"... corre o risco de terminar como aquela prostituta velha do Livro de Ezequiel..."
Lição de teologia
Olavo de Carvalho
Um amigo
meu, cristão devoto e estudioso, preparou uma requintada tradução dos
Comentários de Ricardo de S. Víctor ao Apocalipse. Teólogos e filósofos, Ricardo
e seu confrade Hugo, ambos da abadia de S.Víctor, em França, escocês o
primeiro, saxão o segundo, são daqueles pensadores para os quais o
qualificativo de “génio” é um enorme eufemismo. Não há génio pessoal que
explique os seus lampejos de pura sabedoria celeste. Os dois escreveram pouco.
Mas, esse pouco, está entre as jóias supremas do tesouro espiritual da Igreja e
da Humanidade.
A tradução foi enviada a uma editora católica
e daí repassada a um teólogo para apreciação. Resposta do teólogo:
“Esta
tradução tem a sua utilidade e importância como livro documentário para fins de
pesquisa académica… Mas, como livro pastoral para o povo simples de hoje,
infelizmente perdeu o seu valor… É produto da mentalidade do século XII…”
E, continua
no mesmo tom, recomendando, em vez de Ricardo de S. Víctor, a obra "Como Ler o
Apocalipse: Resistir e Denunciar", escrita por um tal Sr. José Bortolini.
Não li essa
obra, mas, pelo título, actualidade não lhe deve faltar, já que a palavra
“denunciar” faz vibrar a corda mais sensível dos corações mediáticos, apelando
àquilo que a militância do escândalo considera o primeiro e mais alto dever
moral do homem.
Mas, aquele
parágrafo, daquele teólogo, está cheio de ensinamentos, dos quais, até onde
alcançam as minhas luzes, pude apreender os seguintes:
1) A teologia católica moderna, em vez de se
desenvolver por acumulação, somando as descobertas de hoje às dos séculos
passados como fazem todas as demais teologias – muçulmana, judaica, vedantina
ou budista –, evolui por substituição, colocando o moderno no lugar do antigo,
exactamente como se faz na moda do pronto a vestir ou nos catálogos das
gravadoras de música rock .
2) O
catolicismo modernista também se distingue das demais religiões porque, enquanto
estas dão maior credibilidade às interpretações mais próximas da fonte
originária da revelação, aquele, inspirado pelo espírito do progresso, acha que
aprofunda tanto mais a compreensão da mensagem de Jesus Cristo quanto mais se
afasta d’Ele no tempo e mais se esquece do que os santos disseram d’Ele no
século XII - isto para não falar do XI, do X e de outros ainda mais
antigos.
3) Para o modernismo católico, as visões espirituais dos sábios, dos santos e profetas reflectem menos a luz da eternidade do que as limitações mentais da sua época histórica, sendo tão datáveis e perecíveis quanto as cotações da bolsa ou… os pareceres de um qualquer teólogo moderno de aluguer. Por força desse implacável desgaste entrópico, as palavras dos próprios apóstolos, remotas de XII séculos em relação às de Ricardo de S. Vítor, empalidecem, ainda mais do que estas, perante a majestosa actualidade evangélica do sr. Bortolini.
Não é
maravilhoso que a moderna exegese católica da Bíblia possa ter tanto desprezo pela acção desgastante do tempo, no que diz respeito aos autores antigos e, no entanto, ache que, com o tempo, se está sempre a elevar para patamares mais altos de compreensão os quais, até ao momento, culminam na
pessoa do Sr. Bortolini?
Ó santíssima evolução! proclamaria, em êxtase,
o pe. Teilhard.
Joãozinho e Maria, atrasados pagãozinhos,
precisaram de deixar sinais no chão para se orientar na floresta. Os católicos
modernistas foram abençoados com o dom de tanto mais saber onde estão, quanto
mais se esquecem do caminho percorrido.
Não me
perguntem como isso é possível. É um novo mistério da fé, criado pela moderna
teologia, para substituir aqueles que existiam nos tempos bárbaros de Ricardo
de S. Vítor.
Convém, no entanto, denominar este novíssimo mistério, com a devida unção, como “mistério da historicidade”, fazendo a festa da
sua comemoração coincidir, no calendário litúrgico, com o aniversário natalício
de S. António Gramsci, padroeiro desse género de coisas.
O que não é
mistério de maneira alguma é que uma Igreja que se rebaixa a este ponto diante
do espírito mundano, chegando a desprezar os ensinamentos de seus mestres
porque não estão a par da última versão dos Pokemons , corre o risco de
terminar como aquela prostituta velha do Livro de Ezequiel , que, já não
encontrando clientes que lhe pagassem, teve de lhes dar dinheiro para que a
possuíssem.
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