EXAME DE CONSCIÊNCIA E REALIDADE
O que chamamos
senso do real fundamenta-se na distinção entre o efectivo e o possível.
Fazemos esta distinção comparando aquilo que pensamos e imaginamos por vontade
própria, com os dados que nos são impostos pela situação presente. Neste
momento, por exemplo, digito no teclado do computador as palavras que me brotam
de dentro. Elas poderiam ser outras, bastando que eu quisesse mudar o foco da
minha atenção para outro assunto. Se escrevo estas palavras e não outras, posso
assegurar, na língua que o povo gaiato atribuiu ao ex-presidente Jânio Quadros:
fi-lo porque qui-lo.
Mas, tantas
vezes quantas abra os olhos, enquanto estiver sentado aqui, verei diante de mim
o mesmo teclado e a mesma tela, que se impõem à minha visão como dados de um
mundo que não fiz e que vem pronto ao meu encontro. Não posso fazer com que
meus olhos vejam outra coisa senão o que está na frente deles. Não posso
girá-los daqui para Porto Alegre, para Machu-Pichu ou para Winnesburg, Ohio,
EUA, como giro num instante a tela do pensamento e troco de palavras.
O meu olhar
está limitado pelo que o mundo me oferece, ao passo que minha imaginação não
conhece outros limites senão os seus próprios. Esta diferença é que me dá a
medida do real: admito como efectivo, como objectivamente existente, um mundo que
me resiste, que não se dobra imediatamente ao meu arbítrio com a plasticidade
do imaginário. Existir é resistir, dizia Dilthey.
Se minha percepção está limitada ao lugar do espaço onde me encontro, mais fortemente ainda está presa a um determinado momento do tempo. O espaço ainda pode ser parcialmente vencido pelo deslocamento do corpo, que, noutro lugar, verá outras coisas e já não estas. Mas o tempo é invencível. O que ontem me sensibilizou a retina, vindo de fora, hoje só pode ser produzido desde dentro, re-produzido na imaginação, e não sem algum esforço. As cenas deleitosas de outrora, vividas como um dom gratuito da realidade aos nossos sentidos, agora só podem ser re-vividas como obra nossa, por um acto de vontade que resolva sair em busca do tempo perdido com o empenho reconstrutivo de um Proust.
Do mesmo modo, aquilo que se passará amanhã não
pode ser agora percebido como facto, mas somente concebido e projectado desde
dentro, como conjectura esperançosa ou temerosa. Por mais certo e fatal que se
anuncie o futuro, um anúncio não terá nunca a presença maciça do facto
consumado; e conforme seja bom ou mau, virá sempre acompanhado do temor ou do
desejo — da possibilidade, em suma — de que as coisas venham a se passar de
outro modo. O presente, em contrapartida, se podia ser de outro modo um
instante atrás, já não o pode agora: está fixado para sempre; tendo acontecido,
já não pode des-acontecer.
É apreendendo os limites do meu poder — daquilo que Kurt Levin chamava espaço vital— que chego a distinguir o real do irreal, o efectivo do meramente possível.
Compreendo, portanto, que a distinção entre o facto percebido e a possibilidade imaginada se faz por referência à vontade, que é súbdita num caso, no outro é soberana.
Mas só posso fazer esta comparação se me lembro
claramente de haver pensado ou imaginado tais ou quais coisas por vontade
própria, desde dentro, e se assumo a autoria desses actos interiores como
assumo a de minhas acções materiais e externas. É, só assim, que posso captar a
diferença ente o que brota de mim e o que me vem do mundo. O senso da diferença
entre o imaginado e o percebido repousa, portanto, na memória e na
responsabilidade.
Tomamos consciência da realidade objectiva, diferenciando-a das nossas projecções subjectivas, exactamente pelos mesmos meios e na mesma medida em que tomamos consciência de nós mesmos como sujeitos livres, activos, criadores dos seus actos como das suas intenções.
A objectividade do conhecimento é, portanto, função da liberdade moral.
