Inteligência e Verdade

                                                                  Olavo de Carvalho


 

1.     Definição

 

Inteligência, no sentido em que aqui emprego a palavra, no sentido que tem etimologicamente e no sentido em que se usava no tempo em que as palavras tinham sentido, não quer dizer a habilidade de resolver problemas, a habilidade matemática, a imaginação visual, a aptidão musical ou qualquer outro tipo de habilidade em especial. Quer dizer, da maneira mais geral e abrangente, a capacidade de apreender a verdade.

A inteligência não consiste sequer em pensar. Quando pensamos, mas o nosso pensamento não capta propriamente o que é verdade naquilo que pensa, então o que está em acção nesse pensar não é propriamente a inteligência, no rigor do termo, mas apenas o desejo frustrado de inteligir ou mesmo o puro automatismo de um pensar ininteligente.

 O pensar e o inteligir são actividades completamente distintas. A prova disto é que muitas vezes você pensa, pensa, e não intelige nada, e outras vezes intelige sem ter pensado, numa súbita fulguração intuitiva.

A inteligência é um órgão — digamos assim: um órgão — que só serve para isto: captar a verdade. Às vezes ela entra em operação através do pensamento, às vezes através da imaginação ou do sentimento, e às vezes entra directamente, num acto intelectivo — ou intuitivo — instantâneo, no qual se capta alguma coisa sem uma preparação e sem uma forma representativa em especial que sirva de canal à intelecção. Outras vezes há uma longa preparação através do pensamento, da imaginação e da memória, e no fim você não capta coisíssima nenhuma: cumpridos os actos representativos, a intelecção a que se dirigiam falha por completo; dados os meios, a finalidade não se realiza.

 A inteligência está na realização da finalidade, e não na natureza dos meios empregados. E se a finalidade dos meios de conhecimento é conhecer, e se o conhecimento só é conhecimento em sentido pleno se conhece a verdade, então a definição de inteligência é: a potência de conhecer a verdade por qualquer meio que seja.

O conceito da verdade, e as discussões todas que suscita, podem ficar para outra ocasião, tomando provisoriamente a palavra “verdade” no seu sentido vulgar de coincidência entre facto e ideia.

 Bastam estas distinções elementares para nos levarem a perceber o quanto é errónea a direcção tomada pela actual teoria das “inteligências múltiplas”, que dissolve a noção mesma de inteligência numa colecção de habilidades — que vão desde o raciocínio matemático até a destreza física e o traquejo social —, sem notar que todas estas capacidades e outras quantas similares são meios e que a inteligência não é um meio, mas o acto mesmo, o resultado a que tendem esses meios e para o qual nenhum deles é por si — nem a soma deles todos é por si — condição suficiente.

A teoria das inteligências múltiplas surgiu como uma reacção contra a teoria do QI, que por sua vez identificava a inteligência, exclusivamente, com a habilidade verbal, matemática e imaginativo-espacial. Mas é um caso típico de substituição de uma falsidade por outra. Sejam poucas ou muitas as habilidades com que se identifica a inteligência, o erro é o mesmo: confundir a inteligência com os instrumentos de que se serve.

Essa confusão acontece porque a maior parte das pessoas se conhece muito mal, mesmo nas coisas práticas e nos aspectos mais óbvios da vida. Quanto maior não seria sua dificuldade de captar a diferença subtil entre os actos representativos e a inteligência! Vendo sempre a inteligência actuar através do pensamento, da memória, da imaginação, do sentimento, confundem portanto o canal com aquilo que por ele passa, o veículo com o passageiro, e tomam por “inteligência” os meros actos mentais.

Esse equívoco acabou por ser oficializado e legitimado pela educação. De modo geral, todas as formas de ensino visam a incrementar as habilidades em que a inteligência se apoia, como a memória, a imaginação, o raciocínio etc., e não dão a menor importância a inteligência enquanto tal.

 O facto é que a entrada em cena dessas outras faculdades não acarreta necessariamente a da inteligência. Podemos desenvolver bastante o raciocínio verbal, ou a imaginação visual, ou a memória, ou a aptidão artística, sem que haja efectivamente uma inteligência dirigindo os seus passos — a prova é que várias dessas aptidões são mais desenvolvidas em certos atrasados mentais do que no comum das pessoas.

