Espírito e Personalidade
Quando, por exemplo, criamos mentalmente um triângulo, este já traz em si todas as suas propriedades geométricas que o pensamento, nesse instante, ainda ignora por completo; e quando, através do pensamento, as tivermos descoberto uma a uma, ao longo do tempo, teremos de confessar que elas já estavam no triângulo mesmo antes que as apreendêssemos; e, mesmo quando apreendemos uma só dessas propriedades geométricas, apreendemos algo que já está previamente no triângulo e não no nosso pensamento.
Não há, na
esfera do mental, nenhuma diferença entre pensar o falso e pensar o verdadeiro.
O pensamento só se torna veraz quando toca algo que está para além dele, algo
que não se reduz de maneira alguma ao acto de pensar e nem ao pensamento
pensado. Esse algo é o que chamamos verdade.
Como se vê no exemplo do triângulo, a verdade
está para além do pensamento, até mesmo quando o objecto do pensamento é criado
por ele próprio: o pensamento não domina e não cria a veracidade nem mesmo dos
objetos puramente pensados.
A verdade só
aparece para além de uma fronteira que o pensamento enxerga mas não transpõe. A
verdade é o reino do espírito. A verdade é espírito, mesmo quando apreendida
num objeto material.
Os nossos sentidos
podem apreender a presença de um objecto, mas não podem, por si,decidir se essa
presença é real ou imaginária. O pensamento tem de intervir, colocando
perguntas que completem e corrijam a mera impressão. Ele fá-lo em busca da
verdade do objeto, mas, quando chega a tocar nela, sabe que ela está, não apenas
para além dos sentidos, mas para além do próprio pensamento, caso contrário não
seria verdade de maneira alguma mas sim apenas uma impressão modificada pelo pensamento.
A verdade é
sempre transcendente à esfera do pensamento, das sensações, das emoções, de
tudo quanto constitui o mental.
Os testes de QI só medem a quantidade da actividade
mental, mas não a sua eficiência em transcender-se, em apreender a veracidade
do objecto — a sua capacidade de vislumbrar, para além da esfera do pensado, o
reino do espírito.
Essa
capacidade não se chama pensamento,
mas inteligência. Ela é inteiramente
alheia à quantidade, intensidade ou elegância formal do pensamento. A pensar, morreu um burro, diz o ditado.
Pensar falsidades dá tanto trabalho, e às vezes até mais, do que chegar à
verdade. O pensamento bom não é aquele que se compraz na riqueza dos seus
próprios movimentos, mas aquele que se recolhe humildemente para dar passagem à
inteligência, à percepção da verdade.
A correcção
formal do pensamento pode ser importante, às vezes, mas o pensamento, por si,
não tem como apreender sequer a verdade da sua própria correcção formal. Tomar
consciência da correcção formal de um silogismo não é um pensamento: é a
percepção instantânea — intuitiva, se quiserem — de um nexo necessário entre
dois pensamentos. Se não fosse assim, seria apenas um terceiro pensamento, cujo
nexo com os outros dois teria por sua vez de ser provado silogisticamente, e
assim por diante até à consumação dos séculos.
Portanto, até mesmo a mera veracidade formal é
veracidade, e transcende o pensamento.
Pessoas que
pensam muito são, só por esse motivo, chamadas de intelectuais, mas isso é errado: a vida do intelecto só começa na
fronteira em que o pensamento se apaga para dar lugar ao vislumbre da verdade.
Tanto o
pensamento quanto as impressões, a memória ou as emoções não fazem mais que
acumular motivos para que a verdade surja, depois, numa percepção instantânea.
Essa acumulação pode ser longa e trabalhosa, mas não é nunca a finalidade, a
meta de si própria.
Toda
educação da inteligência deveria ter essas obviedades em conta, mas tal tornou-se
quase impossível numa época que virou as costas à própria noção de verdade —
para não falar de espírito —, substituindo-a pela de projecção subjetiva,
adequação, utilidade, interesse de classe, criação cultural etc., como se todas
estas noções não afirmassem implicitamente a sua própria veracidade e não
restaurassem assim, meio às tontas, aquilo que desejariam suprimir.
No curso da
sua evolução temporal, o indivíduo chega a ter uma personalidade intelectual quando a submissão do seu pensamento ao
espírito se tornou um hábito adquirido e se integrou na sua alma como reacção
usual e quase inconsciente.
Em sentido
estricto, conduzir o estudante a essa passagem de nível seria o objectivo de
toda educação superior, mas a redução das universidades à condição de escolas
profissionais ou de centros de adestramento ideológico para militantes veio a
tornar esse objectivo inteiramente utópico, elitizando, em vez de democratizar,
o acesso aos bens superiores do espírito como prometem fazer todos os governos
do mundo.
Olavo de Carvalho
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