Ora, nossos
actos interiores não têm outra testemunha senão nós mesmos. Só eu conheço por
testemunho directo meus pensamentos e intenções, que os circunstantes não podem
senão conjecturar por analogia. Se decido mentir sobre o que se passa dentro de
mim, ninguém pode impedir- me de fazê-lo: nem mesmo quem, por sinais
exteriores, perceba a falsidade da intenção que alego poderá provar por
testemunho directo aquela que oculto.
O testemunho sincero de si para si é a
primeira e indispensável condição do conhecimento objectivo.
O primeiro passo na apreensão da verdade consiste, pois, em cada um aprender a reconhecer as verdades que só ele mesmo pode saber e que ninguém, sem ser ele, pode confirmar ou negar.
Por exemplo, só o próprio, pode conhecer as suas intenções,
só ele pode conhecer os actos que praticou em segredo, só ele pode conhecer os
sentimentos que não confessou. Ele, nesses casos, é a única testemunha, e é aí
que ele próprio vai conhecer a diferença radical e intransponível entre verdade
e falsidade.
As pessoas que negam a existência de verdades
são, precisamente, as que nunca tiveram essa experiência e, portanto, nunca
deram senão falso testemunho de si mesmas perante o tribunal da sua
consciência, mentindo para si mesmas e por isso sentindo que tudo no mundo é
mentira.
Mas o desejo de assumir a autoria de seus actos interiores — ou mesmo exteriores — não é inato no homem. Com inocente desenvoltura, que no adulto seria cinismo, a criança atribui a responsabilidade de seus feitos a um irmãozinho, a um colega ou a seres imaginários, e não toma consciência de que mente senão pelo olhar severo do pai que a faz descer do céu da imaginação para cravá-la no chão terrestre onde as causas se atam inapelavelmente às consequências, e as culpas aos castigos.
Inicialmente, a
criança aceita esta limitação por conta da autoridade do pai, mas depois
aprende a estabelecer por si a conexão entre o antes e o depois, entre a
intenção e o acto, entre a autoria e a culpa, e é assim que se desenvolve nela
a autoconsciência, que será a base não somente da conduta moral, mas da objectividade
no conhecimento.
A verdade é aceite assim como um valor moral
antes mesmo de se firmar como um critério cognitivo. A admissão da verdade
sobre si mesmo precede a admissão da verdade sobre as coisas. “A
autoconsciência é a terra natal da verdade”, dizia Hegel.
A possibilidade do conhecimento objectivo depende portanto de uma opção preliminar, em que o homem assume — ou não assume — um compromisso interior com a verdade e a coerência.
Nada pode obrigá-lo a este compromisso. A facilidade com que os seres humanos dele se livram sempre chocou os filósofos, de Platão e Aristóteles até Kant, Scheler, Ortega y Gasset, Éric Weil.
Os filósofos gostariam que todos os homens
fossem dóceis à verdade, mas é uma aspiração utópica e auto-contraditória: se a
percepção da verdade nasce da liberdade, só pode conhecer a verdade quem esteja
livre para a negar. “Verdade conhecida é verdade obedecida”, dizia Platão; mas
mesmo a verdade conhecida não pode ser obedecida de uma vez para sempre,
mediante um suicídio preventivo da liberdade, que nos garanta contra as futuras
tentações do erro e da mentira.
A opção pela verdade deve ser refeita diariamente, entre as hesitações e dúvidas que constituem o preço da dignidade humana.
O compromisso com a verdade, ainda que assumido de coração, jamais
obriga o homem todo: continentes inteiros da alma, como a imaginação ou
determinados sentimentos, podem continuar vagando à margem de toda obrigação de
veracidade, e atendendo apenas aos apetites imediatos. Há sempre muitos meios
de fugir da verdade. Os sonhos, por exemplo, são um tecido de eufemismos que
pode servir para amortecer ou desviar o impacto das verdades indesejáveis,
ajudando a manter o organismo psicofísico naquele estado de ausência de tensões
que os médicos denominam homeostase.