Aliás, se é através do raciocínio que às vezes inteligimos, também é através dele que nos enganamos. Do mesmo modo, às vezes a imaginação nos leva à compreensão real de alguma coisa, mas às vezes leva-nos para longe da verdade. O desenvolvimento destas faculdades, imaginação, memória, raciocínio etc., não implica portanto necessariamente o da inteligência; também é verdade o contrário: que a inteligência é independente desses outros processos, que lhe servem de canais, instrumentos, ocasiões e nada mais. Mas o vice-versa não deve ser tomado em sentido rigoroso, pois uma inteligência resolutamente decidida a descobrir a verdade sobre alguma coisa acaba em geral encontrando os canais mentais pelos quais chegar ao seu objectivo, ou seja, ela desenvolve as “faculdades” de que necessita. Sem excluir portanto que haja casos de inteligências mesmo superiores mas carentes de meios ou canais específicos de actuação, digo que são excepções e raridades que antes confirmam a regra: o desenvolvimento dos meios não implica o da inteligência, o da inteligência leva quase que necessariamente à conquista dos meios.

Se definimos a inteligência como a capacidade humana de captar o que é verdade, também entendemos que o essencial do ser humano, aquilo que o diferencia dos animais, não é o pensamento, não é a razão, nem uma imaginação ou memória excepcionalmente desenvolvidas, embora tudo isto exista efectivamente no ser humano.

 Pois pensar, um macaco também pensa: ele completa um silogismo e até encadeia silogismos num raciocínio relativamente perfeito. Imaginação, até um gato possui: os gatos sonham. Por este caminho não encontraremos a diferença específica humana, aquilo que nos torna homens em vez de bichos. E, se é importante arraigar o homem no reino animal, para não fazer dele um ser angélico sem pés no solo, também é importante saber distingui-lo de uma tartaruga ou de um molusco por alguma diferença que não seja meramente quantitativa e acidental.

O que nos torna humanos é o facto de que tudo aquilo que imaginamos, raciocinamos, recordamos, somos capazes de vê-lo como um conjunto e, com relação a este conjunto, podemos dizer um sim ou um não, podemos dizer: “É verdadeiro”, ou: “É falso”.

Somos capazes de julgar a veracidade ou falsidade de tudo aquilo que a nossa própria mente vai conhecendo ou produzindo, e isto não há animal que possa fazer.

 

 

2.     Evidência e certeza

 

O termo “intuição” designa em filosofia um conhecimento directo, uma intelecção maximamente evidente (o que não significa que deva ser confundida com o sentimento subjectivo de certeza).

Vejamos, um exemplo de um acto de inteligência intuitiva: o facto de você estar aqui neste momento é uma certeza absoluta e incondicional, o que não quer dizer que você não possa duvidar dela, que você não possa até mesmo, por um jogo engenhoso de imaginação, ter o sentimento da certeza de estar em outro lugar; significa apenas que você só duvidará dela e só acreditará estar em outro lugar se você sentir o seu campo de experiência como dividido em blocos estanques, se você perder o senso da unidade do campo da experiência, o que só acontece na fantasia, no estado hipnótico ou na esquizofrenia. Quando sua inteligência admite que você está aqui, você está admitindo como verdadeira uma determinada interpretação que você faz do conjunto das informações que você tem neste momento, mas não só a respeito deste momento e sim a respeito do encaixe entre ele e os momentos que o antecederam e os que se seguirão. Você sabe que está aqui não só por causa das informações sensíveis que recebe a respeito do ambiente, informações auditivas, tácteis, etc., mas também porque você sabe que estas informações são coerentes com um passado (você se lembra de ter vindo até aqui), são coerentes com um projecto de futuro, ou seja, com uma ideia que você tem a respeito do propósito com que veio aqui; e tudo isto forma um sistema tão coeso, tão inseparável, que a respeito deste conjunto você pronuncia o julgamento de que isto é verdade: Você sabe que você está aqui.

