, para alcançar as mais nobres virtudes a que a natureza humana deve aspirar.

 O suíno, passava a ter, por fiat legislativo,  a mesma dignidade que Sócrates – ou, em termos evangélicos, Herodes a mesma dignidade que Cristo – atirando-se, assim, "para lá do horizonte", qualquer veleidade de valoração moral de comportamentos e modos de vida.

Armado, até aos dentes, de direitos, o homem moderno achou-se na mais confortável das posições: já não precisava justificar as suas reivindicações, mesmo as mais abstrusas, desde que previamente consagradas como direitos; fossem, elas, as mais vis, e os seus fins os mais soezes que, se suportados em direitos, não beliscariam jamais a sua dignidade vitalícia, adquirida pelo mero facto de ter nascido humano.

 E, como o facto de se ser detentor desta nova dignidade não implicava a obrigação de fazer qualquer esforço para alcançar algo de bom ou meritório, ele estava habilitado a, invocando-a constantemente, reivindicar coisas cada vez mais absurdas e justificar comportamentos cada vês mais aberrantes;  afundando-se, mais e mais, numa vulgaridade arrogante podia, todavia, argumentar que essa vulgaridade não só não  contraditava a sua dignidade, como até podia ser vista, por um esforço de imaginação, como espécie de conquista - bem vistas as coisas, não era possível que, uma dignidade congénita e inerente à própria natureza humana, pudesse gerar algo que não fosse necessariamente digno e humano.

E, assim, dando azo a todos os direitos e justificando todas as reivindicação, o novo conceito de dignidade da pessoa humana, foi paulatinamente rebaixando o Sócrates a besta e desumanizando progressivamente a humanidade.

 

J.F.M (15-02-20)



[1] Texto escrito com base num trecho do livro, The Demon in Democraty – Totalitarian Temptations in Free Societes, de Ryszard Legutko - Encounter Books, New YorK. London, pags., 29-33.

Comentários

Mensagens populares deste blogue