É claro que em grande número de casos esse
arranjo oportunista acaba por produzir uma neurose. A melhor definição de neurose
que conheço é do meu falecido amigo e mestre Juan Alfredo César Müller, um génio
da psicologia clínica. Neurose, dizia
ele, é uma mentira esquecida na qual você
ainda acredita. Se mentir para si é esquecer a verdade, neurose é esquecer
o esquecimento, apagar as pistas do embuste. Na neurose, a mentira
transforma-se num sistema, num programa que se auto-multiplica, ocultando a
mentira inicial sob montanhas de entulho.
Mas ninguém ficaria neurótico se a opção neurótica não lhe parecesse vantajosa, pelo menos no instante decisivo em que uma verdade intolerável se abre diante dele como um abismo.
Mentir alivia porque
economiza à psique o esforço de suportar um desequilíbrio temporário.
Isso quer dizer, em suma, que não há
consciência moral, nem conhecimento objectivo, sem algum sofrimento psíquico
voluntário, sem o sacrifício pelo menos temporário da harmonia interior em vista
de valores que transcendem os interesses imediatos do organismo psicofísico.
“Ser objetivo, dizia Frithjof Schuon, é morrer um pouco”.
Objectividade
é sinceridade projectada no exterior, assim como sinceridade é introjecção dos
limites objectivos.
Sinceridade
e objectividade, por sua vez, formam um nexo indissolúvel com a
responsabilidade: as três condições que perfazem a autoconsciência moral.
Uma vez afrouxadas porém as exigências da
autoconsciência, a imaginação torna-se a serva prestativa do interesse orgânico
imediato, produzindo tantas ficções quantas forem necessárias para conservar o
indivíduo num estado de profunda sonolência moral, no qual ele não tenha de
responder pelos seus actos.
O
entorpecimento da consciência tem graus e etapas, que vão desde as
“racionalizações” corriqueiras com que na vida diária nos furtamos ao apelo de
pequenos deveres, até a completa inversão.
O homem moralmente embotado já não consegue
“sentir” a bondade ou maldade intrínseca de seus actos. Embora conheça
perfeitamente as normas sociais que aprovam ou desaprovam certos
comportamentos, ele não as vê senão como convenções mecânicas, e pode até
continuar a obedecer-lhes exteriormente por mero hábito, mas sem pensar sequer
em lhes aderir de coração; e continuará assim até que a conjunção da
necessidade com a oportunidade o transforme de vez no criminoso que sempre foi.
Albert Camus dá, em l’Étranger, o retracto do
tipo cuja mediocridade pacata esconde a mais absoluta insensibilidade moral. Um
dia o sujeito caminha pela praia e, sem qualquer motivo, até mesmo sem sentir
raiva, resolve matar dois transeuntes a tiros. Até ao fim ele não compreende a
revolta e a indignação que seu crime desperta.
Como a inteligência humana não opera no vazio,
mas apenas elabora e transforma os dados que recebe da esfera sensível, é
natural que, quando um homem já não sente a realidade de alguma coisa, o
conceito dessa coisa, o esquema que corresponde a ela no plano da inteligência abstracta,
logo comece a parecer-lhe também vazio de sentido. Nessas horas, somente a um
autêntico filósofo ocorrerá tomar consciência do seu depauperamento interior e
sair em busca do sentimento perdido, para dar vida nova ao conceito. A maioria
simplesmente adaptará o conceito ao estado actual da sua alma.
No homem sem maiores interesses morais, o
conceito esvaziado não tem mais função, e será simplesmente esquecido. Mas, se
esse homem for um letrado, ele não suportará ser o único a sentir como sente.
Invariavelmente, criará argumentos para demonstrar que aquilo que ele não sente,
inexiste no mundo objectivo. A sua incapacidade para discernir o bem e o mal excepto
como convenções vazias será usada como “prova” de que toda lei moral é uma
convenção vazia, e a deformidade da sua psique será erigida em padrão de medida
moral para toda a humanidade.