 No entanto, não seria impensável que, estando aqui, você imaginasse estar em outro lugar, e que até mesmo se persuadisse e, um tanto auto-hipnoticamente, “sentisse” que está num outro lugar. Tudo isto pode ser produzido; porém, se o senso da unidade do campo da sua experiência ainda funciona, algo lhe dirá: isto é falso. Por quê? Porque as informações que dizem que você está aqui vêm todas juntas; ao passo que as que você está produzindo para dizer que está em outro lugar vêm por partes.

 Examine. O que imaginou você a respeito do outro lugar onde supõe estar? o som? o visual? Um ou outro? Certamente não foram os dois exactamente no mesmo tempo e em proporção coerente. O motivo, o antecedente temporal da sua presença ali, eram-lhe tão claros quanto as sensações visuais ou auditivas? Não: mas as informações que você recebe aqui sobre sua presença vêm todas coladas umas às outras. Você não pega primeiro o visual, depois o auditivo, depois o táctil, ou seja, você não compõe este ambiente, ele lhe vem todo junto; e, embora você, por abstracção, possa momentaneamente prestar atenção mais a um aspecto que a outro, você sabe e se recorda de que os aspectos preteridos estão aí presentes e podem ser actualizados na percepção a qualquer momento, sem um trabalho interior de construção voluntária (que lhe seria obrigatório de modo a completar a imagem do outro lugar suposto, onde supostamente estaria ou se sentisse estar, enquanto está de facto aqui ).

Esta certeza que você tem de estar aqui é o que se chama evidência.

 Uma evidência é um conhecimento inegável, e até de certo modo indestrutível, porque, se você dissesse que não está aqui, a quem você o diria? A quem está lá, ou a quem está aqui? O acto mesmo de você dizer que não está aqui subentende que está.

Existe, em certos pensamentos que temos, esse carácter de veracidade, mas não sabemos definir bem em que ele consiste; sabemos apenas que conferimos esta veracidade a alguns pensamentos e que a negamos a outros. Por exemplo, aqui negamos veracidade ao pensamento de que não estamos aqui; ou, intuímos a verdade de que se A é igual a C, e B é igual a C, então A é igual a B; ou que o todo é maior que as partes, etc.  

 É a esta faculdade — a que diz “sim” ou “não” aos pensamentos, imaginações e sentimentos, que os julga como totalidade e diz “é verdadeiro” ou é “é falso” — que chamamos de inteligência.

 

 

 

3.     Inteligência e vontade

 

A inteligência, em suma, é o senso da verdade, e uma inteligência apta, hábil ou forte é uma inteligência que está acostumada a discernir a verdade e a falsidade em todas as circunstâncias da vida, a aceitar a verdade e permanecer nela.

Com isto quero dizer que a inteligência não se esgota no mero aspecto cognitivo: se a potência de conhecer a verdade constitui a semente da inteligência, esta semente só floresce por iniciativa da vontade, e também pela vontade ela enfraquece e morre.

 Vontade significa o exercício da liberdade. Quando você capta que algo é verdadeiro, significa que você aceitou que aquilo é verdadeiro, e quando você capta que é falso, significa que você o rejeitou. Ora, quem aceita ou rejeita não é uma faculdade em particular, mas é você inteiro, num acto de vontade livre. Isto significa que a inteligência é indissoluvelmente a síntese de uma aptidão cognitiva e de uma vontade de conhecer.

 Se houvesse um ensinamento voltado ao desenvolvimento da inteligência, ele teria de, antes de mais nada, acostumar o aluno a desejar a verdade em todas as circunstâncias e não fugir dela. Portanto o exercício da inteligência possui necessariamente um lado ético, moral.

Platão dizia: “Verdade conhecida é verdade obedecida.”

Se a inteligência fosse uma faculdade puramente cognitiva, nada impediria que ela fosse exercida igualmente bem pelos bons e pelos maus, pelos sinceros e pelos fingidos, pelos honestos e pelos safados.

Na realidade as coisas não se passam assim, e a desonestidade interior produz necessariamente o enfraquecimento da inteligência, que acaba sendo substituída por uma espécie de astúcia, de maldade engenhosa. A astúcia não consiste em captar a verdade, mas em captar — sem dúvida com veracidade — qual a mentira mais eficiente em cada ocasião. O astucioso é eficaz, mas está condenado a falhar ante situações das quais não possa se safar mediante algum subterfúgio, que exijam um confronto com a verdade.

 A conexão entre a inteligência e a bondade é reconhecida por todos os grandes filósofos do passado, do mesmo modo que a correspondente ligação, do lado do objecto, entre a verdade e o bem.

 Um mundo que nega essa conexão, que faz da inteligência uma faculdade “neutra”, capaz de funcionar tão bem nos bons quanto nos maus como a respiração ou a digestão, é um mundo francamente mau, que se orgulha da sua maldade como de uma conquista da ciência, pela qual ele se eleva acima das civilizações do passado.

 Mauriac notava, “nos seres decaídos, essa destreza para embelezar sua decadência. É a derradeira enfermidade a que o homem pode chegar: quando sua sujeira o deslumbra como um diamante”.

A conexão a que me refiro surge com peculiar clareza quando examinamos os seguintes factos:

 Com frequência nossas acções não são acompanhadas de palavras que as expliquem, nem mesmo interiormente; ou seja, somos capazes de agir de determinadas maneiras, explicando esses actos de maneiras exactamente inversas, precisamente porque as motivações verdadeiras, permanecendo não-expressas e mudas, se furtam ao julgamento consciente.

 Isso faz com que, pelo menos subconscientemente, alimentemos um discurso duplo. A partir do momento em que você admite que uma coisa é verdadeira, mas procede, mesmo em segredo, mesmo interiormente, como se ela não o fosse, está mantendo um discurso duplo: num plano afirma uma coisa, e noutro afirma outra coisa.

 A verdade tem poucas oportunidades de surgir para nós com toda a clareza, e a mente humana funciona de uma forma que, quando você nega uma determinada informação, o subconsciente suprime todas as informações análogas, de modo que, quando você diz para si mesmo uma determinada mentira que lhe é conveniente, por motivos práticos ou psicológicos, ou para se preservar de sentimentos desagradáveis, no mesmo instante em que você suprime esta informação você suprime uma série de outras que lhe seriam úteis e que você não tencionava suprimir.

 Por isto a mentira interior é sempre danosa à inteligência: é um escotoma que se alastra até escurecer todo o campo da visão e substituí-lo por um sistema completo de erros e mentiras.

Quando nos habituamos a suprimir a verdade com relação às nossas memórias, à nossa imaginação, aos nossos sentimentos e actos, esta supressão nunca fica só naquele sector onde mexemos, mas alastra-se para outros territórios à volta e, tornando-nos incapazes de inteligir uma determinada coisa, tornamo-nos incapazes para inteligir muitas outras também.

 A defesa contra verdades incómodas transforma-se também numa defesa contra a verdade em geral, contra todas as verdades.

 Mais tarde, quando desejarmos estudar um determinado assunto que nos interessa, ou entender o que está se passando na nossa vida, e não conseguirmos, dificilmente perceberemos que fomos nós mesmos que causamos esta lesão da inteligência.

 Noto em muitos intelectuais de hoje uma repugnância, uma defesa instintiva contra a verdade, a tal ponto que, mesmo quando desejam aceitá-la, tem de metê-la num invólucro de mentiras. O pior, nisso, é que com frequência essa lesão é compensada por um desenvolvimento hipertrófico das faculdades auxiliares, numa inútil excrescência ornamental, tal como os seios que crescem em algumas mulheres após a menopausa. Muitas dessas inteligências lesadas alcançam sucesso nas profissões intelectuais.

 

 

 

4.     Pequenas e grandes verdades

 

Quando se fala em público na palavra “verdade”, no ambiente cínico de hoje em dia, logo aparece algum espertinho repetindo a pergunta de Pôncio Pilatos, desfiando, como se fossem a maior novidade, os velhos argumentos cépticos, cuja refutação é classicamente o primeiro grau da aprendizagem filosófica.

Só estão dispostas a admitir que o homem pode conhecer a verdade caso alguém lhes mostre a verdade total, universal e completa a respeito das questões mais difíceis, e, como ninguém satisfaz a esta exigência, elas concluem, com o cepticismo clássico, que toda verdade é incognoscível.