Mas um homem não vive muito tempo em estado de
abstinência moral. Após ter solapado as bases de todo critério moral objectivo,
ele continuará a ter ódios e afeições, repugnâncias e desejos, que, na esfera
intelectual, farão brotar outros tantos correspondentes juízos morais
elaborados racionalmente. Não podendo suportar indefinidamente a insegurança de
admitir que esses juízos são meras preferências subjectivas, não melhores ou
piores do que quaisquer outras, ele cairá na tentação de argumentar a favor
delas, de lhes dar uma expressão e fundamento intelectual; e, ao fazê-lo,
criará um novo critério de moralidade, que não consistirá em outra coisa senão
na ampliação universalizante dos gostos perversos de um indivíduo. A linguagem abstracta
da filosofia moral ter-se-á tornado uma arma ao serviço de fins egoístas, de um
ego insuflado que quer remodelar o mundo à sua imagem e semelhança.
As
aspirações subjectivas dos indivíduos, porém, não são tão diferentes umas das
outras, sobretudo na época de cultura de massas que padroniza os desejos da
multidão, e por isso o filósofo moral improvisado logo terá o grato prazer de
descobrir que as suas ideias são compartilhadas por milhões de pessoas iguais a
ele, muitas das quais já vinham produzindo, com os mesmos fins, outras tantas
filosofias morais coincidentes. Aí ele encontrará o argumento decisivo a favor
do seu sistema: o argumento do número. O seu sistema pessoal de racionalizações
será enobrecido e investido de validade universal como expressão das
“aspirações da nossa época”.
Mas como os desejos da multidão, moldados pela
cultura de massas, se condensam todos no triângulo áureo sexo-dinheiro-fama, as novas éticas nascidas do embotamento moral
não consistirão em outra coisa senão num sistema de racionalizações que
transformará esses três desejos em hipóstases de valores morais universais e em
fundamentos máximos de toda conduta eticamente válida.
Completa-se assim a inversão: as paixões mais
baixas e vulgares ergueram-se ao estatuto de mandamentos divinos, cuja violação
sujeita o homem a padecimentos interiores, quando não à execração pública ou a
penalidades legais.
O embotamento completo da intuição moral,
substituída por uma retórica sofística de um artificialismo alucinante, chegou
a ser diagnosticada por Konrad Lorenz como uma forma de degenerescência
biológica, que, apagando da memória humana registros de valores aprendidos ao
longo da evolução animal, anuncia o começo da demolição da espécie humana.
Mas sondar as causas primeiras desse fenómeno,
na escala da humanidade, não é meu intuito. O que desejo indagar é como ele
se produz num indivíduo em particular. Excluo, é claro, os casos de psicopatia congénita,
que recebem o nome técnico de personalidades psicopáticas ou de sociopatas. Não
é possível que o conjunto dos militantes radicais do mundo se componha de uma
maioria de personalidades psicopáticas, afectadas por taras congénitas.
O que me intriga é: como um homem de
personalidade normal pode ser transformado de tal maneira que seu senso moral
se torne idêntico ao de um sociopata de nascença? Como se pode inocular
artificialmente a perversidade moral? Pois é óbvio que, se não existisse esta
possibilidade, determinados movimentos sociais e políticos só poderiam recrutar
os seus adeptos nos hospitais psiquiátricos e jamais passariam de clubes de
excêntricos.
Quando hoje vemos hordas de intelectuais activistas
lutando para que o aborto se torne um direito inviolável, para que
manifestações de antipatia a qualquer perversão sexual sejam punidas como
delitos, para que a interferência dos pais na educação sexual dos jovens se
limite à instrução quanto ao uso de camisinhas, para que a Igreja abençoe a
prática da sodomia e castigue quem fale contra ela, é forçoso admitir que algo,
agindo sobre essas pessoas, destruiu nelas a intuição moral elementar; que,
como diria Lorenz, alguma interferência externa apagou de seus cérebros os
registros da experiência moral acumulada ao longo da evolução biológica.
Se esse algo não é nem a hereditariedade nem
aquela conjunção fortuita de circunstâncias traumáticas que podem produzir uma
personalidade psicopática, então só pode ser uma acção humana premeditada.