 Mas esse tipo de exigência não expressa uma busca sincera da verdade. A busca sincera vai das verdades humildes e corriqueiras às verdades supremas, aceitando aquelas como caminho para estas, sem exigir desde logo, despoticamente, as respostas finais a todas as perguntas.

Um exemplo de verdade humilde, porém segura, firme, da qual você pode partir como um modelo para avaliar outras possíveis verdades, é dado por aquilo que você sabe — e que somente você sabe — a respeito da sua própria história, sobretudo da história interior de seus sentimentos, motivações, desejos, etc.

Se houvesse um ensinamento voltado ao desenvolvimento da inteligência, ele teria de começar por propor ao aluno, ao estudante, principiante ou postulante, uma espécie de revisão das suas memórias, ou seja, contar correctamente toda a sua vida (analogamente ao que se faz numa confissão geral).

Tudo o que é verdadeiro tem um carácter de coesão, pois uma informação verdadeira não pode ser artificialmente isolada de uma outra informação que também seja verdadeira e que tenha com ela uma relação de causa e efeito, de contiguidade, de semelhança e diferença, de complementaridade, etc.; então isto quer dizer que se você admite um A e um B, você vai ter de admitir um C, D, E, F, etc. A verdade tem sempre um carácter sistémico, orgânico, razão pela qual sua captação pela inteligência pessoal requer uma abertura da personalidade, uma predisposição a aceitar todas as verdades que como tal se revelem, sem nenhuma selecção prévia de verdades convenientes.

Um homem tem de estar livre de toda fiscalização externa para ter a certeza de que olha para si mesmo e não para um papel social — e só então pode fazer um julgamento totalmente sincero. Somente aquele que é senhor de si é livre — e ninguém é senhor de si se não aguentar olhar, sozinho, para dentro de seu próprio coração. Mesmo a conversa mais franca e a confissão mais espontânea não substituem esse exame interior, porque, aliás, só valem quando são expressões dele, não efusões passageiras, induzidas por uma atmosfera casualmente estimulante ou por uma sinceridade vaidosa. Mais ainda, não é apenas a dimensão moral da consciência que se desenvolve nesse confronto: é a consciência inteira — cognitiva, estética, prática. Pois ele é ao mesmo tempo aproximação e distanciamento: é o julgamento solitário que cria a verdadeira intimidade do homem consigo mesmo e é também ele que cria a distância, o espaço interior no qual as experiências vividas e os conhecimentos adquiridos são assimilados, aprofundados e personalizados.

 Sem esse espaço, sem esse “mundo” pessoal conquistado na solidão, o homem é apenas um tubo por onde as informações entram e saem — como os alimentos — transformadas em detritos. Ora, nem todos os seres humanos foram brindados pela Providência com a percepção espontânea e o julgamento certeiro de seus pecados. Sem esses dons, o anseio de justiça se perverte em inculpação projectiva dos outros e em “racionalização” (no sentido psicanalítico do termo). Quem não os recebeu de nascença tem de adquiri-los pela educação.

 A educação moral, pois, consiste menos em dar a decorar listas do certo e do errado do que em criar um ambiente moral propício ao auto-exame, à seriedade interior, à responsabilidade de cada um saber o que fez quando não havia alguém olhando.

 Durante dois milénios, um ambiente assim foi criado e sustentado pela prática cristã do “exame de consciência”. Há equivalentes dela em outras tradições religiosas e místicas, mas nenhum na cultura laica contemporânea.

 E, à medida que a sociedade se descristianiza, essa referência se dissolve e as técnicas clínicas tendem justamente a produzir o efeito oposto: a abolir o sentimento de culpa, trocando-o ora por um endurecimento egoísta confundido com “maturidade”, ora por uma adaptabilidade auto-complacente, desfibrada e desprezível, confundida com “sanidade”.