A acção humana premeditada, realizada segundo uma conexão racional de causas e efeitos, é o que se denomina uma técnica. Essa técnica existe. Aliás existem muitas. Não há neste mundo um só movimento de massas, um só Estado nacional, uma só empresa de grande porte que não disponha de uma técnica, ou de um conjunto de técnicas, para moldar a personalidade de seus membros de acordo com os fins da organização.
Com alarmante frequência, essa moldagem passa pelo embotamento maior ou menor do senso moral e da consciência intelectual.
Não há talvez no mundo um sector de pesquisas em que governos,
partidos políticos, organizações pseudo-religiosas, empresas e sindicatos
tenham investido mais do que no dos meios de subjugar a mente humana.
O fim pretendido é abolir o domínio da vontade, cortando os laços entre a psique individual e os seus quadros de referência moral, sem apoio nos quais não pode o ego tomar posição, julgar, decidir, querer ou desquerer.
Neutralizada a
capacidade judicativa e decisória, um homem está à mercê do que lhe sugiram, e
pronto a justificar a posteriori a
decisão imposta, assumindo-a como sua para restabelecer a ilusória integridade
da sua auto-imagem; e, com isto, assume a culpa do mal que lhe fizeram.
O rol das técnicas
que o século XX concebeu para esse fim é de fazer inveja aos cientistas de
outros ramos: reflexos condicionados, lavagem cerebral, guerra psicológica,
influência subliminar, controle do imaginário, engenharia comportamental,
informação dirigida, Programação Neurolinguística, hipnose instantânea, a lista
não tem mais fim. O domador de homens tem hoje à sua disposição um arsenal de
recursos mais vasto e eficaz que o dos técnicos de qualquer outro campo de actividade.
Não há disputa política, campanha publicitária, narrativa oficial, propaganda ideológica ou pseudo-religiosa que não faça amplo uso deles,
submetendo a mente humana a um bombardeio atordoante, que impossibilita o
exercício normal do discernimento e predispõe as massas a uma nova patologia
que recebeu a denominação, muito pertinente, de psicose informática.
O uso disseminado dessas técnicas arrisca minar todo o campo da convivência humana, legitimando a manipulação subliminar como uma forma normal e corrente de cada homem lidar com o seu próximo, e subvertendo, com isto, todos os padrões de sinceridade, honestidade, solidariedade.
Universalizado esse costume, a
sociedade inteira estará à mercê de uma horda de manipuladores psicológicos,
ansiosos de unlimited power e armados
de um temível arsenal de meios para defraudar e colocar a seu serviço os outros
homens.
A coisa que mais impressiona o estudioso do
assunto é a omnipresença da manipulação da mente na vida contemporânea. Sem
ela, os grandes movimentos de massa que marcam a história do século
simplesmente não teriam podido existir.
É impossível
imaginar o que teria sido da propaganda comunista sem os reflexos condicionados
e sem a lavagem cerebral inventada por russos e chineses; o que teria sido do fascismo
e do nazismo sem a técnica da estimulação contraditória com que esses
movimentos desorganizavam a sociedade civil; como se teriam desenrolado os dois
conflitos mundiais e dezenas de conflitos locais e revoluções sem o uso maciço
da guerra psicológica para levar populações inteiras a aderir ao esforço de guerra; o que teria sido dos governos ocidentais e dos grandes
empreendimentos capitalistas sem o controlo do imaginário e a “modificação de
comportamento” que exercem sobre populações que não têm disto a menor suspeita;
qual teria sido a sorte da indústria de comunicação de massas sem o uso da
influência subliminar pela qual reduzem à passividade mais idiota o público de
todos os países.
Se retirássemos, enfim, do panorama histórico
do século XX as técnicas de manipulação da mente, nada teria podido acontecer
como aconteceu. Elas foram seguramente mais decisivas, na produção da história
contemporânea, do que todas as outras técnicas concebidas em todos os outros
domínios, incluindo a bomba atómica e os computadores. Elas estão entre as
causas primordiais do acontecer histórico no nosso tempo, e no entanto os
historiadores continuam a ignorá-las.
Quando se escrever, porém, com suficiente
visão de conjunto a história da pesquisa e do uso das técnicas de manipulação
da mente no século XX, então se verá que nenhum outro fenómeno o define e o
singulariza tão bem quanto esse. Mais que o século das ideologias, mais que o
século da física atómica, mais que o século da informática, este foi o século da
escravização mental.
As técnicas de manipulação psíquica progrediram tanto nas últimas décadas, em alcance, precisão e eficiência, que ultrapassaram tudo o quanto o homem comum pode aceitar como verossímil.
E não aceita mesmo: quase todo mundo opõe uma obstinada má vontade a ouvir o que alguém possa ter a lhe dizer a esse respeito.
Como, por outro lado, os governos, serviços secretos, seitas pseudomísticas e empresas
multinacionais investem quantias cada vez maiores na pesquisa desses assuntos,
o resultado é que o domínio dos meios de escravizar a mente do povo cresce na
razão inversa dos meios que ele possa ter para se defender. E aí já não se sabe
quem é mais culpado: o sedutor que escraviza ou o seduzido que se entrega, com
deleites de masoquismo, à servidão voluntária.
Ora, seria concebível que populações
submetidas incessantemente a esse massacre psicológico pudessem conservar
intactas por muito tempo as faculdades intuitivas e valorativas em cuja perda
Lorenz enxerga o começo da demolição da espécie humana? Não é antes mais
provável que a humanidade assim manipulada, estonteada, ludibriada vinte e
quatro horas por dia acabe por entrar num estado crónico de auto-engano?
A incapacidade de um povo para perceber os perigos que o ameaçam é um dos sinais mais fortes da depressão autodestrutiva que prenuncia as grandes derrotas sociais.
A apatia, a indiferença ante o próprio destino, a concentração das
atenções em assuntos secundários acompanhada de total negligência perante os temas
essenciais e urgentes, assinalam o torpor da vítima que, antevendo um golpe
mais forte do que poderá suportar, se prepara, mediante um reflexo anestésico,
para se entregar inerme e semi-desmaiada nas mãos do carrasco, como o carneiro
que oferece o pescoço à lâmina.
Mas quando o torpor não invade somente a alma do povo, quando toma também as mentes dos intelectuais e a voz dos melhores já não se ergue senão para fazer coro à cantilena hipnótica, então apaga- se a última esperança de um re-despertar da consciência.
Quos vult perdere jupiter prius
dementat (Júpiter enlouquece primeiro os que quer
perder).
Aparentemente, há uma contradição intolerável em pedir à consciência que
reconheça a sua sujeição a um poder inconsciente. Para reconhecer que está
dormindo, um homem tem de estar pelo menos meio acordado; o primado do
inconsciente só pode ser afirmado por um homem consciente; e só quem escapou da
manipulação sabe que é manipulado.
É um dos mais velhos e incómodos paradoxos da
mente humana. Podemos sair dele, por exemplo, com a ajuda das distinções
aristotélicas entre potência e acto, substância e acidente: no plano essencial,
a consciência é, por direito, a parte dominante; na existência de facto, ela
tem altos e baixos e só conserva o seu domínio lutando contra a inconsciência.
Mas a maioria das pessoas não atina com estas subtilezas, e só pode escapar do
paradoxo pelo expediente desastroso de negar os factos. Quanto mais tememos um
perigo, mais tendemos a fingir diante dele uma indiferença superior: “Senta,
que o leão é manso”
Com o atraso
proverbial que marca os pronunciamentos da Igreja Católica, o Papa João Paulo
II finalmente reconheceu em 1994 que, sob as aparências de continuidade daquilo
a que a humanidade chamava civilização, cresce hoje em todo o mundo uma espécie
de anti civilização, a civilização do Anticristo. Neste novo panorama, todas as
ideias e concepções mais francamente erróneas, mórbidas, disformes e
fracassadas, que os séculos e os milénios anteriores tinham rejeitado, saem do fundo do
lixo do esquecimento para constituir os pilares de um culto universal do
engano.
Olavo de
Carvalho
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