O primeiro grau na aprendizagem da verdade consiste em aprender a reconhecer aquelas verdades que só o próprio sabe e que ninguém, a não ser ele, pode confirmar ou negar. Por exemplo, só você conhece suas intenções, só você conhece os actos que praticou em segredo, só você conhece os sentimentos que não confessou. Você, nesses casos, é a única testemunha, e é aí que você vai conhecer a diferença radical e intransponível entre verdade e falsidade.

 As pessoas que vivem negando a existência de verdades não conhecem essa experiência, nunca deram senão falso testemunho de si mesmas ante o tribunal da consciência, mentem para si mesmas e por isto sentem que tudo no mundo é mentira.

 

 A diferença entre a técnica religiosa e seus sucedâneos modernos é que ela sintetizava, numa mesma vivência dramática, a dor da culpa e a alegria da completa libertação — e isto as “éticas leigas” não podem fazer, justamente porque lhes falta a dimensão do Juízo Final, da confrontação com um destino eterno que, dando a essa experiência uma significação metafísica, elevava o anseio de responsabilidade pessoal às alturas de uma nobreza de alma com o qual as exterioridades da “ética laica” não podem nem mesmo sonhar.

Há dois séculos a cultura moderna vem fazendo o que pode para debilitar, sufocar e extinguir na alma de cada homem a capacidade para essa experiência suprema, na qual a consciência de si é exigida ao máximo e na qual — somente na qual — alguém pode adquirir a autêntica medida das possibilidades e deveres da condição humana.

 A “ética laica”, a “educação para a cidadania” é o que sobra no exterior quando a consciência interior se cala e quando as acções do homem já nada significam além de infracções ou obediências a um código de convencionalismos e de interesses casuais.

 “Ética”, aí, é pura adaptação ao exterior, sem outra ressonância íntima senão aquela que se possa obter pela internalização forçada de slogans, frases feitas e palavras de ordem.

“Ética”, aí, é o sacrifício da consciência no altar da mentira oficial do dia.

A inteligência não é, no fundo, senão o comprometimento da pessoa inteira no exercício do conhecer, mediante uma livre decisão da responsabilidade moral. Daí que ela seja também a base da integridade pessoal, quer no sentido ético, quer no sentido psicológico.

Todas as neuroses, todas as psicoses, todas as mutilações da psique humana se resumem, no fundo, a uma recusa de saber. São uma revolta contra a inteligência.

Revoltas contra a inteligência — psicoses, portanto, à sua maneira — são também as ideologias e filosofias que negam ou limitam artificiosamente o poder do conhecimento humano, subordinando-o à autoridade, ao condicionamento social, ao beneplácito do consenso académico, aos fins políticos de um partido, ou, pior ainda, subjugando a inteligência enquanto tal a uma de suas operações ou aspectos, seja a razão, seja o sentimento, seja o interesse prático ou qualquer outra coisa.

 É claro que, para cada domínio especial do conhecimento e da vida, uma faculdade em particular se destaca, ainda que sem se desligar das outras: o raciocínio lógico nas ciências, a imaginação na arte, o sentimento e a memória no conhecimento de si, a fé e a vontade na busca de Deus.

 Mas, sem a inteligência, o que é cada uma dessas funções, ou a justaposição mecânica de todas elas, senão uma forma requintada de fetichismo? O que é uma imaginação que não intelige o que concebe, um sentimento que não se enxerga a si mesmo, uma razão que raciocina sem compreender, uma fé que aposta, cegamente, sem a visão clara dos motivos de crer? São cacos de humanidade, jogados num porão escuro onde cegos tacteiam em busca de vestígios de si mesmos.

 Toda “cultura” que se construa em cima desse equívoco não será jamais senão um monumento à miséria humana, um macabro sacrifício diante dos ídolos.

 Só o inteligir, assumido como estatuto ontológico e dever máximo da pessoa humana, pode fundamentar a cultura e a vida social.

 

5.   Inteligência, Fé, Esperança e Caridade

 

Quando Cristo disse: “Na verdade amais o que deveríeis odiar, e odiais o que deveríeis amar”, ensinou, da maneira mais explícita, que os sentimentos não são guias confiáveis da conduta humana. Antes de os podermos usar como indicadores do certo e do errado, temos de lhes ensinar o que é certo e errado. Os sentimentos só valem quando subordinados à razão e ao espírito.

 Razão não é só pensamento lógico: reduzi-la a isso é uma idolatria dos meios acima dos fins, que termina num fetichismo macabro. Razão é o senso da unidade do real, que se traduz na busca da coesão entre experiência e memória, percepções e pensamentos, actos e palavras etc.

 A capacidade lógica é uma expressão parcial e limitada desse senso. Também são suas expressões o senso estético e o senso ético: o primeiro anseia pela unidade das formas sensíveis, o segundo pela unidade entre saber e agir. Tudo isso é razão.

Espírito é aquilo que inspira a razão a buscar a chave da unidade da visão do mundo no supremo Bem de todas as coisas, e não num detalhe acidental qualquer, tomado arbitrariamente como princípio de explicação universal, como algumas escolas filosóficas fazem com a linguagem, outras com a história, outras com o inconsciente etc. O espírito é o topo do edifício da razão, que por ele se abre para o sentido do Bem infinito, libertando-se da tentação de enrijecer-se num fetichismo trágico ou utópico. Nem a razão nem o espírito se impõem. Só nos abrimos a eles por livre vontade.

 A abertura para a razão vem essencialmente da caridade, do amor ao próximo, pelo qual o homem renuncia a impor seu desejo e aceita submeter-se ao diálogo, à prova, ao senso das proporções e, em suma, ao primado da realidade. A abertura para a razão é educação. Educação vem de ex ducere, que significa levar para fora. Pela educação a alma liberta-se da prisão subjectiva, do egocentrismo cognitivo próprio da infância, e  abre-se para a grandeza e a complexidade do real. A meta da educação é a conquista da maturidade. O homem maduro — o spoudaios de que fala Aristóteles — é aquele que tornou sua alma dócil à razão, fazendo da aceitação da realidade o seu estado de ânimo habitual e capacitando-se, por esse meio, a orientar sua comunidade para o bem.

 Este ponto é crucial: ninguém pode guiar a comunidade no caminho do bem antes de se  tornar maduro no sentido de Aristóteles. Líderes revolucionários e intelectuais activistas são apenas homens imaturos que projectam sobre a comunidade seus desejos subjectivos, seus temores e suas ilusões pueris, produzindo o mal com o nome de bem.

A abertura ao espírito é um acto de confiança prévia no bem supremo da existência, acto sem o qual a razão perde o impulso ascendente que a anima e, fugindo do infinito, se aprisiona em alguma pseudo-totalidade, mais alienante ainda que o egoísmo subjectivo inicial. O nome religioso desse acto de confiança é , mas a confiança que eleva a razão à busca do infinito transcende o sentido da mera adesão a um credo em particular e tem antes uma dimensão antropológica: tudo o que o ser humano fez de bom, fez movido pela fé e por meio da razão.

 O espírito e a razão educam os sentimentos. Os sentimentos do homem amadurecido pelo espírito e pela razão são diferentes dos do homem imaturo, porque aquele ama o que deve amar e odeia o que deve odiar, enquanto o segundo ama ou odeia às tontas, segundo as inclinações arbitrárias da sua subjectividade moldada pelas pressões e atractivos do meio social.

 Mas o que atrai a alma para a abertura ao espírito e à razão é a esperança, e o despertar da esperança é um mistério. Homens submetidos à mais dura opressão e aos mais tormentosos sofrimentos conservam sua esperança, enquanto outros a perdem à primeira frustração de um desejo tolo. A esperança não está sob o nosso controle. Seu advento depende do espírito mesmo, que sopra onde quer. Todos os enredos humanos, da vida e da ficção, giram em torno do mistério da esperança.

 A esperança, a fé e a caridade educam os sentimentos para o amor ao que deve ser amado.

 O culto idolátrico dos sentimentos é um egocentrismo cognitivo, um complexo de Peter Pan que recusa a maturidade. Quanto mais o homem busca afirmar sua liberdade por meio da adesão cega aos seus sentimentos e desejos, mais se torna escravo da tagarelice ambiente.

 O caminho da liberdade é para cima, não para baixo. Libertar-se não é afirmar-se: é transcender-se.

 

 

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